Ao longo da tarde e da noite de sábado, dia 13 de dezembro, algumas centenas de jovens, em grande parte vindos das diversas periferias de Santa Maria, ocuparam a praça da Biblioteca Pública Municipal para prestigiar o evento “Cidade Cultura… para quem?”, organizado pelo coletivo Resistência Urbana. Em sua terceira edição, a atividade teve apresentações de grupos e MC’s locais, além do grupo Front Liberdade e Rima, de Viamão, e do nacionalmente conhecido Nocivo Shomon.
A apresentação do MC da zona leste de São Paulo fechou o dia de grande movimentação na biblioteca da cidade, local que, segundo os integrantes do coletivo, chegou a passar quase dois anos sem nenhum evento cultural de caráter aberto e gratuito.
O b.boy e o MC Crocante (no chão), junto com o MC GD, no palco, mostrando os elementos da cultura Hip Hop durante a apresentação do seu grupo, Atitude Consciente. Foto: Tiago Miotto
Para o público, o dia começou às 16 horas, sob sol forte e céu aberto, com a apresentação do grupo Adreline, da zona oeste de Santa Maria. Para o coletivo e as cerca de trinta pessoas envolvidas na organização da atividade, contudo, o dia começou bem mais cedo: às 9 horas da manhã, com uma garoa e uma incerteza que se dissipou com as nuvens, enquanto a estrutura de palco era montada e faixas eram confeccionadas.
As preocupações e a correria para organizar e financiar o evento começaram ainda antes. Os primeiros passos para a atividade foram dados em setembro, depois de uma viagem ao Rio de Janeiro para participar do Encontro Nacional da Educação.
A busca pelos recursos necessários para garantir a estrutura mínima e a vinda dos MC’s visitantes envolveu diversas frentes: a venda de bebidas em praças públicas, de risoto para a comunidade local e de rifas que sortearam materiais da Trapo Social, marca artesanal de roupas e acessórios locais. Diversos apoios locais, como o da Trapo, contribuíram para que a atividade se concretizasse.
“A comunidade conseguiu enxergar a necessidade desse debate da ocupação dos espaços públicos na cidade e da retomada de alguns espaços pouco utilizados, como é a biblioteca, e também essa questão da própria privatização que está ocorrendo, como é o caso do Farrezão”, explica Vinicius de Moraes Brasil, mestrando em educação física e integrante do coletivo Resistência Urbana.
As atividades anteriores do coletivo haviam sido no Centro Desportivo Municipal (Farrezão), voltadas ao debate sobre os espaços públicos para o esporte e o lazer na cidade, e muitas pessoas envolvidas são moradoras da região e conhecem a realidade local.
A escolha da biblioteca para sediar o evento, assim, partiu da necessidade de um local com boa acústica para a dimensão dos shows que ocorreriam, e da vontade de retomar um espaço que, embora continue sendo frequentado marginalmente por skatistas e bikers, é também alvo da repressão e do esvaziamento forçado.
“Esse tempo sem atividades na Biblioteca coincide bem com o momento em que delegados da cidade vieram morar em um prédio nas redondezas, pois os vizinhos reclamavam muito da movimentação no local e a polícia estava reprimindo bastante o pessoal ali. Tem relatos de jovens que sofreram esculachos da polícia, que tiveram seus bonés retirados e que tiveram seus rostos e roupas pichados”, relata Vinicius. “Em função de uma vizinhança que veio agora pra cá, com esse processo da construção civil, houve uma elitização da região. Então, o intuito foi retomar, mostrar que esse espaço é público, é um espaço nosso, e antes de essas pessoas virem morar aqui a gente já usufruía desse espaço. Inclusive, pessoas mais antigas nos contam que ali havia quadras de futebol, e já houve uma pista de skate ali também”.
Uma roda de discussão sobre a criminalização da juventude estava prevista no cronograma, mas acabou não ocorrendo – ao menos, não oficialmente. “O que tava rolando ali já era um debate, uma soma de vários fatos que estão acontecendo na cidade. Não rolou uma roda de conversa, rolaram várias”, afirma Caue Jacques, MC do grupo Nova Beat.
Depois das duas grandes operações de combate à pixação em Santa Maria – a Cidade Limpa e a Operação Rabisco – nos últimos anos, o local não poderia ser mais apropriado para discutir criminalização: o palco foi montado à frente do painel feito pelo artista Kobra, de São Paulo, que custou caro aos cofres públicos municipais e, por isso, foi objeto de polêmica e da revolta de artistas locais que não contam com nenhum incentivo por parte da Prefeitura.
A revolta materializou-se em pixações no local, e mais uma operação de repressão, chamada “Restauração”, foi realizada pela Polícia em setembro de 2012. Com a recente “declaração de guerra” contra os pixadores feita pelas autoridades públicas de Santa Maria – que anunciam um reforço na criminalização, mais uma vez, sem nenhuma contrapartida cultural – os ânimos estão aflorados e a indignação se expressa também em forma de versos.
Não por acaso, foram apresentadas no evento pelo menos três músicas que falam do tema específico da pixação: duas composições de artistas locais (Artigo 163, do grupo Nova Beat, e Pixação, dos MC’s YoungMaike e Caue Jacques), e a música “Pixadores”, de Nocivo Shomon, na qual o público lotou o palco para cantar ao lado do MC.
“Abriu o tempo, fez um baita dia, encheu de gente, não deu nenhuma briga, num evento que veio um cara de renome nacional em um lugar que tem um valor simbólico como esse, e o pessoal, duma faixa etária de 15 a 20 e tantos anos a maioria, vindo da zona sul, leste, oeste, norte, curtiu numa boa e respeitou”, avalia Caue.
A atividade teve apresentações dos MC’s e grupos locais Adrenaline, Obscura Fantasia, Jotape, JCS, Estampa da Quebrada, Manu, Mano Índio, Atitude Consciente, Nova Beat, Young Maike, Rima Suprema e Com Base, além do grupo Front LR, de Viamão, e do MC Nocivo Shomon, acompanhado do DJ Pow.
Diversas foram as vezes em que todos os MC’s subiram juntos ao palco, revezaram-se em participações em músicas de outros grupos ou simplesmente confraternizaram, juntos, demonstrando a união do movimento Hip Hop local.
Os MC’s do grupo Front LR, que vem pela terceira vez a Santa Maria, afirmam que a cena local deve servir de referência. “É uma satisfação participar de um evento de novo em Santa Maria e ver que existe uma autodeterminação do pessoal para movimentar uma cena cultural e produzir atividades coletivas, é uma prática de valores diferentes: coletividade, autogestão, apoio mútuo, questionar as coisas que normalmente estão sufocadas”, afirma Luiz Gabriel Pezão.
O grupo aproveitou a ocasião para falar um pouco da situação de repressão vivenciada em sua região durante o período da Copa do Mundo, quando realizaram um evento na periferia de Viamão que, segundo eles, foi autorizado a contragosto e extremamente policiado, num visível contraste com as condições oferecidas para o público do evento esportivo e midiático.
“Para a periferia é sempre escasso o acesso aos bens culturais e intelectuais, e para isso tem todo um porquê, da cultura girar no centro e não girar na periferia, tem todo um porquê essa produção social de pessoas para ascenderem na sociedade e dominarem os postos de comando, fazer a manutenção da ordem. A cultura talvez sirva como forma de abrir outros horizontes em lugares em que os horizontes são limitados no trabalho, no silêncio, na miséria”, diz Pezão.
Em entrevista pela internet, depois de sua apresentação em Santa Maria, Nocivo Shomon afirmou que a experiência na cidade foi impressionante. “Santa Maria foi mágico, a recepção do pessoal, cada fã pegando autógrafo. Infelizmente, foi rápida a nossa passagem, mas o pouco tempo que tive para trocar ideia com o pessoal e receber um pouco da visão de cada som foi enriquecedor, acrescentou muito na minha evolução. Foi pesada a atividade de Santa Maria, achei o movimento de união muito forte”.
De origem nordestina, o MC nasceu em Campina Grande, na Paraíba, mas foi cedo para São Paulo. Foi em Cangaíba, periferia no extremo leste da cidade, onde conheceu e se envolveu com a cultura Hip Hop, há cerca de 18 anos.
Com dois álbuns lançados – “Assim que eu sigo”, de 2007, e “Guerreiro Sagaz”, de 2011 – o MC vivencia em São Paulo uma realidade diferente da santamariense, com um cenário musical profissionalizado e a possibilidade de viver de sua arte. Pelas dificuldades que esse caminho apresenta, mesmo na capital mais populosa do país, Nocivo explica que é difícil deslocar-se para participar de atividades como o “Cidade cultura… pra quem?”.
“Infelizmente a gente não consegue se deslocar daqui para outra cidade, outro estado, sem cobrar um custo para fazer nossa despesa, pagar nossas contas, porque geralmente esses eventos acontecem no final de semana, e para quem canta, vive do rap, fim de semana é o dia do trampo, do trabalho, a gente só tem os finais de semana para fazer shows”, afirma, explicando os ônus que teve ao aceitar a proposta de reduzir os custos de seu show para participar de uma atividade aberta e auto-organizada.
“Eu queria um dia poder não precisar mais ter que cobrir esses custos de quem ama o rap, poder fazer o governo ou um patrocinador pagar isso, para a comunidade não precisar fazer nenhum corre, nem vender latinha, apenas fechar o show e alguém bancar o que é preciso para fazer acontecer, e o público só ir lá prestigiar. Porque os manos, só vendendo latinha, fizeram mais do que o governo faz, mais do que muitas marcas que ganham mó dinheiro com o rap, mas nunca fizeram um evento de graça”
“Isso tem uma riqueza muito importante. Quanto mais cultura, menos mortes, menos cadeia. Rap de quebrada, rap beneficente, cultura pra comunidade é muito importante, e a gente talvez só vai entender o valor disso quando tiver mais”, conta Shomon, que participa e apoia iniciativas de cunho social, como o projeto Rap Móvel, que leva o rap de graça para periferias e é realizado nas ruas. “Como acontece normalmente em sábados, que são dias de show, abro mão do meu cachê para fazer pela minha quebrada”.
O MC impressionou-se também com o poder de união e mobilização da cultura Hip Hop, em uma cidade que tem abertas as feridas da tragédia recente e ainda luta por justiça. “Foi da hora ver o rap de mensagem, de resistência, reunindo tantas pessoas numa cidade que sofreu há pouco tempo algo tão doloroso como aquela tragédia que todo mundo sabe. Eu passei até em frente à boate… quando a gente lembra, mesmo sendo de fora, que não viveu o que vocês viveram, a gente sente algo muito pesado, imagina vocês, que sentiram na pele. Então, ver essa cidade se reunindo para ver cultura, ver poesia, é algo muito valioso para nós”.
Apesar do balanço positivo do evento, os integrantes do coletivo Resistência Urbana reclamam da burocracia e das dificuldades para conseguir a liberação do espaço. O percurso entre diferentes secretarias tomou bastante tempo. “Tem uma burocracia muito grande que acaba emperrando muitas coisas e desgasta muito, porque a gente trabalha, a gente estuda, faz outras coisas, não tem todo o tempo disponível para ir nas secretarias largar ofício a todo momento”, diz Vinicius.
Além disso, a falta de serviços básicos por parte da Prefeitura geraram gastos e perigos – como a instalação elétrica feita por conta própria – que seriam desnecessários se houvesse apoio público.
“A Prefeitura não disponibiliza serviços básicos para quem quer organizar um evento para a população. Já eles fazem eventos em que se paga para entrar e usufruem de todos os serviços, limpeza urbana, ligação elétrica, e na verdade quem paga esses serviços somos nós, os trabalhadores, por meio dos impostos. Então, eles lucram duas vezes: pegam nosso dinheiro e fazem mais dinheiro em cima”.
Para Caue Jacques, se faltam apoio e serviços públicos, sobram responsabilizações. “A única coisa em que a Prefeitura apoiou mesmo foi no ofício autorizando a usar o espaço da biblioteca. E, ainda assim, tinha um monte de restrições, falavam que o cara era responsável pela segurança, pela limpeza do local, por danos a terceiros, por danos ao patrimônio público, e o camarada não pôde nem assinar como coletivo, teve que assinar no nome dele”.
No fim de um ano em que a discussão sobre os espaços públicos, a violência policial e a criminalização dos jovens foi intensa, o evento deixou um saldo positivo, avalia Vinicius. “O evento deixa um aprendizado de fortalecer os laços entre as gerações mais antigas e mais novas. E esse debate da criminalização é um debate que sempre existiu, e esse pessoal da antiga também foi muito criminalizado na sua juventude, a gente que mora aqui há um tempo sabe bem como era o Farrezão antes. Esse pessoal se interessou pela ideia e acho que conseguiu perceber um avanço na juventude de hoje, que parece que está mais desperta, e mais unida para essa questão da criminalização”.
Resistência urbana e cultural na biblioteca, pelo viés de Tiago Miotto.