Ao dar nossos primeiros passos como roteiristas, imediatamente imitamos o que víamos. Éramos mulheres, mas nossos personagens eram homens. Para nós, não havia dificuldade em escrever personagens que não eram do nosso sexo, afinal, crescemos vendo histórias sobre eles, aprendendo a admirar suas forças e até suas fraquezas, aprendendo a ver o mundo com os seus olhos. Os “filmes de mulherzinha” eram as comédias românticas, aquelas que mostravam a mulher de quase trinta desesperada para casar ou a profissional bem sucedida que esqueceu da vida pessoal. Nossas primeiras personagens mulheres vieram apenas quando descobrimos nossas vozes e estilos pessoais. Naturalmente, os protagonistas homens desapareceram.
Mas não foi até perceber um certo espanto (ou, no mínimo, surpresa) na cara de um homem ao ouvir que éramos roteiristas (e mulheres!), que começamos a ter uma noção da participação feminina no audiovisual e entendemos que éramos poucas, menos das que pensávamos e muito, muitas menos das que precisaríamos ser. Se é a partir das narrativas que criamos grande parte do nosso imaginário coletivo e passamos adiante questões fundamentais à construção de identidade, como é possível que essas narrativas sejam criadas e representem apenas uma parte muito específica da população?
Por isso, nos juntamos para organizar a Oficina de Roteiro Audiovisual para Mulheres, uma oficina de e para mulheres. O grande número de inscrições justificou sozinho a pergunta que tantas vezes nos fizeram: “Por que uma oficina só para mulheres?”. Os ambientes da área do audiovisual (tanto dentro do mercado de trabalho, como em universidades, escola e oficinas) são compostos por uma grande maioria masculina. Esses ambientes podem ser pouco acolhedores para iniciantes, ainda mais durante um processo tao íntimo e revelador como a iniciação à escrita. Assim, afastam mulheres que, mesmo desejando entrar nas artes audiovisuais, muitas vezes acham seu funcionamento segmentado demais, agressivo demais, e então ficam nas margens, silenciando a vontade, na espera de um melhor momento.
Durante um total de doze encontros, nos focamos em oferecer as ferramentas necessárias para que as participantes conseguissem pensar narrativamente e levar suas ideias até o papel, em forma de roteiro audiovisual. Mas logo desde as primeiras aulas, vimos que o objetivo meramente educativo estava dando lugar a uma experiência mais profunda ainda.
À medida em que fomos avançando na construção das histórias que cada uma delas devia desenvolver como parte do programa da oficina, percebemos que, muito mais que formando profissionais, estávamos oferecendo um instrumento de amplificação de voz. Para que elas se expressassem, se descobrissem. As segundas e as quartas-feiras viraram um parêntesis estimulante em meio ao cotidiano e a APPH (Associaçao de Práticas e Pesquisas em Humanidades) virou um espaço seguro onde todas nós podíamos compartilhar experiências, podíamos nos ajudar e aprender umas das outras.
Isso fez toda a oficina valer a pena: a comunhão. Porque não, mulheres não são naturalmente competitivas. O que se viu nesses três meses foi uma demonstração incrível de apoio e crescimento coletivo. Nenhum projeto passava sem ser debatido, sem ser opinado, sem que alguém sugerisse referências. Foi muito reconfortante terminar a oficina com a certeza de que todas nós, participantes e ministrantes, encontramos ali coisas que nos ajudarão em nossas vidas e trajetórias.
Aumentar e melhorar a representatividade feminina no audiovisual passa por motivar mais mulheres a escreverem suas histórias, as histórias que imaginam, as histórias que vivem, as histórias das que gostariam de ser protagonistas ou as histórias das quais são vítimas. Mas hoje, falar apenas em representatividade parece pouco. Em tempos de espancamento de mulheres por parte da brigada militar, de retrocessos MEDIEVAIS nos direitos de todas nós, de uma ofensiva intensa de bancadas tão conservadoras que chegariam a ser cômicas (se não fossem trágicas). De repente, a representatividade parece um tema menor. Nos resta a esperança de que a diferença que esta experiência nos fez, tenha atingido aquele pequeno grupo de mulheres também. A esperança de ter conseguido prover um espaço onde elas pudessem, muito além das questões estéticas que tentam nos fazer crer que é o que significa ser mulher, se reconhecer como tais e reconhecer na outra uma aliada, uma companheira.
E se é para fazer “filmes de mulherzinha”, que assim seja. Mas que essas mulherzinhas sejam muitas, sejam livres, sejam complexas, sejam fantásticas. Que elas sejam tudo que nós somos.
As histórias que nos contam, pelo viés de María Elena Morán* e Eleonora Loner**
*María Elena Morán é ficcionista work-in-progress venezuelana, formada na EICTV, em Cuba. Há três anos mora e trabalha no Brasil como roteirista autônoma para cinema e TV.
**Eleonora Loner é roteirista formada pela EICTV-Cuba e pela UFPel. Trabalha em projetos de ficçao e documentário em diversos formatos, além de projetos educativos.