E a relação pessoal de vocês é ok ou é como essas bandas que voltam mas não conseguem se olhar uma na cara do outro?
MB: Cara, é ok. A gente não tem a afinidade artística e pessoal que já tivemos em outros momentos. Não no caso do meu irmão, que obviamente a gente se vê no Natal, essas coisas. Mas não sei o que seria, se a relação seria mais ou menos próxima hoje em dia. Porque seja como for, a Graforreia é um vínculo. Que rumo isso ainda vai tomar no karma da vida de cada um eu ainda não sei. Porque enquanto é uma cria que a gente compartilha.
Saindo um pouco da questão artística: tu sempre foi um artista preocupado com criação, como a gente pode notar na tua obra solo inclusive, mas também com questões relacionadas às condições de criação, distribuição, de plataformas de música ao vivo como os festivais independentes. Como tu vê o atual cenário brasileiro em termos de organização da música independente? Avançamos, retrocedemos, qual tua leitura?
MB: Cara, eu não sei dizer o que aconteceu, parece que a gente está vivendo num limbo, num nada, eu não entendo muito bem. Ao mesmo tempo eu vejo pessoas muito entusiasmadas com algumas coisas, e eu não consigo entender o que são essas coisas. Na verdade estou sendo bem diplomático aqui, pra dizer que realmente hoje me parece que não tem nada. Eu não vejo algo que eu diga “putz, isso aqui realmente é uma coisa boa”, porque não existe mais o respaldo externo da gravadora, rádio, se o cara quiser vai lá e monta um site. Digamos que é uma crise dos mecanismos de legitimação, porque para a opinião pública dificilmente a pessoa legitima a si própria.
E tu vê como um problema isso, de não haver mais o intermediário?
MB: Cara, me parece assim, a Internet é um meio tão poderoso quanto emburrecedor. Porque fica tudo muito disponível, já tem até estudos sobre isso. Pegaram grupos que fazem pesquisa usando livros e grupos que fazem pesquisa usando a Internet, os grupos que usam a Internet sempre saem da pesquisa se achando mais espertos do que os que usaram livros, e eu acho que provavelmente essas pessoas estão bem iludidas. Porque motivo as pessoas hoje estão tomando muito mais remédios? Marshall Macluhan já falou sobre isso, que no momento que o grande negócio do mundo se torna a espionagem, a micro-espionagem, porque todo mundo espiona todo mundo, e na Internet isso é muito fácil, as pessoas se dispõem a ser espionadas, o maior negócio do mundo passa a ser os anestésicos. O cara falou isso nos anos 60. Vejam e agora me digam se o cara não estava falando justamente dos facebooks, das ferramentas em que todo mundo fica exposto? Os amadores estão expostos também, e estar exposto não é para amador. Ele fez um link, como é característico dele, e ele fala da conexão entre a espionagem maciça e coletiva e a venda de anestésicos, e as duas coisas hoje são fatos. Nunca se tomou tanto remédio, anti-depressivo, calmante, como hoje. Agora, por quê? As pessoas mudaram tanto assim? E a gente vê que as gerações mais novas têm dificuldades pra ter iniciativa e eu, como professor universitário, nesse curto período em Santa Maria, já enfrentei problemas com alunos que se recusam a ser cobrados. Garotinhos juvenis criados à base de leite com pêra, como diria o Gil Brother (risos).
Tentando entender teu raciocínio: tu acha que pode existir uma falsa impressão de horizontalidade em que as pessoas passam a rejeitar a hierarquia, como se já estivessem empoderadas pelo simples acesso?
MB: Acho. Na minha geração isso não acontecia. A geração anterior confundia muito facilmente autoridade com autoritarismo. E agora me parece que a coisa se inverteu. A geração confunde autoridade com autoritarismo, mas ao mesmo tempo tem uma incapacidade de propor. “Tu não quer fazer isso, então o que tu me propõe?” Aí as pessoas já não sabem o que fazer, não sabem propor, e se propuserem, não sabem dar continuidade ao que propuseram.
Tá, mas e aí? Vamos retroceder em relação à Internet ou utilizá-la de outra forma?
MB: Não. Não é retroceder. Neste aspecto eu estou também com o Macluhan, ele foi um cara que desvelou meios emergentes, e quando perguntado sobre sua opinião sobre esses ambientes, ele dizia: “particularmente eu não gosto, mas eu não tenho uma visão moralista sobre a coisa”. Porque ele dizia que a moral é o que tu coloca em substitutivo à falta de entendimento. Então o que eu acho é que a Internet é uma ferramenta poderosíssima, mas que só funciona em confronto com outras mídias. E a tendência é considerar a Internet como mídia única, já ouvi gente dizer “pra que eu vou ler um livro, se tá na Internet?” Mas tu ler o livro, pegar ele na mão, sentir o cheiro, virar as páginas, ter que usar o marcador, não é a mesma coisa que tu ler o mesmo livro na Internet. O tempo é outro, e a tela de computador é uma coisa muito cansativa.
E a situação do computador gravar tudo, ser um substituto pra nossa memória…
MB: Aí tu esquece, exato. Porque aí as pessoas pensam “é só ir lá acessar”. Eu sou um cara que lê, digamos, uns dois livros por mês. Mais ou menos isso, às vezes um pouco mais, um pouco menos. E desse total de livros que eu leio num ano, algo entre cinco e dez livros, eu faço fichamento, que é a melhor maneira de tu lembrar. E muitas vezes basta tu recorrer a esses fichamentos e coisas que tu esqueceu tu relembra. Porque a informação hoje é muita, e ao mesmo tempo o desvelamento do atual ambiente, ele é mais sutil. E eu não percebo pessoas trabalhando nesse desvelamento. As pessoas parecem que não entendem que a arte desde sempre foi um desvelamento de questões que já estavam presentes na psiquê de alguma forma e das quais as pessoas não tinham exatamente consciência. O artista era um cara que trabalhava direto com isso, trabalha até hoje. E eu não consigo ver hoje em dia algum trabalho que eu diga “bah, esse cara entendeu”. É sempre uma coisa reciclada, de querer o glamour de uma época que passou, do vinil, por exemplo.
Voltando à época do surgimento dessa cena roqueira em Porto Alegre: vocês tinham contato com outras cenas, São Paulo, Rio de Janeiro, bandas do nordeste, algum movimento similar ao de Porto Alegre?
MB: Eu acho que o que aconteceu em Porto Alegre foi uma cena que se impôs por mérito de trabalho mesmo. Tipo, mesmo que o pessoal tenha lançado disco por gravadora, aquilo lá acabou pegando o mesmo público em outros lugares. O público de um mesmo perfil em diferentes lugares. Algumas música acabaram se tornando mais conhecidas e tal, mas cara, não tem estado que tenha seus clássicos locais como tem o Rio Grande do Sul. Tipo, “Surfista Calhorda, “Amigo Punk”, “Sob Um Céu de Blues”, a gente pode citar várias. E é uma coisa que sempre tem alguém pra dizer, “ah, mas tu tem que ver que…” Mas isso aconteceu. Se tu for comparar com outros estados, não é a mesma coisa. Era uma outra época. Se tu vai comparar por exemplo o que teve de rock em Belo Horizonte nos anos 80, tu vai ter que parar pra pensar. O que teve de rock em Goiânia nos anos 80, em Curitiba talvez, mas mesmo assim já nos anos 90. Recife bem mais tarde. Acabaram sendo cenas que tiveram muitos pontos em comum, de fazer a si próprias, antes de querer sair.
Tu falas em música feita no Rio Grande do Sul, mas na verdade estava falando de música feita em Porto Alegre. E hoje, não te parece que isso está invertido, que há cenas mais interessantes no interior do que na capital? Por mais que a gente comemore isso, o que tu achas que determina certa decadência da cena musical Porto Alegre hoje?
MB: Pra começar, tudo tem seus altos e baixos. Acho que o que fez o rock de Porto Alegre ser aquela coisa é que aquela situação só tinha lá. Se fosse outra cidade, poderia ter sido, mas o fato é que não foi. Durante muito tempo eu ia para o interior e as pessoas falavam, “ah, mas vocês só fizeram o que fizeram porque estavam em Poa, porque aqui no interior..”, e aí vinha aquele papo de coitadismo. Mas eu não sentia que as pessoas tivessem a iniciativa que nós tivemos de fazer as coisas. E naquela época no interior ainda tinha aquela noção de achar que “bah, Porto Alegre, onde coisas acontecem”. E aí tinha umas bandas que iam pra lá, e cara, eram bandas do interior naquela pior acepção que a coisa pode ter, eram pessoas que não tinham as informações, tinham umas ideias erradas do que era Porto Alegre, e chegavam lá a partir de um sucesso local, que às vezes era um sucesso de fazer show em bar, saía uma foto no jornal e os caras se achavam famosos. Naquela época era assim. E eles chegavam lá e tomavam um choque de realidade. Porque a galera dizia, “pô, isso que vocês tão fazendo não dá, sabe?”. E aí rolava aquele papo “ah, fomos muito mau-recebidos em Porto Alegre”. E não era assim. É que as bandas eram fracas mesmo. Então não é a questão de ser de Porto Alegre, é porque no geral as cenas eram fracas, e Porto Alegre calhou de ter uma cena que tinha toda uma movimentação, de galera que dizia “vamos chutar o pau da barraca”. Tinha esse clima. Eram coisas completamente diferentes, mas a unidade entre esses trabalhos era justamente ser diferentes. Isso, se tu pegar os discos da época, até o TNT pegava a coisa mais retrô e era diferente justamente por ser completamente retrô. Ninguém fazia aquilo. E o que eu vejo, cara, é que o interior tem um grande potencial, mas é um problema que eu vejo em vários lugares, não só no interior, que é tu fazer as pessoas entenderem o potencial daquilo e até onde elas podem chegar e o que elas podem fazer. Eu sinto isso muito como professor universitário, numa situação muito privilegiada, de pesquisa, que muitas vezes passa por tu convencer as pessoas, ou melhor, convencer não, que parece manipulação, mas lançar alguma luz pras pessoas e dizer cara, se a gente fizer isso, a gente pode inserir em tal contexto. E parece que as pessoas ficam meio assim, “será?”… E como diria o Marshal Macluhan, as únicas ideias que precisam de proteção intelectual são as ideias fracas, porque as grandes ideias estão protegidas da descrença pública. Historicamente a gente vê isso. Não sei se as minhas ideias são tão grandes, mas em termos de descrença pública… (risos). Mas é um trabalho que eu pretendo desenvolver. Por exemplo, estive em Porto Alegre num encontro de música popular da universidade, que é um tema que eu sempre fui muito crítico. Porque eu via que as pessoas estavam trabalhando e não tinham passado para o lado da “graxa” da música popular, de passear pelo melhor e pelo pior. Mas eu fui positivamente surpreendido por esse encontro, eu vi trabalhos muito bons, gente fazendo links entre academia e música popular muito bem, e eu voltei pra cá pensando “cara, nós temos que fazer alguma coisa pra não ficar atrás”. E como é o meu primeiro semestre aqui na UFSM, não me liguei de dizer “caras, vendam as cuecas, mas vão para esse encontro”. Porto Alegre é aqui do lado. E mal ou bem, ainda é a capital, sabe? A oferta cultural em Porto Alegre ainda é muito maior que no interior, tem coisas que tu só vai ver lá. Porto Alegre, que é uma cidade muito paradoxal, tem aspectos de metrópole e de província, e que parece estar muito à vontade com isso, mas, por exemplo, tem exposições no Iberê Camargo… Eu via quando eu morava fora que aqui aconteciam coisas que eu não me dava conta antes. Eu via shows lá que eu não via nem em Goiânia nem em Florianópolis. Meus amigos do Rio também iam a Porto e ficavam de queixo caído, porque é uma cidade que sei lá, não tem dois milhões de habitantes. Se tu comparar com São Paulo e Rio, claro que lá a oferta cultural é fantástica, mas na proporção, Porto Alegre é forte. E aí eu tenho aluno por exemplo que não conhece Porto Alegre. Hoje eu diria “cara, façam o que for necessário, mas vão lá ver. Pra vocês entenderem como a gente aqui está engatinhando, e o que a gente tá perdendo”. Não é suficiente eu falar pra eles, mas num evento desses tu vai achar gente de tudo que é lugar. Um dos melhores trabalhos que eu vi foi de um pessoal da Universidade de Juíz de Fora, quer dizer, a universidade tem esse papel, ela naturalmente descentraliza. Porque a universidade, no meu entender, é o grande polo onde tu pode fazer pesquisa pra sentar o braço. E é isso que tem que acontecer, cara. Não ficar repetindo o que já foi feito. Porque, vindo do meio acadêmico e do meio do rock, que são dois extremos, o meio do rock sendo o mais preguiçoso e negligente, percebo que ao mesmo tempo do lado do rock é uma falta de rigor que se tu pensar em fazer uma experiência, de misturar esse acorde, “bah, não, isso aí não dá”. É tudo improvisado. Por outro lado, a universidade às vezes peca pelo excesso de rigor, dum método que eu sou crítico severo. Por exemplo, teve uns trabalhos excelentes num congresso desses que tem quinze minutos pra cada um expor. E o cara perdeu cinco minutos falando da fundamentação teórica dele. Depois eu fui lá e falei “cara, teu trabalho é do caralho, mas deixa eu te dar uma dica, quando tu for expor isso em congresso, usa um slide pra dizer em que autores se fundamentou, e já vai direto pro que tu quer mostrar”. Porque a oferta hoje é tão grande, que se tu ficar dizendo “segundo beltrano, segundo fulano”, tu vai perder teu ouvinte, e pra conquistar ele de novo é muito difícil. Então essa coisa assim, essa polinização, eu sempre fui muito aberto pra isso. E eu percebo que é uma coisa que ainda é incipiente, porque muitas vezes a galera me tirava, “esse cara aí é um cara erudito”. Erudito o caralho! Eu sempre coloquei o que eu aprendi na academia a serviço do rock n’roll, do ié-ié-ié, vossa majestade o ié-ié-ié. E fazer esse link, entender tudo o que tu pode aprender com a formalização. Hoje tem formalizações maravilhosas. Estava lendo um livro agora que o cara fez um estudo sobre todos os procedimentos do século XX, e eu pensava “cara, o rock tem que descobrir isso aqui, porque é uma coisa que tá caindo de maduro”. Por exemplo, todo o trabalho de música modal é do início do século XX. Isso tem tudo a ver com o rock n’roll. Mas parece que, pelo fato de eu lidar numa linguagem que mescla essas coisas, que lida com percepções que são muito sutis, eu me sinto numa situação que parece que estou sempre provando que eu sei fazer. Eu estou sempre entre o reconhecimento e o descrédito. E a adulação no meio.
Quando tu cita Porto Alegre como essa referência fortíssima pra ti, por ter nascido e começado tua carreira lá, tu não acha que pode ser lido como um cara meio arrogante, no sentido de opor as vantagens do ambiente da capital contra um suposto atraso cultural do interior? Quando, talvez, a expectativa fosse justamente outra, que tu morando hoje numa cidade do interior, trabalhasse para fortalecer a cena cultural daqui?
MB: Eu não sei se eu diria vá ou não vá à Porto Alegre. Sobre essa questão de parecer arrogante ou presunçoso, eu já fiz muitas palestras sobre mercado de música no interior, até aqui em Santa Maria. E cara, eu percebi que o papo é mais ou menos o mesmo, “ah, porque nós somos os coitadinhos, porque nós vivemos no interior, não temos espaço, não temos isso nem aquilo”. Isso é uma coisa muito frequente. Eu chegava aos lugares e as pessoas me entupiam de discos, com aquela ideia de “o produtor da capital”. Na real não tem muito o que eu possa fazer. E eu comecei a ver que estava ficando com uma pilha de discos e era óbvio que eram bandas de fim de semana. Não é o cara que realmente fez o sacrifício pra seguir aquela carreira, que mal ou bem se o cara quiser fazer uma faculdade de música e mora em Cruz Alta, digamos, ou em Santa Cruz, ele tem que vir pra Santa Maria, no mínimo. Ele vai ter que sair. Ou ir pra Porto Alegre, que seja, mas lá ele não pode ficar se ele quer realmente ter uma carreira, ainda que existam mercados locais, tem gente que sobrevive tocando. Por exemplo, Pelotas tem essa cena de galera que toca na noite, que faz histórias assim. Em Passo Fundo também, conheci uma galera de banda cover que eu produzi lá, eles sabiam exatamente do mercado em que estavam inseridos. Onde eu quero chegar: tu tem que saber qual é o teu mercado e até onde tu pode ir, que canais tu vai usar. Eu nunca via essa galera de bandas cover ou de baile reclamando que não tem espaço, que não mora em Porto Alegre. Tanto é que essas bandas tem noção de que não vão lançar um disco em Porto Alegre, porque não vale a pena. Lá eles não têm o público que teriam aqui. Eu dizia “cara, não tenho nada pra dizer pra esses caras, eles tão certíssimos”. Porque tem essa ilusão de que o mercado seja mais abrangente, e às vezes não é isso, às vezes atuar no teu nicho é muito mais interessante do que pegar um mercado maior. Se tu sai do teu nicho pra tentar um mercado maior e não consegue, tu volta com a bola murcha. Esse é o raciocínio que as pessoas tem que ter, elas têm que saber o que elas querem e saber se vale ir pra Porto Alegre e o quanto vai render ficar num mercado local. O que esse cara quer do mercado local? Tem mercado pra isso? Quantas vezes por ano ele vai conseguir fazer show na cidade dele? Porque mesmo em Porto Alegre, a Graforreia faz um show por ano e olhe lá. Às vezes nem isso. Então se a gente fosse depender só de Porto Alegre, estava fodido.