Notas de diário de campo – Sexta-feira, 22 de maio de 2015
18h45min: Desperto subitamente no sofá de minha casa, onde adormeci ouvindo o programa Repórter Esportivo da Rádio Guaíba. Meu objetivo é realizar uma observação participante e notas de diário de campo a partir da experiência de uma sessão de cinema adaptada para pessoas com deficiência visual e auditiviva, especialmente. Assistirei ao filme de olhos vendados.
18h50min: Caminho até o ponto de ônibus mais próximo, pensando em pegar qualquer linha que vá até o Centro, preferencialmente algum que vá via Salgado Filho. Corro um pouco a frente do ônibus para atravessar até o outro lado da rua nas adjacências do Shopping João Pessoa, o ônibus passa por mim, e eu continuo correndo para entrar no ônibus. O motorista não percebe que desejo embarcar e arrancar o ônibus ainda com a porta aberta. Eu pulo dentro do ônibus. O motorista freia bruscamente. Eu olho para ele com cara de poucos amigos. Pago minha passagem e passo pela roleta.
18h55min: Estou a bordo da linha Prado. O motorista dirige perigosamente. Eu interpreto que ele deva estar descontando alguma frustração particular no motor do coletivo, que trafega acelerado e buzinando. Não consigo identificar para quem ele de fato buzina, mas estes comportamentos agressivos tendem a se naturalizar quotidianamente. Percebo da janela o que pode ser chamado de clima de fim de tarde de sexta-feira, muita gente indo e muita gente voltando do Centro neste horário.
19h: Desço do ônibus e caminho pela Salgado Filho. O clima é semelhante ao que percebi da janela do ônibus. É incrivelmente desafiador caminhar em uma calçada como a da Salgado Filho. Muita gente correndo para pegar o ônibus na direção oposta a que você caminha, filas enormes aguardam o coletivo na mesma calçada, que fica ainda mais estreita com o movimento do comércio das adjacências, que abastece e é abastecido na mesma proporção.
19h05min: Caminho com fones de ouvido. Percebo uma grande movimentação na Esquina Democrática. Estou apressado para chegar cedo ao cinema e pegar a movimentação inicial. Vejo uma mulher dançando com dois leques e com o ventre bem saliente. Faço um breve esforço de encaixá-la em algum estereótipo para ter uma noção aproximada de qual poderia ser seu país natal, ou mesmo o país natal da dança que reproduzia. As pessoas aplaudem efusivamente.
19h10min: Ainda com os fones de ouvido, caminho pela Rua dos Andradas, e começo a refletir sobre o uso que damos aos sentidos. De certa forma, eu já sabia que iria a uma sessão adaptada para pessoas com deficiência visual, especialmente. Caminho no meio das pessoas, usando meus olhos para desviar de seu caminho, e ainda consigo facultar aos meus ouvidos a música que venho ouvindo. Atravesso novamente a rua para chegar na Casa de Cultura Mário Quintana. Avisto um veículo, ele está longe, eu atravesso e não vou pela calçada, mas sim por entre a rua e a faixa de carros estacionados. Subitamente o motorista vira o carro em minha direção, talvez porque fosse estacionar à esquerda. Que perigo, penso.
19h15min: Verifico na bilheteria se a sessão seria gratuita. Tendo em vista que sim, chego ao saguão que antecede a sala de exibição. Vejo um número significativo de pessoas com deficiência visual, alguns cadeirantes e portadores de outras necessidades especiais. Há bastantes veículos de comunicação trabalhando no registro da atividade. Me posiciono bem próximo a um dos câmeras e começo a ouvir a entrevista que um dos organizadores da sessão concede a TV AL.
19h20min: Converso com Adilson, deficiente visual e ele me fala um pouco de suas impressões sobre a áudio-descrição. Identifico-me como aluno do PPG de Políticas Públicas e falo do meu intento.
19h25min: Posiciono-me ao lado da recepcionista. Ela possui um lista com vários nomes, e me avisa que a sessão era reservada, mas que possivelmente eu conseguiria assistir.
Sentar a uma poltrona dentro de uma sala de exibição se tornou usual para mim nos últimos tempos. O que justifica minha atividade, em verdade, é o que poderia chamar de princípio da radicalidade: sentaria para assistir a um filme, no entanto, desta vez, de olhos vendados, sento para ouvir a um filme. A sessão é adaptada com a tecnologia da audio-descrição, que promove a incluse de pessoas com deficiência, especialmente àquelas com limitações visuais e auditivas, pois além da legenda, é inserida uma imagem externa à produção cinematográfica, aonde uma pessoa narra o que é dito em off da imagem através da linguagem de sinais, e ainda uma narração que descreve o que esta acontecendo na imagem, o que contempla o movimento da câmera e o acontece na cena.
Foi até certo ponto doloroso e embaraçoso este exercício de tentar traçar um limiar de normalidade. Ser normal, neste momento, significaria não somente ter olhos, mas enxergar. Seria possível aceitar este reducionismo? Enxergar é que é ser normal?
19h29min:As pessoas com deficiência visual chegavam com um acompanhante, o qual o guiava até os assentos da sala. Aos que estavam sozinhos, havia guias dentro da organização que faziam a mesma função. Enquanto eu estava ali, todos haviam dito seu nome e o nome havia batido com a lista de presença prévia. Recebi a liberação para entrar na sala de exibição e entrei.
Ainda de olhos descobertos, observo a movimentação de preenchimento dos assentos disponíveis na sala de exibição. Espontaneamente, as pessoas vão sentando-se e acomodando-se para assistir ao filme Saneamento Básico, dirigido por Jorge Furtado e produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre. Antes de entrarem na sala, eu percebi que uma parte significativa do público realmente possuía alguma deficiência, especialmente limitações visuais, que poderiam variar em grau, desde a cegueira completa até a visão parcialmente avariada. Agora, eu estava sentado, olhando para trás e racionalmente tentava contabilizar aqueles que possuíam uma limitação visual visível. Ao passo que contabilizava, de certa forma, eu os estava classificando a partir de estereótipos, procurando com meus olhos normais um traço de anormalidade, como uma bengala ou um óculos de sol. Em suma, algo que os distinguisse dos demais, formas materiais que exemplificassem sua dissonância.
Foi até certo ponto doloroso e embaraçoso este exercício de tentar traçar um limiar de normalidade. Ser normal, neste momento, significaria não somente ter olhos, mas enxergar. Seria possível aceitar este reducionismo? Enxergar é que é ser normal? Eu refletia sobre o trajeto que havia feito até o cinema, do motorista do ônibus que dirigia perigosamente, da calçada estreita sendo disputada pelas pessoas palmo a palmo em horário de pico. Percebi o quanto essa pretensa ideia de normalidade era ostensiva, pejorativa e excludente e que naturalmente, simplesmente por possuir olhos que enxergavam, eu reproduzia isso contabilizando deficientes visuais em uma sala de exibição.
19h35min: Três homens apresentam o Festival de Cinema Acessível e a sessão de Saneamento Básico. Dois deles falam e um deles traduz para a linguagem de sinais.
Antes de o filme iniciar, três pessoas da organização do Festival de Cinema Acessível foram até a frente da plateia. Um deles era Sidnei Schames, quem eu ouvira conceder uma entrevista antes de entrar na sala, e que falara sobre acessibilidade e áudio-descrição, do pouco conteúdo audiovisual adaptado disponível, e que naquela noite se fazia história com o primeiro festival do gênero no Brasil voltado a um público que classificou como diferenciado.
Schames se descreveu ao público, uma estratégia de incluir a todos ao seu discurso, como um homem de 1,73 metros, branco, de olhos claros, careca e de cavanhaque. Disse estar emocionado com o Festival e citou os patrocinadores do evento e a equipe de roteiristas, roteiristas consultores de áudio-descrição (notadamente pessoas com deficiência visual), técnico de som, narradores, profissional de libras e de legendagem. O segundo homem pouco falou, enquanto o terceiro traduzia o que Schames falava para a linguagem de sinais. Lembrei neste momento da conversa que tive com Adilson, funcionário público da Prefeitura Municipal de Porto Alegre cedido à Secretaria Estadual da Justiça e dos Direitos Humanos. Ele dissera que conhecia a tecnologia de áudio-descrição há pouco mais de cinco anos em Porto Alegre, e que se não houvesse a tecnologia, não estaria ali naquela noite. Ele argumentou que durantes as cenas com trilha sonora, quando não se tem referência do que acontece em cena, uma pessoa teria de descrever o que acontece para que ele pudesse compreender, e que isso normalmente causava um desconformo com os demais espectadores, devido ao murmurinho da conversa enquanto o filme acontecia. Em outras palavras, Adilson não queria que sua limitação atrapalhasse a normalidade, e revela uma tendência de segregação espontânea devido à naturalização da falta/ausência de inclusão.
Ficar de olhos vendados durante a exibição de um filme foi realmente fascinante. Eu fui a salas de cinema e várias vezes eu assisti a um filme. No entanto, desta vez a sensação que tive foi de imersão. Sentado, de olhos vendados, o que acontecia ao meu redor era estranhamente distante ou secundário, perto do desafio que cada cena me propunha: imaginar e fantasiar a minha maneira tudo aquilo que acontecia dentro da tela.
19h47min: Apagam-se as luzes. Chega o momento mais esperado da observação-participante e da coleta de dados etnográficos.
Schames encerra seu discurso e todos aplaudem com veemência. As luzes apagam. Improviso meu blusão como vendagem, colocando atrás da cabeça e usando as mangas para amarrar o campo de visão. Assim poderia de fato ouvir as imagens, participar sem ver ou assistir ao filme desde outra perspectiva. Pensava, foto é luz. Cinema é foto em movimento, luz em movimento. O que não seria luz estaria fadado a ser escuridão, entretando, com o advento da audiodescrição e outras tecnologias a dinâmica da inclusão passa a incorporar uma nova forma de resistência. E o quanto precisamos desnaturalizar…
A esta altura, os créditos iniciais começam a subir na tela, seria um momento aterrador se não houvesse uma locução que me situasse que aquele era o momento dos créditos. Eu poderia ficar ali para sempre sem que o filme nunca começasse. Ainda sobre minha tentativa estúpida de contar deficientes visuais antes que o filme começasse, percebi que em uma sala de exibição não existe espaço para distinções e tipificações sobre o que é ou não ser normal. Dentro de uma sala de exibição existe o filme e tudo aquilo que existe/acontece dentro da grande tela, e de outro lado, todos os que estão fora da grande tela são igualmente espectadores. A questão seria pensar porque o cinema não é pensado para todas as plataformas e necessidades, e por que permanece vinculado a uma lógica excludente e totalizante que classifica normais aqueles espectadores sem necessidades e anorrmais aqueles que requerem quaisquer cuidado especial. É uma disputa iminentemente política, visto que eclode de um confronto entre atores sociais com direitos equivalentes.
Ficar de olhos vendados durante a exibição de um filme foi realmente fascinante. Eu fui a salas de cinema e várias vezes eu assisti a um filme. No entanto, desta vez a sensação que tive foi de imersão. Sentado, de olhos vendados, o que acontecia ao meu redor era estranhamente distante ou secundário, perto do desafio que cada cena me propunha: imaginar e fantasiar a minha maneira tudo aquilo que acontecia dentro da tela. O narrador me dava coordenadas de roteiro, e como não havia direção de cena evidente, pois não havia imagem, tudo que me restava era a voz dos atores, e então, de espectador eu me transmutava em diretor da minha versão daquele filme que transcorria naquela sala e dentro da minha mente. “É um lindo dia de céu azul, a câmera desce e evidencia um lindo bosque onde um homem e uma mulher caminham”. Eu me senti fazendo este movimento de câmera, a cena realmente linda, e a partir daí vinham os diálogos dos atores. Logo a seguir mais coordenadas. “Agora eles estão na marcenaria”. E de súbito o mesmo diálogo iniciado no bosque continuava na marcenaria. Pude perceber organizacionalmente a narrativa transcorrendo perfeitamente dentro do roteiro, inclusive os pontos de virada, os arcos dramáticos sendo desenvolvidos, o crescimento da narrativa que explode no clímax e ainda, bem próximo do final, o momento de resolução da narrativa.
Curiosamente, pude perceber heranças narrativas do cinema contemporâneo com o cinema mudo. Os momentos mais importantes do filme, no caso específico de Saneamento Básico, que é do gênero comédia, se davam a partir de cenas transcorrendo sem diálogo e com trilha sonora. Quer dizer, as personagens faziam ações caricatas acompanhadas da música para o deleite da plateia. Nesse momento eu realmente pude perceber a ligeira sensação de ficar para trás, pois os que podiam enxergar anunciavam o que se passava com uma longa e alta gargalhada. Em outros momentos, quando a graça estava no trabalho dialogado entre atores, eu realmente me sentia parte e bastante integrado entre a plateia, inclusive, nestes momentos, parecia que o meu riso durava mais que o dos demais. Próximo ao final do filme, espiei para constatar o que se via na grande tela. Pude perceber que havia libras e legendas, o que significava inclusão de pessoas com deficiência auditiva. No entanto, como já havia visto ao filme uma vez, me pareceu muito mais interessante sair da luz e poder rir com mais prazer e intensidade, imaginando as imagens e não simplesmente assistindo-as acontecer.
Agora sem as vendas e com as luzes acesas, percebi: o filme foi muito mais intenso, corroborando com o sentido de imersão completa na obra do autor, e não somente dele, mas minha obra para com ele, o nosso filme. Se não existe imagem, não existe movimento de câmera, não existe direção de cena e, portanto, o filme resume-se a sua essência. Observei as pessoas saírem da sala de cinema. Todas estavam aparentemente felizes. A imprensa que pude contabilizar que cobria o evento iniciava as entrevistas após a sessão. Pude ver ali profissionais da Zero Hora, TV Assembleia Legislativa e estudantes de jornalismo da Uniritter. Conversei brevemente com Liliana, uma das organizadoras, e pude confirmar que havia 143 pessoas confirmadas nas páginas que ela empunhava para uma capacidade total de 134 lugares na sala de exibição. Ou seja, a demanda existe e é necessário trabalhar em cima disso. A divulgação do Festival de Cinema Acessível se deu basicamente pelos veículos tradicionais de comunicação social, mas também através de entidades e instituições que acolhem e trabalham na garantia de direitos das pessoas com deficiência. Me chamou a atenção que as reservas eram solicitadas via e-mail, o que implicaria computadores (adaptados ou não), acesso a internet e um ajudante para realização do cadastro, o que paradoxalmente era uma ferramenta que facilitava e restringia os acessos das salas. Outra vez a normalidade; no entanto, em suma um evento que é uma ferramenta e que produz legibilidade à parte das pessoas com deficiência, especialmente os deficientes visuais e auditivios.
É intrigante o fato de o Estado brasileiro dispor recursos públicos para a realização e finalização de filmes que operam dentro da lógica da normalidade e naturalmente já surgem como mecanismos de exclusão. Seria o caso de uma medida que, por exemplo, garantisse que um filme que tenha tido aporte público de recursos em algum momento de sua produção transforme o filme em um filme acessível ao ser traduzido multiplataforma.
Ao final da exibição, já fora da Casa de Cultura Mário Quintana, conversava com um colega do doutorado do PPG de Políticas Públicas, da UFRGS, servidor público que trabalha e milita pela causa das pessoas com deficiência, com Adilson, que apresentei anteriormente, e Raissa, uma antropóloga que estava em Porto Alegre devido ao REACT – Reunião de Antropologia das Ciências e Tecnologia. O que concluí é haver justamente uma lacuna entre as políticas públicas de fomento e desenvolvimento do audiovisual brasileiro e as políticas públicas de acessibilidade. É intrigante o fato de o Estado brasileiro dispor recursos públicos para a realização e finalização de filmes que operam dentro da lógica da normalidade e naturalmente já surgem como mecanismos de exclusão. Existe uma linha a ser traçada em termos de gestão e é gritante sua importância, uma vez que estamos relegando às margens do universo audiovisual um vasto público diferenciado. Seria o caso de uma medida que, por exemplo, garantisse que um filme que tenha tido aporte público de recursos em algum momento de sua produção transforme o filme em um filme acessível ao ser traduzido multiplataforma.
Conversando com um dos organizadores do festival, pude perceber que para cada filme finalizado é necessário fazer surgir um novo filme adaptado. Isso requer uma série de especialidades e profissionais que precisam ser contratados para um novo processo de pós-produção do conteúdo audiovisual gerado. Hoje, um filme opera basicamente em três estágios: pré-produção (roteiro, concepção, organização para filmagem), produção (filmagem propriamente dita) e a pós-produção (finalização de som, cor, créditos e legendagem). Eis que surge a necessidade de incorporar uma nova etapa: a pós-produção acessível. Um momento em que se traduz a obra para diversas plataformas de linguagem, como áudio-descrição, legendas e libras. Seria mais fácil criar mecanismo que desse conta de fazer com que os realizadores que obtivessem financiamento público finalizar uma versão adaptada de sua obra sob pena de o filme não poder estrear. O contrário disto é o modelo atual que representa justamente um esforço redobrado de adaptação de obras com um distanciamento gigantesco do realizador proponente. Corre-se o risco de estimular uma indústria de tradução de linguagens, um apêndice, um comércio das adaptações e da própria deficiência, porque nos recusamos a discutir privilégios sob égide e os olhos da normalidade. Basicamente, é preciso entender que não enxergar, não ouvir ou não andar sobre as próprias pernas é ser normal, e que precisamos romper com a ideia de normalidade para um dia chegarmos a uma dinâmica da inclusão de fato.
21h30min: Ao fim da sessão, com vários feiches das luzes dos postes confrontando minha retina, entre outros foto-ruídos da noite, eu voltava para casa caminhando na companhia das minhas questões.
Imagens ouvidas e a retórica da normalidade, pelo viés de Calvin Furtado
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