Os olhos cansados da idade e as sobrancelhas levantadas como se estivesse espantado com algo faziam a expressão do senhor de camisa listrada, uma expressão de contar história. A mim, contou sobre um sonho que teve, mas jura ser verdade. Ele não me olhou ou contou coisa qualquer, mas quando me disse, se esforçou para fazer uma expressão séria de convencimento:
– Eu estava lá, mas como eu estava sozinho as pessoas insistem em dizer que era sonho. Elas sentem inveja do que esses olhos velhos viram.
Por um instante pensei em perguntar sobre o sonho ou a realidade vista por um único par de olhos, mas ele – que antes estava sentado na cadeira do bar com as pernas em minha direção e os braços ainda em cima da mesa, apoiando o lápis no jornal, como se estivesse indeciso se comigo conversava ou se continuava curioso nas palavras cruzadas – com pressa de juventude, logo começou a narrar a história. Eu interessada, fiz intenção de puxar uma cadeira para perto e sentar junto a este velho. Ele logo disse:
– Não precisa sentar menina, a história é curta.
O senhor falava baixo, forçava rapidamente as cordas vocais, mas não se preocupava muito se o som era perceptível. Pensei por um momento que tal despreocupação em ser escutado era consequência de tanta fala perdida, que o vento carrega até hoje e sopra pra alguém que confunde o que ouve do vento com pensamento seu. A cadeira afastada da mesa insinuava o conforto de alguém que chega do trabalho em casa e a distância dos móveis lhe dava sensação de espaço respirável. Eu me enganava. A expressão dos braços, das pernas, do quadril daquele velhote dizia apenas que ele estava em um bar, sentado, adivinhando palavra cruzada.
Fragilizado pela idade, não levantava totalmente a cabeça e os seus olhos não cruzavam os meus. E então eu pude o observar sem me sentir invasiva às histórias marcadas na pele do velho. Suas mãozinhas narravam junto com sua voz cansada e teimosa uma história em que eu não conseguia ouvir, pois me parecia mais interessante a que estava sendo contada por todo o seu corpo. Um vento lento e fresco me distraiu ao se aproximar. Olhei para trás ao rapidamente confundir o vento com aproximação de alguém e então fui acometida pelo céu. Logo ali estava ele tonalizado de lilás e depois de azul. Próximo ao sol, confundia-se laranja com amarelo e vermelho com rosa por entre a luz raiada em nuvens tão nitidamente desenhadas que se podia acreditar na possibilidade de tocá-las se eu fosse até a porta de entrada do bar. Voltei meus olhos àquele que da juventude não sentia falta e via na velhice a coragem de suportar a vida por 85 anos.
Lá fora, a cidade cuspia carros e seus sons diversos em vibrações variadas. O ônibus apressado para na próxima parada se despedir de alguém, freava em cima da hora e deixava tontos os passageiros. Quando voltei meu olhar percebi que nem mesmo ele estava ali espiritualmente. Seu quadril acomodado na cadeira, suas mãos descansadas na mesa e os lábios lentos narrando uma estória entregavam que o velho vivia a vida presente nos pensamentos. A negação de ouvir sua história era a afirmação admitida do teor fantasioso dela. Ignorar sua fala e atentar ao seu corpo, sua expressão, a intensidade da fala e a velocidade dela, era permitir um diálogo fantástico de desencontro. Me fascinava o fato de estarmos frente um do outro, enquanto um discursava uma invenção e o outro – no caso eu – concebia a construção de um diálogo imaterial, inexistente, mas existente fantasticamente.
Passei os olhos por toda extensão do corpo do velho. Os pés imóveis na sandália marrom de couro sintético descansavam para quando precisassem andar. As pernas brancas com algumas manchas acusavam o passar dos anos, a pele flácida e os braços caídos por cima da palavra-cruzada. Mas o que mais chamava a atenção era sua leveza e concentração. Quando eu o olhava sentia que nem mesmo eu estava ali. Era somente ele naquele momento de desligamento. As pessoas em volta e os sons congelaram.
– Acontece que ninguém acredita. Mas isso sempre acontece: quando alguém conversa comigo, fica delirando, com o olhar perdido e a distração tão óbvia e concentrada que me faz sentir invisível e então, quando alguém conversa comigo, eu fico emitindo qualquer som, embaralhando palavras e as inventando, inclusive para chamar a atenção e nada acontece a não ser uma distração e um delírio alheio e mútuo. – Foi tudo o que ouvi da boca do velho.
– Quem vai perguntar para ele se pode tirar foto? – Procurei a voz em alguém e vi um rosto amigo. – Tu tiras a foto? Mas pergunta antes se ele não se importa.
Reparei o ambiente e me vi sentada com amigos e uma amiga que bebia a cerveja gelada e oferecia um gole para seu companheiro. Com receio de parecer estar delirando e contar o que havia acabado de passar pela minha cabeça, levantei e fui até o senhor. Ele, de camisa listrada, bermudas e chinelos confortáveis, sem entender muito o motivo do interesse por uma foto dele, balançou os ombros e permitiu. E então, se fez fotografia um momento. Percebi que toda a verdade vista por meus olhos tinha sido inventada. O único par de olhos que viu a história pode jurar para qualquer leitor veracidade nela. Passado um tempo, fiquei pensando no pensamento que tive, pensamento meu e me pus a questionar se não havia sido um vento qualquer soprando aquela história.
– Vamos embora?, disse uma outra voz. Notei que eu estava olhando uma fotografia em preto e branco de um velho na mesa de um bar preenchendo palavra-cruzada. Ele vestia camisa listrada e bermuda. Ao observar em volta, percebi estar numa exposição fotográfica acompanhada de uma amiga. Vesti meu casaco e fui embora em sua companhia. Cheguei em casa, vesti um pijama e fiz um chá antes de dormir. Naquela noite pensei nas diversas maneiras que uma história pode ser contada. Para mim, era a primeira vez através de uma fotografia.
A história de uma fotografia, pelo viés de Maiara Marinho.