Zumbi, presente! Ocupação do Leblon por negras e negros do Rio de Janeiro e ensaio no Morro da Mangueira.

Diria Oliveira Silveira, a “liberdade é asa sem corpo”. Voa alto. E no voo, alça novos sonhos e esperanças de dias mais igualitários. Foi no 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, que um grupo protagonizado por negros e negras em luta ocupou as praias de Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro. Puxado pelos Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e 6 de Abril, uma marcha saiu às 10h do posto 9 em direção ao posto 11. Motivada pela fala de Natana Magalhães, saí correndo do 21º curso do Núcleo Piratininga da Comunicação por volta das 11h30. Mas não sem antes trocar algumas palavras emocionadas com essa mulher negra, historiadora e muito dona de si. “Foi muito significativo que, numa mesa de cinco pessoas, eu tenha sido a última a falar”. Sim, a única mulher ali era deixada pro fim. Ainda, falamos sobre violência dos próprios companheiros de esquerda, um fato triste que havia ocorrido comigo no dia anterior. Nosso pequeno intercâmbio de experiências havia deixado claro: o machismo não tem grupo para ocorrer. Seus critérios são simples: mulher sozinha pede assédio. E seremos nós as únicas a poder nos libertar, pois a solidariedade masculina é apenas um dos passos para o caminho de equidade.
Foi uma hora de caminhada até encontrar aquele grupo que me faria pensar: existe amor, existe espírito coletivo e existe um futuro. “Moça, tu sabe porque eles gritam ‘Fora PM!”? – me perguntou uma porteira. Sim, porque a Polícia Militar (PM) mata 70 mil jovens negros por ano. Um dia antes, Luiz Antonio Simas, historiador e sambista, em palestra, disse “se um dia houver revolução, será quando o morro descer do asfalto”. Paráfrase ao samba de Wilson das Neves: O povo virá de cortiço/alagado e favela/mostrando a miséria sobre a passarela/sem a fantasia que sai no jornal/vai ser uma única escola, uma só bateria/quem vai ser jurado? Ninguém gostaria/que desfile assim não vai ter nada igual”.
No 20, foram lançadas sementes. Não cheguei a tempo da marcha, mas na areia do Leblon já estava montada a tenda da roda de samba, da conversa amiga, da troca solidária. Comunidade é ajuda mútua, intercâmbio de ideias, experiências. Dores, amores, sufocos e alentos. Ali, meu eu se ausentou para participar de uma das aulas mais lindas e fortes da vida: a aula do companheirismo e da rebeldia, herança que vem de centenas de anos.

O que fomos de adubo
o que fomos de sola
o que fomos de burros cargueiros
o que fomos de resto
o que fomos de pasto
senzala porão e chiqueiro

Oliveira Silveira

 
Negrxs, branxs, pardxs, mulheres, homens, trans, gays, bi’s: não há distinção quando o desejo de transgressão e de mudança é conjunto. Era só chegar e se integrar. A despeito da elite, que olhava com surpresa a ocupação, o ônibus de papel acabara de chegar. No letreiro “Leblon – Palmares”. Nos bancos, a caravana da revolução. Foram horas intensas. A população da zona norte corresponde a, aproximadamente, 37% da população inteira do Rio, mas dessa região, pouco se sabe. Dali, apenas as balas perdidas e mortes são noticiadas. Que não há morador de rua no morro, que a fome não aperta porque há, na coletividade, o espírito da ajuda, isso não.
Já no dia seguinte, no Morro da Mangueira, acontecia o ensaio da escola de samba de mesmo nome, com participação de Alcione, que fazia aniversário, Maria Betânia, a menina dos olhos de Oyá, Fafá de Belém, Leda Nagle e outrxs amigxs. Apesar de suas belas participações, a principal intervenção seria da própria comunidade. Ao início, uma banda de mulheres abriu o samba. Mais tarde, a bateria começava a interpretar o samba-enredo do ano, um verdadeiro contraponto à ofensiva católica e evangélica que vem tentando interferir nos nossos corpos e no mais profundo de nossas vidas: nossa cultura, o modo como interpretamos as coisas do mundo, nos relacionamos com ele e damos sentido às experiências vividas.
 

Vou no toque do tambor… ô ô
Deixo o samba me levar… Saravá!
É no dengo da baiana, meu sinhô
Que a Mangueira vai passar

 
O samba, de Alemão do Cavaco, Almyr, Cadu, Lacyr Da Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão, é também uma homenagem à Maria Betânia. Mas além disso, e principalmente, é uma afirmação da religiosidade de matriz afro. É na força das mulheres negras que se pode afirmar a resistência da ancestralidade africana. Protagonistas de um dos atos mais significativos dos últimos dias, quando foram agredidas brutalmente pela Polícia Militar, em Brasília (DF), as mulheres têm ensinado o enfrentamento. Ali no Morro, davam prosseguimento ao contraponto que, ao desconstruir o moralismo cristão, constrói o empoderamento.
Na entrada, conforme o diálogo prosseguia, emprestei minha câmera, esse armamento pesado, aos meninos que estavam em frente à bilheteria. Ficamos conversando, eu ensinando a operar o aparelho e eles me contando histórias. “Tia, amarra a gente no poste e tira foto que aí sai no jornal de amanhã”, disse um deles. Não poderia ter representado melhor tudo que eu pensava. A dor da gente não sai no jornal. Com espanto, tentei questionar se algum amigo havia passado pela situação. Mas acontece que as dores nem sempre se traduzem em palavras.
A noite foi até o amanhecer. A quadra lotada de gente, de suor, samba e emoção. Passistas, sambistas, baterias, dançarinxs. Cerveja, guaraná, caldo de cana, pastel, bolinho de aipim e carne seca. Horas mágicas. A escola mais bonita é a da cultura popular. Ela não morreu, como anunciam os apocalípticos. Está mais forte que nunca, pronta para invadir as ruas. Um viva à luta popular, a maior riqueza desse chão!

Não digam que fui rebotalho,
que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.

Carolina Maria de Jesus

Abaixo, um pouco dos registros realizados nestes dias.
Mais abaixo, o vídeo que finalizou o ato no Leblon. 
   
   
                             
Vídeo: https://youtu.be/YbImuADQ2VE
Zumbi, presente! Ocupação do Leblon por negras e negros do Rio de Janeiro e ensaio no Morro da Mangueira, pelo viés de Liana Coll

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