(Há) Um lugar LGBT no capitalismo?

Um casal gay. Um comercial. Uma empresa de produtos de higiene e beleza. Embora ainda sejam pontos esparsos numa reta, a representação de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) dentro da publicidade comercial aumentou nas últimas décadas. Nem todas são representações consideradas positivas, mas o aspecto quantitativo é inegável. Foi o caso do casal gay apresentado no comercial do Boticário por ocasião do Dia dos Namorados e das Namoradas em junho de 2015.
Nunca há recepção (interpretação) unânime de quaisquer mensagens. No caso deste comercial, houve três vertentes de interpretação distintas, sendo duas internas ao comercial uma terceira complementar e mais abrangente. Primeiro, houve quem aplaudisse a publicidade como forma de avanço na representação de pessoas LGBT — há a problemática central da diversidade dessas representações, cada vez mais lembrada, em que se aponta para a sobrerrepresentação de homens gays brancos ricos em todas as representações midiáticas, mas não abordo este ponto nesta reflexão. Noutro lado, houve quem criticasse o conservadorismo / timidez do comercial, que não explicitou o contato físico do casal. Por fim, houve quem, adotando a primeira ou o segunda interpretação, a complementasse por uma terceira, que abre o foco para a relação entre o mercado e o movimento social LGBT.
Dito de maneira mais clara, uma parcela significativa criticou a visão excessivamente otimista de outros (ativistas ou não) com relação à inclusão via mercado. Na raiz desta crítica, está uma tradição minoritária de produção acadêmica e ativista que vê com cuidado a relação entre as pautas da população LGBT (propriamente, neste caso, o movimento LGBT como força política dessas pautas) e o mercado. É uma tradição de esquerda, eventualmente anticapitalista, mas sobretudo ancorada na origem dos movimentos de “liberação homossexual” dos anos 1960 e 1970, em que a crítica às normas e ao estabelecido era visceralmente mais radical do que atualmente. A ideia de justiça social ampla estava (está) na origem dessas formas de organização ativista.
Afinal, quem são nossos aliados e quem são nossos inimigos? As empresas, como estandartes visíveis do capitalismo e do mercado, são aliadas do movimento (ou movimentos) LGBT? Ou são inimigas por natureza?
Estas perguntas têm recebido respostas distintas ao longo da história recente e de sociedade para sociedade. Eu gostaria de estabelecer uma consideração maior como premissa, o que me permite navegar com mais clareza entre o “sim” e o “não” para as perguntas anteriores, e outras similares.
Aquilo que entendo como a organização político-econômica das sociedades industriais do nosso tempo, por meio do capitalismo, implica na ideia de que as lógicas que regem a produção e o acúmulo (via processos muito variados, como produção, especulação e juros) de capital são aéticas. Logo, o capitalismo (“o” é uma redução para simplificação) não é ético ou antiético por si só, o que produz bons e ruins resultados por conseguinte.

Pink money: representação, consumo e direitos? (Foto: limeabeans)

Vejamos, por exemplo, a bem estabelecida interpretação do historiador norte-americano John D’Emilio sobre o que o capitalismo (o sistema de mão-de-obra livre mais especificamente) fez pelas pessoas gays e lésbicas, num artigo publicado em 1983:

À medida em que o trabalho assalariado expandiu-se e a produção tornou-se socializada, tornou-se possível, então, liberar a sexualidade do “imperativo” da procriação. Ideologicamente, a expressão heterossexual veio a ser um meio de estabelecer intimidade, promover felicidade e vivenciar o prazer. Ao despojar os domicílios (famílias) de sua independência econômica e ao fomentar a separação entre sexualidade e procriação, o capitalismo criou condições que permitem a alguns homens e mulheres organizarem uma vida pessoal em torno de suas atrações eróticas / afetivas pelo mesmo sexo. Isso tornou possível a formação de comunidades urbanas de lésbicas e gays, e mais recentemente, de uma política baseadas na identidade sexual. (p.252)

Ou seja, para D’Emilio, defensor de uma leitura construtivista da identidade (homo)sexual moderna, foi o capitalismo, por meio do sistema de livre oferta da mão de obra dos indivíduos, que permitiu que inúmeras pessoas presas à estrutura familiar reinante nos séculos XVII, XVIII e XIX pudessem estabelecer uma identidade sexual individualizada, apartada da reprodução social de núcleos familiares heterocentrados. A tese de D’Emilio está bem amparada em documentação histórica acerca desta transição entre núcleos familiares e indivíduos modernos, aspecto bem estudado também em relação à autonomia das mulheres com a progressiva inserção formal no mercado de trabalho nos séculos XIX-XX.
A interpretação de D’Emilio também analisa a importância fundamental da 2ª Guerra Mundial para estabelecer o afastamento dos núcleos familiares (dos interiores do país, sobretudo) e a criação de comunidades de jovens regressos da guerra nas regiões litorâneas dos Estados Unidos — por isso a força destas primeiras comunidades ser tão expressiva em cidades como Nova York e São Francisco, nas duas costas.
Uma outra autora, profundamente mais crítica da relação entre o movimento LGBT contemporâneo dos EUA e o mercado, também reconhece a relação ambivalente do capitalismo com as pessoas LGBT. Alexandra Chasin, numa obra publicada em 2000, propõe a tese de que diversos grupos sociais marginalizados, quando se organizaram por meio de movimentos políticos baseados na identidade, começaram a alcançar vitórias políticas e legais, e a aumentar o reconhecimento social; movimento subsequente a este, tornaram-se alvos do mercado. Nicho de mercado. Embora ela desenvolva esta tese especificamente para o movimento LGBT, Chasin acredita que isso tenha ocorrido também com o movimento feminista e o por direitos civis [movimento negro] nos Estados Unidos, cada um num período específico.

A resposta curta para minhas perguntas é que o mercado capitalista torna possível, mas também comprime, movimentos sociais cujo objetivo central é a expansão de direitos políticos individuais. Ao longo do século XX, como resultado do crescimento da cultura de consumo, os direitos políticos foram cada vez mais fundidos em liberdades econômicas. Isso significa que os movimentos sociais focados em garantir direitos são cada vez mais arrastados para táticas e objetivos baseados no mercado. Neste sentido, o mercado promove assimilação em uma cultura nacional homogênea, encorajando a diferença identitária apenas até o ponto em que esta sirva como base para marketing de nichos. (p.XVII)

Essas interpretações carecem de correspondência adequada para a história brasileira. Aqui, a emergência e consolidação de um movimento LGBT organizado deu-se num contexto de luta por direitos políticos mínimos pós-ditadura. Por essa própria razão (contexto análogo ao do resto do subcontinente sulamericano), a relação entre os movimentos sociais e o mercado são mais acirradas aqui e no resto da América Latina. O pano de fundo é maior e anterior a esses movimentos per se, e diz respeito à busca por modelos socialistas e comunistas de organização social, quase todos barrados por ditaduras civis-militares política e ideologicamente amparadas na direita (não exatamente de tradição liberal em sentido estrito).

YouTube na parada LGBT de Dublin, Irlanda, em 2009 (Foto: Charles Hutchins)

O que subjaz essas leituras históricas da emergência e consolidação de identidades LGBT sob o estímulo pela individualização identitária que o capitalismo de mercado e os direitos civis promoveram é o fato de que isso não foi fruto de uma “resposta ética” para discriminações imorais contra grupos estigmatizados. A história da abolição da escravatura ilustra isso claramente, como sabemos.
É precisamente por esta razão que a relação entre mercados e movimentos sociais é ambígua. Porque, num sentido claro, a promoção da inclusão feita por estes atores (do mercado) é pela via do consumo. Quando esses indivíduos tornam-se capazes — em termos econômicos e culturais — de consumir, de estabelecer nichos mercadológicos e identitários, passam a ser representáveis.
O alerta que a interpretação crítica desta relação fez no caso do comercial do Boticário vai neste sentido, que procura tanto relembrar a ambivalência desta relação, e seu caráter essencialmente capitalizado por parte das empresas, quanto criticar o vetor do consumo como garantidor de aceitação social; esse aspecto, em especial, nos mostra como aqueles indivíduos à margem do consumo (leia-se entendidos como à margem do consumo, pois não o são) tornam-se à margem da representação: são, sobretudo, as pessoas LGBT negras, gordas, afeminadas e masculinizadas, com deficiências.
A “lição” do movimento LGBT hegemônico dos EUA é a de que esta força de consumo (do nicho) pode ser promotora de ativismo cultural via mercado: boicote e elogio / compras a depender da inclusão ou não de indivíduos LGBT em publicidades e nos direitos trabalhistas das corporações. Sobre isso, veja-se o Guia do Consumidor, que é organizado pela maior organização LGBT dos Estados Unidos, a Human Rights Campaign (HRC). Quão efetiva tal estratégia é, e o quanto negligencia parcelas da população LGBT excluídas das “representações possíveis” na mídia é o debate que ronda tais estratégias há várias décadas.
Creio que a ambivalência desta relação entre mercado e movimento LGBT requeira leituras “ambivalentes”, neste caso, posicionamentos contextuais. Para quem comunga de um ideal anticapitalista como norte, essas relações são vistas com bastante cuidado e crítica, como aludi anteriormente. Não significa, portanto, uma visão contrária no todo, uma vez que se vive em sociedades capitalistas e com lógicas de mercado amplamente enraizadas, sobretudo culturalmente.
Para aqueles que vislumbram o mercado como garantidor de direitos, um consumo politicamente orientado por valores pró-igualdade responderia à questão das empresas como amigas ou inimigas: nenhuma das duas exatamente.
A compreensão de que as decisões pela representação via propaganda são baseadas essencialmente por retorno financeiro (ganhos institucionais e de imagem diante do imaginário social são retornos financeiros de médio-longo prazo, é mister lembrar) deve nortear, a meu ver, quaisquer que sejam as leituras sobre esta relação entre movimento LGBT e mercado. O Boticário, assim como a Rede Globo e suas telenovelas, são empresas cujos planejamentos estratégicos visam lucro. As ações a partir disso podem produzir resultados positivos e negativos em termos de representação (plurais e honestas) e de fomento pela aceitação social de grupos estigmatizados.
A história da homossexualidade (e talvez das transgeneridades) identitária, nos últimos 150 anos, é uma história de violações e assassinato em inúmeros países, desde democracias liberais até ditaduras de direita e de esquerda — havia experimentos médicos, detenção e assassinato de pessoas LGBT nos Estados Unidos dos anos 1950-60, na Cuba pós-revolução, no Brasil sob a ditadura, na Inglaterra do século XX e na União Soviética do último século até o presente na Rússia.
Por isso, é prudente analisar contextualmente (e também a partir de outros aspectos políticos e ideológicos maiores) as leituras possíveis da relação entre empresas e movimento LGBT ou pessoas LGBT em si. Há casos ainda mais complexos, como o de fundações conservadoras que financiam lobbies antiequidade para pessoas LGBT, mas cujas empresas adotam políticas e discursos pró-igualdade. Há como separar o dinheiro (e o elogio público) que alimenta a um e a outro?
Esta é uma decisão que cabe a cada indivíduo, e tem sido o calcanhar de Aquiles de muitas organizações LGBT (nem tanto no Brasil, em que os grupos organizados e o empresariado dialogam pouco, mesmo os empresários e as empresárias do nicho gay e lésbico) que aceitam fundos e fazem parcerias com empresas ambivalentes em suas posições.
Em sociedades completamente capturadas por lógicas de mercado, que organizam dos direitos trabalhistas e do consumidor, até o cotidiano laboral e as formas de entretenimento possíveis, as decisões são cada vez mais complexas.
Uma pitada final de Michel Foucault: é preciso procurar e criar linhas de fuga. Tem sido o possível, enquanto não se alcança o impossível. 
 
Referências
CHASIN, Alexandra. Selling out: the gay and lesbian movement goes to market. New York: Palgrave, 2000.
D’EMILIO, John. Capitalism and gay identity. [1983] In: Parker, Richard; Aggleton, Peter. (Eds.) Culture, society and sexuality: a reader. 2nd ed. London, New York: Routledge, 2007, p.250-258.
 
(HÁ) UM LUGAR LGBT NO CAPITALISMO?, pelo viés do colunista Luiz Henrique Coletto

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