Abrir buracos na parede para respirar. Seria cômico se não fosse trágico esse amontoado de concreto que se ergue sobre a natureza das cidades, que nos engole e nos consome. Trancafiados ali, em meio ao cinza, muitas vezes já entregues às habitualidades dessa vida, seria estranho se não sentíssemos em nosso âmago uma necessidade interna de abrir as janelas.
Essa vontade, geralmente, vem sem avisar e chega sem se apresentar. Aquela velha sensação desconhecida que toma conta de nossos dias e nos faz oscilar entre estar bem e sentir essa coisa que não tem nome, mas que se assemelha muito ou anda de mãos dadas com a solidão. Um vazio. A falta.
Mal sabemos do que se trata, tentamos preencher de diversas formas e, muitas vezes, esquecemos que esse preenchimento é apenas uma abertura que vai possibilitar a experiência de algo que vai nos integrar.
Medianeras, filme de Gustavo Taretto, lançado no ano de 2011, fala sobre estes temas. Medianera é o nome dado para o lado do prédio que é ausente de janelas, o lado inútil, aquele onde são depositadas as propagandas que ignoramos, onde ficam as imperfeições, onde a tinta descasca mais rápido, aquele que não permite a vista para o outro lado, que nos priva de nos enxergarmos uns aos outros, que trazem aquela falsa sensação de privacidade, aquilo tudo com o que não queremos nos deparar.
Assim como uma planta que nasce no meio do concreto, o filme mostra a dificuldade em nos reerguermos no meio dessa estrutura que parece instransponível e, de uma forma delicada, nos faz enxergar que é possível desabrochar no meio do cimento. Ao mesmo tempo tem-se o paradoxo entre alimentar a cidade e querer livrar-se dessa engrenagem. O peso do concreto, e vejam só os sentidos que essa palavra carrega, em contraponto com a leveza de algo que ainda não se descobriu, mas que se tem a esperança que exista.
Esse crescimento desordenado da cidade seria uma representação nós mesmos? A cidade não seria a simbolização de seus habitantes? Esse órgão vivo que nos engole e que sem nos darmos por conta estamos alimentando.
Ilegal como toda via de escape, a abertura de janelas neste lado das construções faz luz na nossa escuridão. Traz uma esperança de enxergar algo que estamos procurando e não encontramos, aquilo que nem sabemos o que é. Essa metáfora da abertura das janelas, o respiro, o contato com o outro lado, o lado inútil que dá para o lado que não querem que a gente olhe é onde começa a transformação dos personagens no filme, como se derrubassem as paredes que construíram em volta deles mesmos. A satisfação, a sensação de liberdade gerada enquanto esses pequenos orifícios são abertos renovam a construção do ser no mundo. Aquela vista que nunca tivemos agora está ali cheia de novidades e deparar-se com esse lado, até então escuro, é também uma forma de interagir com diversos aspectos da vida.
O filme inicia com uma apresentação fotográfica incrível da arquitetura de Buenos Aires, local onde a narrativa se desenrola. O olhar arquitetônico através da subjetividade é o ponto de encontro dos personagens no filme. Enquanto o diretor nos apresenta uma sequência de imagens de prédios, casas e construções da cidade, a narração pontua uma analogia entre a arquitetura e pessoas, através de características relacionadas a tipos arquitetônicos, irregularidades, falta de planejamento comparando com a construção de nossas vidas, que segue de forma desordenada em busca de algo que nem sequer sabemos como queremos que fique. Por fim, descreve uma cidade superlotada em um país deserto e num texto cheio de poesia para dar, que define de forma intensa um pouco de como estamos estruturando nossas vidas na contemporaneidade.
Mariana é uma arquiteta que nunca construiu nada além de vitrines enquanto Martín é um construtor do ciberespaço, cria sites. Ambos convivem com as doenças causadas pela cidade: ela tem fobia de elevadores, ele tem síndrome do pânico e é hipocondríaco. Martín redescobre o mundo lá fora através de uma dinâmica proposta em sua terapia: fotografar, elemento que o faz enxergar beleza onde não tem, que o faz estar sem estar ou pelo menos o faz estar de uma forma diferente. Mariana vive com seus manequins, com eles conversa e interage em sua solidão.
A trajetória dos protagonistas de Medianeras trata sobre esses pertences que vamos deixando pelo caminho, não necessariamente objetos, mas sentimentos, relações, aspirações relacionadas a trabalho, além do que vamos ganhando com essas perdas: as frustrações, os medos, as doenças mentais contemporâneas, o desconforto com a solidão.
Além de Mariana e Martin, o personagem Wally, de “Onde está Wally?”, é figura fundamental na trama. Quem não passou dias pendurado na série de livros de Martin Handford, procurando o magrelo desajeitado que ao longo de sua jornada perde seus pertences pelo caminho em viagens solitárias, por diversos lugares da cidade e países do mundo? A trajetória dos protagonistas de Medianeras trata sobre esses pertences que vamos deixando pelo caminho, não necessariamente objetos, mas sentimentos, relações, aspirações relacionadas a trabalho, além do que vamos ganhando com essas perdas: as frustrações, os medos, as doenças mentais contemporâneas, o desconforto com a solidão. Wally representa para Mariana a angústia de ser alguém perdido entre milhões, sendo que a única página do livro que ela não consegue resolver é a que ela mesma vive e não resolve: Wally na cidade. Mariana não se encontrou na cidade. E há como se encontrar no meio do caos?
Ao rever tantas vezes o filme, sentia que me incomodava a cor escolhida para a película. O tom cinza constante perturba, a luz branca estourada, que quando a gente sai na rua derruba as pálpebras. Por fim, me dei por conta, escrevendo durante algum tempo em frente ao computador, que se tratava da sensação causada pela tela. A tela luminosa, que brilha alva e que nos deixa conectados a esse mundo de luz virtual, de impessoalidades, de falta de toque, de falta de sol, de falta de chuva, de falta de vento, que faz nos perdermos no tempo, que apaga parte de nossa memória sensorial. Essa luz que nos cega para o mundo real, que nos deixa presos dentro de um universo irreal. Através dos momentos escuros e claustrofóbicos nos defrontamos com cenas deprimentes que nos colocam de frente para uma situação que talvez não queiramos enxergar, como a de uma criança em uma sacada minúscula andando de triciclo, em um movimento de vai e vem batendo nas grades a cada três passos dados.
A melancolia é colocada de forma sutil e poética, não chega a entristecer, na verdade angustia de uma forma apreensiva, mas traz a identificação com essa solidão imposta pela sociedade e o desespero causado por estar sentido e fazendo exatamente o que querem que a gente sinta e faça, tratando isso com normalidade. Uma solidão que fomos obrigados a suportar vivendo no meio da multidão. A solidão que nos leva a trocar carícias com manequins e sentir a dura e fria realidade que nos é dada como um plástico.
O clichê que deve ser reforçado. A ilusão da proximidade através do afastamento. O que nos prende e nos enclausura. A libertação das distâncias que se aprisionam numa tela. Um único caminho para chegar a lugares diferentes, uma rota dirigida e assistida. A facilidade que nos distrai e nos ganha, reduzindo caminhos, percursos e encontros.
O fluxo da vida contemporânea que enche as ruas de pressa, superlota as agendas de compromissos que nos privam da experiência das verdadeiras (re)uniões.
Medianeras, o lado que ninguém quer se deparar, pelo viés da colaboradora Carol C. Ferreira*
*Carol C. Ferreira é cozinheira-alquimista na Fada Verde, comunicadora e amante de cinema