A brasileira Vale mascara exploração brutal com a linguagem da solidariedade Sul-Sul.
Tanto durante quanto depois dos seus dois mandatos, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva baseou grande parte do seu legado na orientação ‘Sul-Sul’ do Brasil em relação à África. Como resultado, Lula é tido com tanta estima quanto líderes das libertações nacionais como o sul-africano Nelson Mandela ou o moçambicano Samora Machel.
Em sua primeira visita presidencial a Moçambique, em 2003, Lula foi recebido como herói e deu vários discursos emocionados sobre a importância da solidariedade entre o Sul Global. Simpatizou-se ao combate à pandemia de AIDS e prometeu apoio brasileiro a um projeto que produziria drogas a baixos preços.
No entanto, talvez as palavras de Lula não tenham dito tanto quanto as pessoas que o então-presidente levou consigo. A comitiva brasileira incluía Roger Agnelli, o imprudente banqueiro que teve um papel-chave na avaliação da estatal Companhia Vale do Rio Doce durante seu processo de privatização em 1997.
Agnelli, pois, tornou-se o primeiro presidente e CEO, liderando a corporação, que foi consagrada como ‘a pior empresa do mundo’ em 2012 por ativistas devido a suas relações de trabalho, seu impacto nas comunidades locais e seu histórico ambiental.
O histórico da Vale mostra que as práticas e atitudes das multinacionais baseadas nos países dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) não têm nada de diferente das mineradoras globais ligadas aos centros do capitalismo.
Não que isso tenha manchado a reputação de Agnelli. Impulsionado pelo ‘superciclo de commodities’ com um crescimento médio de 150% entre 2002-2012, a aparente infinita demanda chinesa por ferro e minério e o capital abundante do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Agnelli parecia ter o toque de Midas. Seu tempo no comando da Vale foi caracterizado por uma expansão global agressiva e fabulosos lucros e retornos aos acionistas.
O time de relações públicas de Agnelli na Vale trabalhou duro para projetar um espírito de cooperação Sul-Sul em sincronia com a retórica de Lula, alegando que investimentos brasileiros em mineração no Sul Global levariam empregos e desenvolvimento econômico ao contrário das empresas do ‘Norte imperialista’.
Porém, ao acompanhar-se a trajetória da Vale, seja dentro do Brasil, em Moçambique, onde a empresa investiu numa mina de carvão, numa ferrovia e num complexo portuário, seja no Canadá, onde a Vale adquiriu operações de níquel, surge um quadro bem diferente — há uma dissonância entre a retórica da Vale e a realidade dos lugares em que a empresa opera por todo o mundo.
Como funcionária do fundo internacional de trabalho criado pelo sindicato dos metalúrgicos, o maior sindicato representando mineradores no Canadá, eu tive a oportunidade de monitorar tal incongruência na última década — tanto no Canadá, depois que a Vale comprou a Inco, uma das maiores mineradoras canadenses, quanto em Moçambique, onde os mineradores têm duradouros laços devido aos programas de treinamento do sindicato.
O histórico da Vale mostra que as práticas e atitudes das multinacionais baseadas nos países dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) não têm nada de diferente das mineradoras globais ligadas aos centros do capitalismo.
Quando da sua chegada ao Canadá, a Vale usou-se de sua experiência em marketing corporativo, suas credencias em Wall Street e sua habilidade em lidar com sindicatos assertivos. A empresa insistiu em grandes concessões como uma pré-condição para sequer participar das negociações, desencadeando greves de onze e de dezoito meses — uma prolongada queda de braço na qual a Vale ganhou muito do que desejava.
Desde 2011, a empresa já ignorou cinco fatalidades no Canadá — uma em Thompson, na província de Manitoba, e quatro outras em Sudbury, na província de Ontário, além de mais duas fatalidades numa operação terceirizada sob o controle da Vale. Como disse um dos trabalhadores: ‘Seja no subsolo, na fundição ou na refinaria, a Vale tornou o trabalho mais perigoso do que antes’.
A empresa, entretanto, deixou um legado ainda pior no continente africano, onde ela está submetida a legislações mais frouxas. É exatamente lá, porém, que a Vale alega trazer melhorias às vidas de milhares de pessoas.
A Vale na África
Diz-se, em Moçambique, que foi Lula quem apresentou Agnelli e a Vale ao país, encorajando o presidente Armando Guebuza a rejeitar a oferta chinesa pelos depósitos de carvão em Moçambique devido ao fato de que a empresa chinesa levaria seus próprios trabalhadores em vez de contratá-los localmente.
Qualquer que tenha sido o envolvimento de Lula, Agnelli foi convidado, logo após a visita do presidente brasileiro em 2003, para ser membro do Conselho Consultivo Internacional do presidente Guebuza. A Vale foi, logo depois disso, a primeira multinacional a ser licenciada para explorar as maiores reservas de carvão de Moçambique.
Assim como em 2003, também durante sua visita em 2012, Lula transmitiu uma mensagem confusa de solidariedade por um lado e, por outro, promoveu os investimentos das empresas brasileiras — só que, desta vez, o presidente chegou acompanhado pelo sucessor de Agnelli, Murillo Ferreira.
Durante sua visita, o ex-presidente deu uma palestra pública chamada ‘A Luta contra as Desigualdades Sociais’, moderada por Graça Machel, viúva do primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel, ela mesma uma notória figura pública. Ela apresentou Lula como um herói do povo assim como Samora. Lula, por sua vez, palestrou sobre a experiência brasileira sob o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), caracterizando-o como um governo de crescimento e, ao mesmo tempo, de distribuição do ‘bolo econômico’, assegurando, assim, a criação de empregos e os programas de redistribuição de renda que mitigariam a pobreza.
Lula insistiu que as empresas brasileiras investindo em Moçambique contribuíam ao combate contra a desigualdade em nome da justiça social. Logo após seu discurso, no entanto, ele juntou-se ao novo presidente da Vale para pressionar a ministra do trabalho de Moçambique, Helena Taipo, a reduzir as restrições sobre trabalhadores estrangeiros nas operações da Vale no país.
O histórico da Vale mostra que as práticas e atitudes das multinacionais baseadas nos países dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) não têm nada de diferente das mineradoras globais ligadas aos centros do capitalismo.
A pressão brasileira para reduzir o controle moçambicano sobre trabalhadores estrangeiros não é nada de novo. Numa delegação do Canadá e do Brasil, tivemos uma reunião com o diretor de trabalho na província de Tete em 2011 e fomos informados de que a Vale pressiona constantemente as autoridades para que permitam que a empresa exceda as cotas de trabalhadores estrangeiros previamente negociadas.
A construção da mina incluía não só grandes números de trabalhadores brasileiros como também de filipinos. Muitos desses trabalhadores foram contratados pela Kentz Engineers and Contractors, uma empresa que opera em cerca de trinta países e administra uma das maiores refinarias de níquel e cobalto do mundo, situada em Madagascar.
A Kentz emprega mais de 2.500 trabalhadores filipinos em suas operações globais. Depois que muitos deles foram repatriados no fim de 2010, eles entraram com um processo, junto à Administração Filipina de Empregos no Exterior (POEA, na sigla em inglês), alegando práticas laborais injustas por parte da Kentz, incluindo atrasos no pagamento de salários, alojamentos superlotados, escassez de comida e assistência médica inadequada.
A Kentz foi uma das muitas subempreiteiras contratadas pela Vale Moçambique para construir suas concessões de carvão em Moatize, no noroeste do país. Inspetores locais encontraram, nos canteiros de obras, trabalhadores a quem foram negados folgas e finais de semana assim como vestuário de proteção adequado. A Kentz também falhara em registrar seus trabalhadores moçambicanos na previdência social.
Em 18 de novembro de 2011, a ministra do trabalho finalmente respondeu e deportou 115 trabalhadores, a maioria da África do Sul e das Filipinas, ilegalmente levados ao país pelas subempreiteiras da Vale. A Kentz Engineers foi multada em cerca de 34mi de meticais (cerca de R$2.9mi), com trinta dias para corrigir as irregularidades.
Os comentários dos trabalhadores capturam o vazio e a falsidade das promessas da Vale de criar empregos para os moçambicanos ao mesmo tempo que demonstram a força de sentimentos anti-brasileiros — em nada diferentes dos sentimentos anti-estadunidenses e anti-britânicos onde empresas desses países se estabelecem.
Os trabalhadores baseados em Tete que participaram nas trocas internacionais indicaram que a fase operacional da mina de carvão atualmente emprega não só um número de trabalhadores brasileiros maior do que o permitido como também de outros trabalhadores estrangeiros, com ou sem permissão para residir em Moçambique, de países anglófonos vizinhos, como Zimbábue, Zâmbia e Maláui. Na capital Maputo, filhos e sobrinhos de poderosas figuras do governo e dos negócios de Moçambique também ganham cobiçados cargos na Vale.
Ademais, o amplo desenvolvimento prometido pela Partido dos Trabalhadores e pelos executivos da Vale é ilusório. Apesar de ser a mais impactada pelo boom da mineração — além de lidar com poluição, escassez de moradia e de outros serviços, tráfego, barulho e crescentes custos de vida —, a população local em torno das minas e da paupérrima província de Tete assistiram a poucas novas vagas de emprego e a pouquíssimos outros benefícios do projeto.
As poucas oportunidades para a geração de emprego geradas pelas operações das minas e as dramáticas desigualdades nos salários e nos benefícios de estrangeiros e moçambicanos criaram um amplo ressentimento. Um trabalhador da Vale comenta que ‘eu trabalho junto a estrangeiros, mas eles ganham quatro vezes mais do que eu’. Outro ainda disse que ‘operadores de máquinas moçambicanos trabalham com operadores brasileiros, alguns dos quais têm menos treinamento do que os moçambicanos — mas o brasileiro torna-se automaticamente o supervisor’.
Esses sentimentos foram expressos numa pesquisa conduzida em 2012 a fim de determinar se as experiências de trabalho da Vale no Brasil eram parecidas àquelas dos trabalhadores em Moçambique e no Canadá. Os comentários dos trabalhadores capturam o vazio e a falsidade das promessas da Vale de criar empregos para os moçambicanos ao mesmo tempo que demonstram a força de sentimentos anti-brasileiros — em nada diferentes dos sentimentos anti-estadunidenses e anti-britânicos onde empresas desses países se estabelecem.
Moçambique, da mesma forma que outros governos africanos, ainda não encontrou os meios ou a vontade política para usar esses mega-projetos de mineração como pilares estratégicos para um plano industrial mais amplo. Projetos de mineração tendem a se tornar enclaves, articulados globalmente mas desconectados do país-sede.
Por mais que não haja estudos sistemáticos sobre o assunto, o sentimento geral em Moçambique sugere que a Vale, na verdade, afasta empregos. Remoções forçadas para dar lugar às minas deixaram famílias rurais inteiras sem terra ou água para suas atividades agrícolas e sem acesso aos mercados locais.
Um recente estudo de Antonio Jone para o Observatório do Ambiente Rural concluiu que as famílias removidas para Cateme foram, na verdade, prejudicadas. A suposta adesão da Vale às recomendações do Banco Mundial para a remoção forçada acaba por se mostrar longe da verdade.
Nos relatórios oficiais de sustentabilidade da Vale e em seus vídeos promocionais, as remoções em Moçambique são retratadas como modelos de excelência. No entanto, o ‘relatório de insustentabilidade’ preparado pela Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale supera a campanha publicitária da empresa e captura as vozes das pessoas removidas, as quais contam histórias de vidas sem terra ou água e de casas com rachaduras e alicerces fragilizados depois da primeira estação chuvosa.
Mais recentemente, o estudo de Antonio Jone sobre ‘segurança alimentar’ nos reassentamentos da Vale corroboram que as remoções não têm sido nada exitosas e, na verdade, têm piorado a situação de pequenos produtores. Além disso, trabalhadores locais das áreas afetadas pela concessão de mineração — tais como oleiros, aqueles que produzem blocos de cimento e tijolos — foram privados de espaço para praticar sua atividade.
Nos últimos anos, eles têm pressionado fortemente tanto o governo moçambicano quanto a própria Vale. Adotando uma página da cartilha corporativa, os oleiros alegam que eles sofreram uma perda permanente de subsistência, estimada num valor de US$350.000 (R$1.35mi) em vez dos US$2.000 (R$7.700) pagos pela Vale.
Em junho de 2013, a Vale declarou o caso oficialmente encerrado. A empresa foi, no entanto, forçada a reabrir as discussões sobre compensação já que os oleiros continuaram a sustentar suas demandas com barricadas, que pararam a produção das minas apesar da prisão dos líderes do movimento. O governo de Moçambique respondeu com frequentes expressões de preocupação sobre os lucros perdidos pela Vale, sua ‘parceira de desenvolvimento’.
A Vale no Brasil
A Vale fez seus inimigos também no Brasil. A agressiva expansão da empresa depois da sua privatização tornou-a a terceira maior mineradora do mundo, com operações em treze estados brasileiros e em vinte e sete países em todos os continentes habitados do planeta.
Apesar de suas origens como uma empresa estatal, próxima do governo brasileiro (incluindo porções das ações nas mãos de fundos de pensão de servidores públicos), a ascensão da Vale a seu patamar atual de ator global tem se caracterizado — assim como em qualquer outra corporação capitalista — por uma cega e implacável devoção a altos lucros e a generosos dividendos para seus diretores e seus acionistas.
Muitos brasileiros estão particularmente indignados com a forma com que esse ícone nacional passou para mãos privadas em 1997 como parte dum padrão global de privatizações de programas de ajuste estrutural. Nos anos anteriores ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT), o BNDES foi responsável por promover extensas privatizações. A venda da Vale é considerada como um dos episódios mais escandalosos na história do Brasil.
A empresa foi vendida por apenas R$3.4bi num período de paridade entre o dólar estadunidense e o real brasileiro. Um relatório enviado ao Tribunal Regional Federal (TRF), em Brasília, em 2004, salientou uma série de irregularidades que provavam que a Vale fora avaliada aquém do seu real valor. Algumas minas foram ignoradas nos cálculos; ativos intangíveis de altos valores (tecnologias, patentes e conhecimento técnico relacionado a geologia e a engenharia de mineração) não foram sequer considerados e os preços de ações que a Vale possuía de outras empresas foram simplesmente ignorados.
A lista de irregularidades é enorme. O Bradesco, o banco responsável pela avaliação, assumiu o controle da Vale um ano mais tarde e, não coincidentemente, o primeiro presidente da Vale, Roger Agnelli, era um ex-diretor executivo do banco.
Mesmo uma década mais tarde, um plebiscito informal pela renacionalização da Vale foi organizada por sindicatos, estudantes e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra em 2007 e angariou três milhões de assinaturas. Ainda que o presidente Lula não tenha prestado muita atenção às demandas do plebiscito, ele exerceu certa pressão pública sobre a Vale durante a vindoura crise econômica internacional.
O argumento é que, por meio dessas ‘competidoras globais’, o Brasil aumentará o fluxo de moedas estrangeiras, suas exportações e sua inserção nas cadeias de inovação globais. Essa narrativa se encaixa perfeitamente no paradigma neoliberal — um país que deseja assumir uma posição global hegemônica necessita de grandes empresas.
A Vale tentou se aproveitar da crise de 2008 para levar a cabo demissões em larga escala e descumprir promessas de investimento na indústria metalúrgica brasileira. Lula usou o popular sentimento anti-privatização expresso pelo plebiscito para justificar uma repreensão pública de Agnelli, alegando que uma empresa tão próxima do governo como a Vale tinha uma obrigação em responder a um momento de turbulência global assumindo um papel estabilizador.
O uso que Agnelli fez da crise para justificar a demissão de 1.300 trabalhadores e retroceder nos compromissos em investir na produção de aço no Brasil voltaram para assombrá-lo quando o mandato de Lula terminou em 2011. A nova presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, orquestrou os blocos de acionistas da Vale próximos do governo para mudar a liderança da empresa.
Murillo Ferreira então assumiu como o novo presidente em 2011 e, logo após, começou a visitar as operações da Vale pelo mundo. A mudança de liderança de Agnelli para Ferreira e as promessas da Vale duma administração mais humanizada foram rapidamente trucidadas pelo forte desprezo de Ferreira aos líderes sindicais durante sua visita inaugural. Porém, em resposta às críticas, Ferreira aceitou encontrar-se com 14 presidentes de sindicatos das operações da Vale ligadas à mineração no Brasil em setembro de 2011.
De acordo com um relatório publicado por Valerio Vieira, presidente do Sindicato Metabase Inconfidentes, que representa duas minas da Vale em Minas Gerais, a maioria dos líderes presentes mostrou-se satisfeita com a noção de Ferreira duma Vale mais gentil e elogiou a prontidão ao diálogo, exaltando a visível comoção de Ferreira durante o discurso sobre as mortes no local de trabalho.
Vieira, no entanto, que trabalhara para a Vale em períodos diferentes por 25 anos, não estava convencido. Em seu relatório ao Sindicato, compartilhado com os acionistas da Vale em outros países, Vieira contou ter dito a Ferreira que ele levaria mais do que três meses para mudar o caminho das coisas depois da liderança de Agnelli. Além disso, isso demandaria um nível de vontade política ainda não demonstrado.
O relatório de Vieira identificava oito características do trabalho na Vale:
1) A empresa é conhecida por ser anti-sindicatos;
2) Um empregado da Vale tende a ganhar menos do que trabalhadores em funções similares;
3) Os administradores da Vale se envolvem constantemente em bullying contra os empregados da empresa;
4) A Vale impõe metas de produção irrealisticamente altas, criando, assim, uma atmosfera de estresse permanente que a empresa prometera eliminar;
5) Os empregados da Vale vivem sob a constante ameaça de serem demitidos;
6) Os supervisores da Vale impõem medidas disciplinares arbitrárias com frequência;
7) Trabalhar na Vale significa trabalhar sob condições perigosas porque a empresa coloca produção acima de tudo e frequentemente ignora incidentes;
8) A Vale tenta regularmente subornar líderes dos sindicatos e do governo com carros, viagens, cartões de crédito e outras vantagens.
Em 2012, solicitou-se a uma pequena amostra de trabalhadores da Vale no Canadá, em Moçambique e no Brasil que respondesse se essas oito características do trabalho na Vale identificadas por Vieira aplicavam-se a sua situação. Mesmo que a situação em cada país fosse diferente, a maioria arrebatadora das respostas apontou para uma profunda ressonância da caracterização que Vieira fez da Vale nos outros países.
Por trás da propaganda
Apesar dessas contradições, a Vale lidera as corporações brasileiras vistas como detentoras dum recente estátus de ‘competidoras globais’. Empresas como a Vale projetam uma imagem de ‘motores do desenvolvimento’ tanto no Brasil como em outros países onde ela investe, gerando empregos e crescimento econômico, um símbolo do ‘Brasil global’.
O governo brasileiro, por sua vez, atribui grande importância ao apoio a essas corporações. As enormes quantias de crédito concedidas pelo BNDES e outras políticas públicas feitas para apoiar e facilitar os investimentos globais das multinacionais brasileiras são vistas como totalmente justificáveis e as atividades dessas empresas são retratadas como vantajosas para o Brasil como um todo.
O argumento é que, por meio dessas ‘competidoras globais’, o Brasil aumentará o fluxo de moedas estrangeiras (através do depósito dos lucros), aumentará suas exportações, ampliará sua inserção nas cadeias de inovação globais e beneficiará seus fornecedores, cujas produções também aumentarão.
Essa narrativa se encaixa perfeitamente no paradigma neoliberal — um país que deseja assumir uma posição global hegemônica necessita de grandes empresas. Apesar da propriedade por interesses privados e da explícita priorização de altos lucros e bons retornos aos diretores e acionistas, as grandes empresas brasileiras e sua expansão global são tratadas como sinônimos para ‘interessas nacionais brasileiros’. A resistência de trabalhadores e comunidades às operações dessas empresas, seja no país-sede ou em outros países, é prontamente categorizada como criminosa.
Será mesmo que essa proclamada escalada dos BRICS rumo ao clube de elite dos poderes globais representa os interesses nacionais de todos os cidadãos do Brasil? Será que todos os brasileiros veem o sucesso da Vale como uma ‘competidora global’ um motivo para comemoração? Será que eles pensam que a habilidade da Vale de ingressar em perversa competição entre os gigantes globais do mundo da mineração significa que o Brasil ‘chegou lá’, que o país pode agora erguer a cabeça e orgulhosamente assumir seu lugar no G20 juntos aos países ‘desenvolvidos’ do Norte?
Tomar o sucesso da Vale e os interesses nacionais do Brasil por sinônimos é operar dentro do velho discursos sobre desenvolvimento que vê a transição do Estado-nação duma sociedade agrária a uma industrial como a tarefa, sendo o Estado o ator principal, a sociedade nacional como o principal objetivo do planejamento do desenvolvimento e investidores estrangeiros diretos como a fonte de capital para os objetivos de desenvolvimento de emprego, modernização e crescimento econômico.
Talvez as corporações multinacionais dos BRICS sejam melhor entendidas ao afastar-se do velho discurso desenvolvimentista baseado em territórios e ao situá-las, em vez disso, como atores num novo discurso global baseado em fluxos. Esse é um mundo onde reina uma economia transnacional fortemente articulada com fluxos de capital, informação, tecnologia, equipamento e até mesmo terra, trabalho e forças de segurança privadas. Toda essa economia global opera fora da lógica e da regulamentação das jurisdições nacionais.
As práticas dos capitalistas emergents brasileiros, indianos e chineses são pouco distinguíveis dos saques cometidos por seus competidores globais ligados aos velhos centros imperiais na Europa e na América do Norte.
Um grande mineradora assume mínima responsabilidade pelo território — e pelos cidadãos — onde suas operações estão baseadas, operando, por contra, através de cadeias de abastecimento globais e dos fluxos altamente articulados que agora caraterizam a economia global.
As corporações usam instrumentos publicitários para aplicar uma ‘maquiagem verde’ sobre suas imagens, com uma forte linguagem sobre sustentabilidade, ou então uma ‘maquiagem azul’, acomodando-se à linguagem legitimadora do Pacto Global das Nações Unidas. O que é apresentado ao público como a necessidade duma licença social para operar é, de fato, considerado internamente como um exercício de gestão de riscos em segurança. As empresas são fundamentalmente movidas por sua preocupação com controle de danos, vendo qualquer pessoa, política ou instituição que fique no seu caminho como um risco em segurança e, consequentemente, como um inimigo da corporação.
André Almeida, ex-diretor do Departamento de Segurança Empresarial da Vale, recentemente expôs vários documentos à Procuradoria da República que expõem o envolvimento da Vale em ampla espionagem e infiltração focadas em pessoas e em organizações vistas pela Vale como suas inimigas. A lista inclui renomados jornalistas, advogados e ativistas de direitos humanos assim como organizações como Justiça nos Trilhos e a Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale.
Por mais perturbador que seja o comportamento da Vale, a empresa não está afastada das divisões de classe tanto brasileiras quanto globais. As forças sociais de elite no Brasil e em outros país dos BRICS que estão resolvidas a fazer seus países competitivos na economia global fazem parte duma nova classe transnacional de ganhadores produzida pela globalização. Através de suas multinacionais, como a Vale, essa nova classe aspira ao consumo de classe global.
O desejo do governo e dos executivos e empresários dos BRICS em alcançar um estátus global, medido por triunfos como sediar as Olimpíadas ou a Copa do Mundo, pode, de fato, incluir um componente de recuperação do orgulho, da dignidade e do respeito depois de séculos de humilhações coloniais. A visão que se segue, no entanto, não oferece nenhuma alternativa à atual ordem mundial de produção exploradora e consumo seleto. As práticas dos capitalistas emergents brasileiros, indianos e chineses são pouco distinguíveis dos saques cometidos por seus competidores globais ligados aos velhos centros imperiais na Europa e na América do Norte.
A visão dos BRICS exclui os pobres dentro de seus próprios países e ignora o impacto ambiental do modelo de crescimento a que visam. O desejo dos BRICS de serem atores no atual sistema global bem como consumidores da ‘nata global’ exacerba disparidades existentes e inflige ainda mais danos ao meio ambiente, fazendo deles grandes perpetradores de injustiça e instabilidade globais.
Vale: a pior empresa do mundo, pelo viés de Judith Marshall*.
*Marshall recentemente aposentou-se depois de trabalhar por 20 anos no sindicato dos metalúrgicos canadenses. A reportagem original foi publicada na Jacobin Magazine. Uma versão mais longa do trabalho pode ser lida aqui.