Em setembro de 2012, pela primeira vez, as bandeiras coloridas do Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP) foram estendidas em um varal entre algumas árvores da Praça dos Bombeiros, no centro da cidade. As rodas de rima de improviso que existiam isoladas em diversas regiões de Santa Maria foram então convocadas a se reunirem em um único local público, na segunda sexta-feira do mês, para uma batalha de MC’s [Mestres de Cerimônia].
Um ano depois, as rodas de rima proliferam-se em ritmo cada vez mais intenso nos diversos bairros e regiões da cidade. O debate sobre a utilização dos espaços públicos e a democratização da cultura, que motivou a realização da Batalha dos Bombeiros, avança aos poucos e, mês a mês, dezenas de jovens aguardam a noite de sexta em que a cultura das periferias da cidade ocupa a praça central para um momento de celebração, de disputa e, quem sabe, de consagração.
Por tudo isso, a 12ª edição da Batalha dos Bombeiros, ocorrida no dia 13 de setembro, foi duplamente emblemática: porque marcou o aniversário de um ano do evento, e também porque foi vencida pelo jovem Luckas Mendes, o MC LS, morador da Nova Santa Marta, de apenas 13 anos, que participava pela primeira vez do evento. No segundo setembro da Batalha, tradição e renovação não duelaram, mas curtiram juntas a noite na praça.
Como de costume, LS foi premiado com um troféu artesanal, temático, elaborado especialmente para a ocasião pelo grafiteiro e artista plástico Rodrigo Marques “Cardial”.
Da Chácara das Flores – bairro da região Norte de Santa Maria no qual reside o artista – para a Batalha dos Bombeiros, e de lá para qualquer lugar: também há um ano, na segunda sexta-feira de cada mês, o trampo de Cardial é levado para a Praça dos Bombeiros e, ao fim da batalha, toma o rumo de algum bairro, vila ou zona da cidade, rumo à morada do MC vencedor.
Envolvido com o movimento Hip Hop da cidade há vários anos, Cardial começou seu contato com as artes visuais por meio do grafite e descobriu depois o artesanato e a meta-arte. “Eu nasci no Hip Hop, escutando Rap, tentando rimar, mas tomei mais noção mesmo através do grafite. Foi trocando ideia que percebi que sempre fiz parte desse movimento”, conta.
Das treze edições da Batalha realizadas até agora, Cardial não foi o autor de apenas um dos troféus: o da terceira edição, criado pelo artista Arthur Medina.
A vida de trabalhador não permite dedicação integral à arte propriamente dita, mas também fornece ideias e materiais para a elaboração das estatuetas. “Eu uso sempre o que está perto de mim, tudo pode virar arte. Não compro material nenhum”, afirma Cardial, que concilia a criatividade com a rotina de 44 horas semanais em uma serralheria.
Assim, explica ele, um vinil inutilizado pelos riscos pode tomar a forma da silhueta de um MC, e o trampo é fruto de estudo prático: qual o sentido em que se deve cortar o disco, qual broca da furadeira que permite a melhor definição.
A inspiração para os troféus feitos de materiais reutilizados é sempre relacionada a algum tema da cidade ou do próprio movimento social. Após a segunda grande operação policial de repressão à pixação em Santa Maria, a Operação Rabisco, a parte interna de um aerossol aromatizante virou um spray em miniatura, e o prêmio da edição seguinte da Batalha dos Bombeiros acabou sendo uma homenagem e uma demonstração de solidariedade aos pixadores e artistas de rua da cidade.
Quando ocorreram as manifestações de junho e o clamor por transporte público decente e pelo direito à cidade reverberou também em Santa Maria, o logotipo do Sistema Integrado Municipal (SIM) foi o mote do trocadilho que ilustrou o troféu da 10ª Batalha dos Bombeiros: ao SIM que zomba dos cidadãos com um serviço caro e uma integração que nunca foi plena, o prêmio da edição temática da batalha advertia: NÃO somos otários.
O vermelho do troféu de aniversário, que segundo Cardial simboliza o sangue da batalha diária e a obstinação do evento que se fortaleceu em um ano, despertou a curiosidade de um estudante de Artes Visuais que apreciava o evento. O segredo para o efeito especial – um tipo específico de silicone – revelou-se para Cardial no depósito da serralheria em que trabalha.
Na 13ª edição, a primeira depois do aniversário, a estatueta de prêmio trazia o busto de um indígena, em referência ao difícil momento enfrentado por índios e quilombolas, que sofrem ataques dos representantes do latifúndio no Congresso Nacional e lutam para que seus direitos – especialmente o acesso a seus territórios tradicionais – sejam respeitados no Brasil.
Um ano depois da primeira Batalha, nem todos os troféus puderam ser encontrados para as fotos, como os que foram para a Zona Leste de Santa Maria, conquistados pelos MC’s Fael e Billy, do grupo Rima Suprema. Um deles foi presenteado a Vico Pax, um dos idealizadores da Batalha dos Bombeiros, e se encontra com o grafiteiro fora da cidade.
Em Santa Maria ou não, os troféus da Batalha dos Bombeiros representam e materializam o fluxo da cultura: como as rimas dos MC’s que comparecem à praça, os troféus dirigem-se mensalmente ao centro, para de lá multiplicarem os focos e berços de improviso nos vários cantos da cidade.
De Panteras Negras (nome dado ao troféu da segunda edição, um punho negro cerrado de arame e vinil retorcido) a pixadores, do Soldado da Paz (primeiro troféu da Batalha dos Bombeiros) aos povos indígenas, as referências são variadas. Mês a mês, a resistência do Hip Hop e do povo das periferias ganha um suporte material, para simbolizar mais uma noite de encontro e efervescência de uma atividade que, com um ano já celebrado, demonstra que só tende a se fortalecer.
BATALHA DOS BOMBEIROS: UM ANO DE RIMAS E TROFÉUS NA PRAÇA, pelo viés e pelas lentes de Tiago Miotto.
tiagomiotto@gmail.com
Parabéns pelo Blog.
Muito bacana as suas matérias.
Christian
4p PERIFERIA TEM TALENTO.