Alertamos que este texto é um relato de abuso sofrido por uma jovem que enviou seu texto à revista. Informamos em respeito à história pessoal de mulheres que porventura leiam este relato desprevenidas de seu conteúdo.
Eis que no maravilhoso mundo da esquerda e dos movimentos sociais torno-me um número. Atrás de tantas bandeiras levantadas e exibidas com tanto orgulho, esconderam e reduziram-me à estatística.
Tentei usar da hipocrisia e fingir que está tudo bem, mas ainda não entendi como vocês fazem isso. Sei que — ao contrário do sigilo que me foi prometido convictamente — a história já é pública. Se assim ela é, que seja pela minha voz e não pela que ecoa o barulho frígido do agressor.
Fui estuprada. Não, eu não estava bêbada com um vestido curto em um beco escuro e vazio. Não, não foi um velho tarado e desconhecido. Fui estuprada ao som de batucada. Fui estuprada e depois ouvi em alto e bom som que sem feminismo não há socialismo e que quando uma mulher avança, nenhum homem retrocede.
Fui estuprada por um príncipe da esquerda. Conheci-o na Marcha das Vadias. Ajudou na segurança. Usou batom. Não se intitulava feminista e reconhecia que todo homem era machista. Dizia que homem não devia “dar pitaco” no feminismo, que o protagonismo era das mulheres e se preocupava em entender as diferentes correntes teóricas do movimento feminista.
Fui estuprada. Mas agradeci por estar no meio de pessoas que entendiam a minha dor. Pessoas que não questionaram minha lucidez quando souberam. Pelo contrário, ofereceram todo o suporte para eu decidir o que faria a respeito.
Estava descobrindo um mundo lindo, em que a voz da mulher tinha força, em que culpabilização da vítima e relativização da dor eram tão reais quanto unicórnios. Coloquei minha mão – e o resto do corpo – no fogo e me equilibrei na bolha que criaram ao meu redor. Então, aconteceu: me queimei, a bolha estourou e eu vi unicórnios.
Vi companheiras dividindo sorrisos com o estuprador. Vi-o se divertir em uma festa na Universidade. Vi-o tomando cerveja depois de um dia de luta. Ouvi-o gritar com seus companheiros que a Universidade é nossa. Vi-o e recuei. Dei meia volta. Senti minha perna bamba mas disfarcei acara de medo. Foi então que entendi na prática – mais uma vez – a teoria de que o espaço público é deles, feito por e para eles. Ele está certo: a Universidade é dele, a rua é dele, a militância é dele, os companheiros são dele, a verdade é dele, a voz ouvida é dele.
É tão confortável ver o famoso que bate na mulher como um inimigo e xingá-lo no Facebook, enquanto o amigo estuprador é uma boa alma que foi corrompida pelo sistema e precisa de ajuda e apoio para aprender e mudar.
Acham que ficar lembrando o companheiro o que ele fez é pegar pesado. Imagina que surreal seria se pensassem que a vítima tem que conviver com as lembranças todos os santos dias.
Eu viajei. Eu preciso amadurecer. Eu estou regulando a vida alheia. Se eu não entendo, ninguém pode fazer nada por mim. Eu cansei as pessoas com essa história. Eu fui longe demais. Seria menos fantasmagórico se eu tivesse ouvido isso de um unicórnio.
Por que sempre é mais fácil ouvir o choro do homem arrependido do que os gritos de raiva da vítima?
Enquanto é discutido se expulsar resolve ou mascara o problema a vítima já está fora. Chove argumentos quando se fala em expulsar o companheiro, mas quando a companheira decide sair, o máximo que se consegue falar é o bom e velho clichê “até mais, qualquer coisa chama, vê se aparece algum dia”. Desculpa ser a chata com o palito afiado na mão que fura a bolha de vocês mas sim, vocês escolheram. E não, vocês não tinham só uma opção.
Dói ver uma organização — sobretudo pessoas — relativizar o machismo para não manchar seu nome. Pois lhes digo: sua bandeira está suja com o meu sangue, sendo segurada pela mão que me fez sangrar — literalmente.
Unicórnios Existem. Esquerdomachos Também, pelo viés de Vitta Moralles*
*Nome falso, utilizado para proteger a identidade da autora do relato