feminicídio é uma palavra pouco conhecida. provavelmente é um daqueles termos que suas amigas, familiares e conhecidas também nunca ouviram falar. o termo é mesmo pouco recorrente em nosso cotidiano. aliás, é um termo confuso e que lembra outros tantos (homicídio, genocídio, suicídio…). podemos não saber o que os unifica e o que significa o ‘cídio’ ao final de cada um deles, mas, mesmo assim, eles são extremamente presentes em nosso cotidiano – atravessam as gerações, repetem-se, marcam diariamente…
infelizmente, o feminicídio entra nesse mesmo quadro de ocorrências. é frequente e é dolorosamente diário – ainda que o termo não seja recorrente e os nossos olhos não estejam acostumados a ele.
mas você já ouviu falar dele. ou você leu sobre ele. ainda que em outra roupagem. o feminicídio, normalmente, apresenta-se como crime passional. a passionalidade é comumente associada às mortes de mulheres justamente porque elas são cometidas, em uma assustadora porcentagem, por maridos, ex-maridos, companheiros, amantes, namorados…uma terrível associação à paixão – quando o seu nome é, na verdade, violência.
o feminicídio é o termo que utilizamos para homicídios de mulheres em função de seu gênero. já foi usado para se referir à morte de mulheres, mas hoje abarca um conceito mais político. a feminista e teórica diana russell conceituou e compreendeu que o feminicídio englobava questões de poder – e hoje nós utilizamos o termo para nos referirmos às mulheres que morrem por serem mulheres. é o que também abarca a ‘misoginia’ (o ódio ao gênero feminino).
talvez você nunca tenha ouvido falar que mulheres podem morrer por serem mulheres, apesar de, caso você seja uma mulher, já tenha temido por isso – ou tenha, infelizmente, vivido com essa questão muito próxima a você. ou talvez você ache improvável alguém ‘odiar’ uma mulher por ela ser uma mulher.
porém, a violência a que as mulheres estão marcadas passa pelo consentimento da violência: foram muitos anos em que os maridos ou os pais podiam simplesmente matar suas esposas dependendo de suas condutas em sociedade. esse é o exemplo extremo, mas as mulheres ainda hoje morrem em função do ódio e do desprezo destinados ao seu gênero. o ódio passa pelas gerações e é perpetuado pelo senso comum – ao qual o machismo se encaixa.
quando as feministas falam que o machismo mata, não é apenas força de expressão. ele mata, sim, e todos os dias. mulheres que morrem em função de seu gênero são as vítimas do patriarcado – esse outro termo estranho, mas que traduz uma realidade bem nossa conhecida. mulheres morrem porque uma sociedade patriarcal (aquela que é baseada no poder masculino, no poder do homem sobre a mulher, principalmente) as mata em função da violência – as mata porque seus companheiros sentem-se donos e proprietários dessas mulheres.
uma mulher que morre nas mãos de um ex-namorado que se recusa a aceitar o fim de um relacionamento é mais uma vítima do feminicídio – e da sua sociedade patriarcal. e não porque esse homem, indivíduo, sofre de ‘patriarcado’. ele é, também, agente e vítima do machismo. é machista e mata – porém, assim foi a vida inteira educado, adestrado, e nunca achou estranho se sentir dono de sua companheira.
quando os homens acham normal assediar uma mulher na rua, ofendê-la, violentá-la oralmente, agredi-la – tudo isso, e mais uma porção de coisas que chamamos de machismo – é que se resulta na violência. começa como uma “força de expressão” e termina como ação. termina em consentimento.
uma ação extrema e violenta, como um assassinato – um feminicídio – normalmente é resultado dessa conivência e desse comodismo que temos com o machismo (afinal, “ela é uma vadia mesmo, estava pedindo com aquela roupa; foi só um elogio, não uma cantada; ela estava bêbada, pediu para levar; andava na rua sozinha; se dedica muito à carreira e esquece da família; me trocou por outra pessoa; fica insistindo nessa história de feminismo, quando as mulheres já estão aí, com tudo o que merecem; feminismo é o contrário de machismo…”).
não é culpa das mulheres a violência que sofrem. normalmente, em muitos casos, mulheres não possuem independência financeira para denunciarem agressões. e em outros diversos casos, ainda podem estar pressionadas pela dependência emocional. e isso não é porque elas não são capazes de se virarem sozinhas, mas é resultado de muitos anos de violência simbólica – de opressão, de machismo, de senso comum – do pensamento que as condena pelo divórcio, pela opção de vida para além da casa e dos filhos, pela sua orientação sexual, pelo seu padrão de corpo, pela sua classe, pela sua cor…
alguns dados apavoram. eles fazem parte do Mapa da Violência – Mulheres de 2012. quase 70% dos casos de agressão às mulheres ocorrem na esfera doméstica – e agressão fatalmente leva ao feminicídio. aqui no brasil, mais de 40% das agressões contra mulheres são provocadas por parceiros e ex-parceiros – porém, da faixa etária dos 20 aos 49 anos, a porcentagem desses ataques por parceiros é ainda maior: mais de 65%.
e o brasil, na esfera global que abarcam as pesquisas da Organização Mundial da Saúde, ocupa o sétimo lugar, entre 84 nações, como um dos países com elevado nível de feminicídios.
e este ano ainda tivemos acesso às pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que caracterizam a ‘ineficácia’ da lei maria da penha, promulgada em 2006. 15 mulheres são mortas por dia no brasil, uma a cada uma hora e meia – mesmo depois da lei maria da penha. essa mesma lei é a principal responsável pelo reconhecimento e pela identificação de que existe violência doméstica. é ela um dos principais mecanismos que temos hoje para tentar combater os feminicídios. mas é uma lei que não consegue impedir, em sua totalidade, assassinatos de mulheres porque uma lei apenas não basta. toda a nossa cultura da violência contra a mulher (de consentimento com os feminicídios, de cultura do estupro, de objetificação e ‘coisificação’ dos corpos, de racismo e lesbofobia…) atravanca a eficácia de uma lei pelo fim da violência.
o feminicídio não simboliza que a vida das mulheres “vale mais do que a vida dos homens”. a morte é um processo e um fato para todas e todos, e ela não exclui homens de mulheres. porém, as causas da morte não são sempre iguais e é preciso compreendê-las sempre para que possamos futuramente evitá-las. entender o feminicídio não é supervalorizar a vida da mulher em detrimento da do homem. é simplesmente entender que quando as mulheres morrem por serem mulheres, vítimas do machismo corporizado em seus companheiros, pais, amigos, parentes e etc, nós ainda não estabelecemos uma sociedade igual entre mulheres e homens – e ainda estamos, e dói admitir, muito longe disso.
a violência tem inúmeras facetas. entender a sua causa é uma considerável parte do processo de erradicá-la. mulheres sofrem por serem mulheres; por serem mulheres e pobres; por serem mulheres e negras; por serem mulheres e homossexuais…
é lógico que é preciso minimizar a violência para garantir a qualidade de vida das pessoas. porém, não se combate a violência sem compreender suas causas. o machismo é, sim, a causa de muitas mortes. e já está na hora de ele ser desmascarado, desnudado e exposto – aos olhos e corações de todos. só assim a justiça pelas que tombaram – e a segurança das que ainda virão – valerá a pena.
* para ler mais sobre o assunto, veja os textos de marcia tiburi (AQUI), nádia lapa (AQUI) e lola (AQUI) – e uma coletânea de textos sobre violência contra a mulher no blogueiras feministas (AQUI).
FEMINICÍDIO: O TERMO ESTRANHO DE UMA DOR CONHECIDA, pelo viés de Nathália Costa.