Sorrindo para a câmera, o migrante senegalês Baba Ndiaye abre uma mala carregada com diversos produtos. “Eu trouxe esta mala cheia de relógios pois é este hoje o meu trabalho”. Baba é um dos entrevistados para o vídeo Materialidades na imigração: senegaleses em Caxias do Sul/RS, lançado no dia 10 de dezembro de 2015, durante o II Seminário de Mobilidade Humana e Dinâmicas Migratórias na Universidade de Caxias do Sul (UCS), trazendo relatos de imigrantes senegaleses da cidade. A produção é dos professores e pesquisadores Cristiano Sobroza Monteiro e Juliana Rossa e foi publicada, na íntegra, pela página “Senegal, Ser Negão, Ser Legal”, administrada pelo migrante senegalês Cher Cheik.
O comércio informal pelas ruas de cidades brasileiras não é mais uma novidade há tempos. Há rotas e mais rotas de comerciantes, de tipos de produtos, de formas de comercializar e interagir sem um teto sob a cabeça. O cenário das vendas informais é também o mais propenso a comerciantes que chegam de outros países. Esse cenário, pincelado de migrantes comercializando informalmente pelas ruas de uma cidade, já é bastante comum em algumas cidades da Europa, sendo tema de filmes, discussões e pesquisas. Dados da Organização Mundial para a Migração (OIM, IOM na sigla em inglês), órgão ligado à ONU, informam que a migração na Europa é responsável por um acréscimo de 70% à força laboral do continente. Hoje, assim como Baba, diversos migrantes optam pelo comércio informal para um primeiro sustento no país que decidem residir. Assim como no continente europeu, no Brasil, migrantes de origem africana sofrem com preconceito e desamparo por parte do Estado, sem opções que promovam empregos e espaços interculturais entre esses migrantes e os brasileiros.
Já no Senegal (país situado no litoral oeste da África), dados sobre a economia local informam que mais de 40% da população encontra-se em situação de desemprego, enquanto que 23% da força da economia é representada pelo setor de comércio (agricultura é o setor com mais peso). 91% dos postos de trabalho são informais. Esses dados são apresentados por pesquisadores através do livro Migrações Internacionais – O caso dos senegaleses no Sul do Brasil, publicado em 2015 pela Editora Quatrilho (localizada na serra gaúcha), organizado pela professora Vania Beatriz Merlotti Herédia.
Devido a questões como o desemprego, hoje, o Senegal é um país de muitos emigrantes. Em aproximadamente 14 milhões de habitantes, três milhões de senegaleses vivem fora de seu país de nascimento. Em seu território, grande parte das migrações que chegam ao Senegal ocorrem entre a população que sai do campo para as cidades, principalmente Dakar (capital do Senegal). O país também é destino de migrantes de outros países africanos que buscam no Senegal uma vida mais tranquila (na África Oriental, é um dos países com mais baixos índices de violência – principalmente em comparação com outros países que vivenciam conflitos civis). Em todo o Brasil, a migração senegalesa se expande como um fenômeno há quatro anos. Desde 2002, o número da presença de africanos no país cresceu em 30 vezes. A situação desses migrantes é mediada pela Polícia Federal, o que acaba resultando em um número bem maior de migrantes que nem sequer são contabilizados por não passarem no crivo dos federais. A entrada de senegaleses no país ocorre principalmente pela região norte, através do estado do Acre, vindo de países como a Bolívia e o Peru. Esse também é o caminho de haitianos e bolivianos, outras duas nacionalidades bastante presentes no Brasil atual.
No Rio Grande do Sul (um dos estados brasileiros que mais tem recebido migrantes de origem senegalesa), Santa Maria é uma cidade conhecida por ser formada por estudantes e militares, portanto, um espaço de passagem. Seu comércio é o sustento principal para a população que vive por aqui, uma vez que o município não é foco de indústrias (como é o caso de outras regiões do Rio Grande do Sul que recebem migrantes senegaleses, a exemplo da serra gaúcha). No caso de migrantes senegaleses que chegam ao país principalmente para trabalhar e arrumar uma fonte de renda que os possibilite sustentar sua família no Senegal, a saída, em muitos casos, é a do comércio ambulante.
A questão é que, ao contrário de outros municípios gaúchos, Santa Maria é uma cidade onde o comércio de rua é proibido desde 2010. As opções dos migrantes senegaleses que residem aqui é o emprego formal – um espaço hoje distante do ideal, com situações de trabalho precárias, com falta de vagas e ausência de políticas que firmem e sustentem essa população de migrantes.
“Pode levar maleta, só não pode agressão”
A apreensão e fiscalização de comerciantes informais na cidade tem se intensificado – uma premissa divulgada abertamente pela administração municipal nos jornais locais. Acontece que os senegaleses que vivem em Santa Maria nem sempre conseguem emprego formal rápido (ou em condições de sustentar a si mesmos e à família que eles deixam no Senegal). Isso resulta no comércio informal, chamado pelos próprios senegaleses de “maleta” (a venda de relógios e bijuterias nas ruas centrais). Em outros municípios onde residem (a exemplo de Passo Fundo e Caxias do Sul), esse comércio informal é perceptível. Pelas ruas, é comum perceber migrantes senegaleses, normalmente acompanhados, com seus produtos em suas maletas.
Em Santa Maria, no último dia 14 de janeiro e 2016, a apreensão dos produtos dos senegaleses por parte dos fiscais da prefeitura gerou polêmica. O senegalês Mbaye Ndiaye estava no centro da cidade comercializando seus produtos, ao final da tarde, quando foi abordado por fiscal da prefeitura. Mbaye não fala português ainda, e, por isso, comunicando-se em wolof (uma das línguas faladas no Senegal), teve seu relato traduzido por amigos que o acompanham na cidade desde sua chegada ao Brasil, há três meses.
Os senegaleses que acompanham Mbaye afirmam que, no dia 14, os guardas chegaram acompanhando os fiscais da prefeitura, pegando a mercadoria de Mbaye, puxando a maleta das mãos do mesmo. Assim, um dos quatro guardas presente na ação teria empurrado Mbaye, que caiu no chão após a agressão. “Pode pegar a mercadoria, sem problema. Só não pode agressão”, diziam os senegaleses, juntos, em entrevista concedida na tarde de sexta-feira, dia 15 de janeiro, um dia após o ocorrido. Quem auxiliou Mbaye na tradução de seu relato foram seus amigos Abdou Digne e Ousmane NDiaye (ambos há três anos no país). Abdou e Ousmane estavam no Calçadão no momento e foram chamados por uma testemunha do caso para irem ao encontro de Mbaye. Souberam que o amigo teria se machucado, mas não o encontraram no local quando chegaram para socorrê-lo.
A situação é confirmada por uma testemunha que, no dia do ocorrido, publicou fotos de Mbaye na rede social Facebook. A testemunha reforça a ação na qual a maleta foi mesmo puxada das mãos do senegalês, seguido de um empurrão ao mesmo, fazendo-o gritar. Nesse momento, algumas pessoas se juntaram à cena e os guardas teriam novamente empurrado Mbaye, fazendo-o cair no chão. No momento, a população ao redor teria prestado socorro a Mbaye, que preferiu não registrar ocorrência na Polícia.
Outras testemunhas que presenciaram o caso afirmam, também através do Facebook, que o Mbaye teria caído e batido a cabeça no chão, mas sem ter sido empurrado pelos guardas. Aos olhos desses, o erro dos agentes foi não ter prestado socorro ao rapaz depois da queda. Uma testemunha afirma que ele teria ficado três minutos inconsciente após ter batido a cabeça no chão.
A Guarda Municipal argumenta que foi até o local prestar apoio aos vigilantes da prefeitura que costumam fiscalizar as mercadorias dos vendedores ambulantes no centro da cidade. De acordo com o coordenador da Guarda Municipal, Alciomar Cordeiro, o acompanhamento dos fiscais por parte de agentes da GM tem sido recorrente e exigido pela Procuradoria e pela prefeitura do município. A justificativa, conforme Cordeiro, é devido aos casos de agressões e conflitos entre fiscais e vendedores durante as apreensões. Porém, Cordeiro afirma que conflitos com senegaleses que comercializam no centro da cidade ainda não teria ocorrido, sendo o primeiro caso o registrado na semana passada. “A Fiscalização tem nos pedido o apoio para a segurança devido aos conflitos com vendedores ambulantes. Nesse dia, os fiscais chegaram e apreenderam o material em uma ação rápida, o rapaz não conseguiu fugir com a mercadoria. Os fiscais, então, apreenderam o material e saíram. O rapaz ficou indignado e bateu com o rosto no poste, ou não chão, só sabemos que ele caiu e o pessoal que estava por perto foi prestar apoio a ele”, explica Cordeiro.
O coordenador da Guarda afirma que, na ocasião, eram quatro guardas na ação, sendo que um deles desempenhava o papel de motorista e aguardava na van. Cordeiro salienta que os guardas não conseguiram ver o que ocorria devido ao movimento de pessoas, algumas, conforme o coordenador da Guarda, xingando os agentes presentes. “Os guardas só não prestaram socorro porque havia muita gente no entorno e isso prejudicou, eles ficaram com receio porque a população que foi chegando pensou que os agentes tivessem agredido o rapaz”, explica. Cordeiro informou que os guardas registraram ocorrência policial devido ao tumulto. O coordenador salienta que os guardas não chegaram perto do rapaz e que a agressão não ocorreu.
Além disso, Cordeiro afirma que as fotos publicadas em rede social não são provas de que uma agressão tenha ocorrido. O Setor de Fiscalização da prefeitura, que solicita o apoio dos guardas no momento da apreensão, também nega que tenha ocorrido alguma agressão a Mbaye. Cordeiro salientou que a ocorrência policial foi registrada, porém, possivelmente não haverá investigação policial, apenas será informado à Corregedoria do município, procedimento padrão em casos que envolvam servidores.
Mbaye, em wolof (traduzido para o português com a ajuda de Abdou e Ousmane) relata que, após o ocorrido, se sentiu muito triste. Mas que não quis procurar a Polícia, e nem reagir com agressividade, apenas espera que a situação não ocorra novamente. Mbaye também relatou que o fiscal o empurrou, pegou as coisas e saiu, assim como os guardas. A ajuda veio apenas de quem estava na rua. Luís Augusto Bittencourt Minchola, aluno do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), integrante do grupo Migraidh (que realiza projetos de extensão na cidade), acompanhou alguns senegaleses na procura por Mbaye, devido à informação de que ele teria se machucado. “Fomos à prefeitura e perguntamos aos fiscais e guardas, que chegavam lá no momento, sobre Mbaye. Eles não souberam informar, mas o tom da conversa chamou muito a atenção. Eu ainda não sabia o que tinha acontecido ao certo, então perguntei se eles tinham dado alguma assistência a Mbaye. Insisti na pergunta, mas eles apenas me respondiam que ele teria “se jogado” ou “feito cena”, ainda sabendo que ele poderia ter se machucado, não mostravam qualquer preocupação. Chegou um momento em que, apenas pelo fato de estar perguntando se eles tinham dado alguma assistência, um dos guardas perguntou se eu iria interferir no serviço público, nitidamente tentando me intimidar. Tudo isso deixa a imagem de que, nesse caso, os agentes públicos não estão preocupados com as consequências da abordagem que eles realizaram e revelou um tom autoritário inaceitável”, relata Luís.
Decreto proíbe comércio nas ruas
Abdou relatou que a agressividade ao recolher a mercadoria já ocorreu em outros momentos, a exemplo de uma situação no mês passado. Na ocasião, foi Ousmane quem sofreu. “Quatro guardas seguram ele, ele não fez nada”, relata Abdou. Eles reafirmam que os fiscais podem pegar a mercadoria, pois os senegaleses não costumam reagir com agressividade. O que todos reforçam é que não gostariam de força física ou violência no momento da apreensão. Eles explicam que, em vários momentos, a fiscalização é agressiva sem necessidade. Na última terça-feira, dia 19 de janeiro, a fiscalização filmou a apreensão de materiais dos senegaleses que comercializavam bijuterias e relógios na Avenida Rio Branco. Pelo vídeo, os vendedores ficam incomodados com o uso de câmera no momento da apreensão, o que causa uma discussão entre a fiscalização e eles. Os senegaleses não respodem à apreensão, mas discutem com os fiscais e guardas devido ao uso da câmera.
Tiago Candaten, coordenador do Setor de Fiscalização da prefeitura, nega que a agressão a Mbaye tenha ocorrido no último dia 14 de janeiro. Candaten explica que as ações de apreensão por parte dos fiscais serão, a partir do ocorrido, sempre registradas em vídeo pela própria fiscalização.
O que acaba sempre ocorrendo nessas situações é o recolhimento do material por parte dos fiscais. No outro dia, portando uma nota fiscal, o vendedor pode retirar o produto mediante o pagamento de multa no valor de R$ 150,00. A multa aumenta conforme a reincidência do vendedor e, sem a nota, não é possível retirar o produto de volta, que fica confiscado pela prefeitura.
A situação dos vendedores ambulantes, como um todo, começou a se alterar em Santa Maria a partir do ano de 2010, quando os camelôs que ocupavam a extensão da Avenida Rio Branco foram realocados pelo poder municipal no Shopping Independência, estabelecimento popular construído nas edificações do antigo cinema de rua Independência, localizado na praça Saldanha Marinho, ponto central da cidade. De lá para cá, a atual gestão do prefeito Cezar Schirmer (PMDB) tem levantado a bandeira de coibir a presença dos chamados “informais” nas ruas do centro. Tiago Candaten, do Setor de Fiscalização da prefeitura, explica que a intenção da administração municipal, em 2010, foi o de construir um estabelecimento para o comércio informal (o Shopping Independência) que abrigasse essa necessidade. A cada comerciante de rua, uma vaga foi ofertada no Shopping. Essas vagas já foram todas ocupadas – o que, obviamente, não acompanha o crescimento do comércio informal nas ruas. De 2010 para cá, mais vendedores decidiram seguir o ramo, mesmo sem mais espaço no Shopping.
Candaten explica que a prefeitura baixou, então, um decreto (065, de 2010) que coíbe a comercialização nas ruas, justamente para que não se necessitasse, no futuro, da construção de mais um shopping popular com o uso de verbas públicas. O coordenador da Fiscalização reforça que será intensificado o combate às vendas informais. “É uma questão de justiça com o comerciante que paga seus impostos. Temos sido cobrados por isso”, relata. Nem o decreto, nem o número de vagas ofertadas no Shopping Independência são suficientes para “coibir” a movimentação do comércio informal nas ruas, o mesmo que possui vendedores de brinquedos, de bijuterias, artesanatos, alimentos – estrangeiros ou nacionais.
No caso das vendas informais no centro, a situação dos povos indígenas é regida por lei federal, o que possibilita que os mesmos ocupem seu espaço no Calçadão para comércio de seu sustento. Especificamente no caso de senegaleses, observa-se a necessidade de legislação e atenção que compreendam a realidade desses migrantes que hoje vivem no Brasil. Os senegaleses entrevistados para esta reportagem sabem que é complicada a venda de mercadorias no comércio informal, principalmente por questões de nota fiscal e permanência nos espaços públicos e na rua durante o comércio. Porém, eles problematizam sobre a complicação para obter emprego formal hoje no Brasil: quando contratados, trabalham muitas horas por salários que mal pagam o aluguel. Em alguns casos, nem mesmo a carteira de trabalho é assinada durante o desempenho de suas funções.
“Não dá para esperar”
Os senegaleses se dividem em algumas áreas centrais no momento de comercialização de rua em Santa Maria (RS): alguns ficam em frente ao Hospital Caridade, outros no Calçadão e outros ao longo da Avenida Rio Branco.
“A gente busca trabalho, mas não consegue ainda. Sem trabalho, não vai comer, pagar aluguel”, explica Abdou. Abdou e Ousmane ainda buscam emprego, mas já trabalharam no sistema formal. Mbaye, assim como Mandiaye Ndiaye, que o acompanhava no dia da entrevista, estão apenas há três meses no Brasil. Eles moram em um apartamento dividido entre sete senegaleses.
Abdou explica que, normalmente, o senegalês busca trabalho no sistema formalizado (após conseguir a carteira de trabalho). Muitos organizam currículos com a ajuda de amigos brasileiros e conseguem inscrevê-los no Sistema Nacional de Empregos (SINE) na cidade em que residem. Porém, a dificuldade para a contratação os faz buscar trabalho com a “maleta”, que é como chamam o ramo de venda de bijuterias nas ruas. Para eles, o público respeita muito e costuma gostar de comprar.
Abdou e Ousmane estiveram em Porto Alegre, capital gaúcha, antes de Santa Maria (RS). Ambos trabalharam em restaurante nesse período por um salário de R$ 1200, que é pouco para aluguel no Brasil e sustento de familiares no Senegal. Abdou trabalhou por nove meses no restaurante. Ousmane, por um mês – não queriam assinar a carteira dele no serviço.
“Nós quer serviço para trabalhar, mas problema é que no emprego as pessoas incomodam muito. Salário é muito pouco, mandar para família é pouco. Agora eu larguei o serviço e trabalho com maleta. Não é melhor, mas é um pouco melhor, mais dinheiro. Quando tu trabalha com carteira assinada, recebe sempre dia cinco do mês, mas a maleta tu pode mandar dinheiro sempre. Não dá para esperar”, explica Abdou.
Com a ajuda de Abdou, Mbaye explica que trabalha com maleta desde que chegou ao Brasil, porém, segue em busca de serviço formal. Mbaye ainda não conseguiu emprego, porém, diante da necessidade de renda, seguirá comercializando com a maleta. Eles reforçam que precisam pagar aluguel, sustentar família, comer – todas necessidades que os fazem trabalhar com a maleta diante da realidade precária nas condições de emprego. A carteira e o currículo, todos possuem. O problema segue sendo as vagas disponíveis.
“É preciso ir no SINE todo dia. Vai largar currículo, mas as pessoas não vão ligar. Aqui é muito difícil”, explicam. Eles pensam, muitas vezes, em sair de Santa Maria diante da falta de oportunidade. No mês passado, Ousmane e Abdou voltaram a Porto Alegre para trabalhar temporariamente. Os empregos oferecidos em Santa Maria acabam sendo rápidos e temporários.
Ainda no ano passado, a Organização Internacional para as Migrações (OIM, IOM na sigla em inglês) elaborou uma lista de mitos, fatos e respostas sobre migrações. O material foi feito em conjunto com o ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados), OHCHR (Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos), Centro Regional de Informação das Nações Unidas (UNRIC) e UNDP (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, conhecido em português como PNUD).
Entre os argumentos da lista, está a questão da geração de emprego e renda focado no segmento de migrantes. Como o próprio texto aponta, “Migrantes e refugiados contribuem para ambas as economias como empregados e empreendedores criando novas empresas e negócios. A integração entre migrantes e refugiados, no mercado de trabalho, pode ser cara em um primeiro momento, mas é considerada um investimento de alto retorno. Além disso, os migrantes contribuem com seus países de origem, através do envio de dinheiro para casa: hoje as remessas são três vezes maiores do que a ajuda pública, e ainda promovem crescimento e desenvolvimento para as comunidades, aumentando o acesso a educação e cuidados a saúde. Os migrantes atuam como pontes entre os dois países, transferindo conhecimentos e habilidades que podem contribuir para suas comunidades”, diz o texto.
Estatuto do Estrangeiro não acompanha os fluxos atuais
Atualmente, a questão dos migrantes no Brasil está legislada a partir do Estatuto do Estrangeiro, ainda da década de 80 (considerado por estudiosos como um documento que não leva em conta os novos fluxos migratórios, principalmente aqueles que ocorrem a partir do ano de 2010). Assim, muitos senegaleses que chegam ao Brasil, o fazem por meio da lei do Refúgio, instrumento internacional. A solicitação de refúgio é concedida a qualquer pessoa, em qualquer Estado, enquanto as autoridades nacionais competentes daquele país julgam a solicitação. Pelo refúgio, é possível ingressar no país sem a necessidade de um visto, como prevê o Estatuto.
Ao chegarem ao Brasil, os senegaleses podem solicitar refúgio: com isso, ganham um CPF e uma carteira de trabalho para se empregarem no país. O refúgio está previsto na Lei do Refúgio, número 9474, de 1997. O protocolo aberto para solicitação de refúgio fornece a documentação ao migrante, o que possibilita que o mesmo viva no país até a análise da sua solicitação. Quem analisa as solicitações é o Comitê Nacional para Refugiados (Conare). As respostas levam de um a dois anos para chegar ao migrante, principalmente devido ao grande número de solicitações de refúgio pedidas no Brasil desde 2010. Assim, a depender da análise do Comitê, o migrante pode receber visto humanitário (o que o permite permanecer no Brasil) – mas isso não é o que ocorre sempre, em todas as situações.
Em Santa Maria, o Migraidh (Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão da UFSM Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional e representante da Cátedra Sérgio Vieira de Mello na Universidade Federal de Santa Maria) costuma ajudar migrantes na confecção e encaminhamento dos currículos, em aulas de português e nas explicações dos direitos do migrante. Ousmane e Abdou conhecem o grupo há dois anos já. “Pessoas legais e especiais. Ajudam muito”, contam sorridentes. “Quando temos problema, eles sempre correm pra ajudar”, conta Abdou.
Luís explica que toda a regulação deve ser feita com cuidado. “Temos a situação de migrantes que dependem das maletas, é o sustento deles. Hoje, a legislação não permite que eles vendam na rua, mas ao mesmo tempo não há alternativa que seja oferecida”, argumenta Luís.
O integrante do Migraidh explica que vagas no Shopping Independência foram solicitadas à prefeitura, mas não há nenhuma hoje disponível. Até o momento, não se tem projetos para expansão do shopping popular.
Atualmente, não há um órgão específico na prefeitura que seja responsável por dar suporte e assistência a migrantes na cidade. O contato acaba sendo com a Secretaria de Desenvolvimento Social, que pode auxiliar em várias questões, mas no caso do comércio informal, não pode ajudar. Candaten, da coordenação do Setor de Fiscalização da prefeitura, explica que, em muitos casos, os senegaleses passam temporadas comercializando em outras cidades onde o comércio de rua é permitido.
Abdou relata que é comum retornar ao Senegal depois de alguns anos juntando dinheiro, voltando ao Brasil depois e permanecendo por mais um tempo. Eles afirmam que gostam do país, mas ficam incomodados com a agressividade em algumas situações. “Pega maleta, sem problema. Só não pode empurrar. Isso é muito triste a todos os senegaleses, todos são mesmo sangue, mesmo lugar”, afirma Ousmane.
No final desta semana, soubemos que entre os sete senegaleses que concederam entrevista para esta reportagem, três estariam mais próximos de serem contratados para empregos formais. Outros dois, que também residem na cidade, trabalham na construção civil. A busca pelo emprego que os possibilite regularizar sua situação – mas, ao mesmo tempo, atender às necessidades pessoais e de familiares, segue. Mas sem apoio direto de políticas públicas.
No livro Migrações Internacionais (citado ao começo desta reportagem), o senegalês Abdou Lahat Ndiaye – residente há alguns anos no Brasil – explica um conceito caro ao povo do Senegal: a teranga (em wolof). Para os senegaleses, o príncipio da teranga é o de que existe igualdade sem distinção, sem discriminação. Em uma recente visita a seu país de origem (que resultou em um relato disponibilizado neste mesmo livro), Abdou Lahat escreve:
“A teranga nos diz que temos que acolher bem quem chega. Tão bem que ele vai querer voltar”.
Que a teranga não se demore e também chegue ao Brasil.
“Pode pegar maleta, só não pode agressão”, pelo viés de Nathália Costa.