Marcelo Birck é uma figura ímpar. De prosa solta e sempre disposto a entabular conversas sobre temas pouco banais – como música polifônica renascentista e técnicas da pintura medieval -, o músico e professor formado pela UFRGS expressa em sua fala um tanto do estilo esquizofrênico da banda que ajudou a formar ainda nos anos 80, e que viria a constituir um projeto seminal do famigerado rock gaúcho: a Graforreia Xilarmônica. Não obstante a trajetória errática do grupo, é de autoria deles – e, portanto, também dele, Marcelo – alguns dos hits mais irreverentes da moderna música alternativa brasileira. Quem nunca entoou aos berros em alguma roda bêbada de violão ou num inferninho universitário os versos da milonga pós-moderna “Amigo Punk”, provavelmente não tenha experimentado o lado selvagem da noite ao sul do Mampituba.
Marcelo, que desde o início do ano é professor do curso de Música da UFSM e morador de Santa Maria – mais precisamente, do bairro Camobi -, é fascinado pela ideia de esculhambar com as fronteiras entre o erudito e o popular. Beatles, Jovem Guarda, Marshall McLuhan, música eletro-acústica e inquietações estético-existenciais como a representação da profundidade na pintura ocidental são ingredientes que convivem numa boa no seu caldeirão de influências. Nerd demais para os roqueiros convencionais e um dadaísta muito suspeito para os conservatórios, Marcelo também tem lá seus lampejos de bairrismo nos moldes tipicamente gauchescos: para ele, a Porto Alegre dos anos 80 foi quase uma Meca do rock em terras tupiniquins, uma experiência sem equivalentes na história da música alternativa do país. Ranzinza com os caprichos da nova geração ultra-conectada, dispara sem dó: “estar exposto não é para amadores”.
A gente convenceu o cara a nos confundir durante uma tarde de maio com suas teorias, causos e lições sobre rock e vanguardismo. O papo às vezes fugia do rumo e o que a gente perguntava, nem sempre era o que entrevistado queria responder. Vale a pena conferir o resultado.
revista O Viés : Começando a conversa por um clichê meio inevitável: o que te levou a se interessar por música? Conta um pouco da tua trajetória pra gente.
Marcelo Birck (MB): Eu comecei em 1980, especificamente. Era um período em que a movimentação musical era muito diferente, as pessoas realmente se mobilizavam, se sensibilizavam pela música. E acreditavam de alguma forma que era uma ferramenta de transformação. O que fato ainda era. Pego alguns resíduos dos anos 80 e vejo que as minhas referências principais, talvez até hoje, continuam a ser os trabalhos musicais que fizeram alguma diferença para muito além daquele âmbito de vender discos, de mercado musical. Sempre me interessei por essas coisas. Minha influência primeira para decidir ser músico foram os Beatles, que foram protagonistas de uma modificação cultural talvez sem precedentes, e talvez sem nada posterior parecido. Aí eu percebo que as minhas escolhas acabaram sendo isso, depois eu comecei a curtir o pessoal da vanguarda paulista, Arrigo Barnabé, essa turma. Ainda que hoje não sejam trabalhos que eu ache assim tão influentes como já foram, mas eles lançaram informações que me abriram portas pra toda música de vanguarda que se fez no início do século XX. Curtia muito também a Jovem Guarda, que na época em que comecei a tocar, se tu tocasse um Roberto Carlos num show tu corria risco de ser agredido. “Seus alienados! O que vocês tão pensando, ora tocar Roberto Carlos!” (risos). Era legal porque as pessoas não lembravam mais do repertório da Jovem Guarda, então parecia uma coisa muito nova. E tinha toda a coisa de provocação também. Mutantes foi muito importante, também. A Tropicália também teve sua importância pra mim, mas não foi tão forte quanto a essas outras influências. A música brega, que a minha geração se criou ouvindo no radinho da empregada…
Que agora tem sido revalorizada, mas que durante muito tempo foi rejeitada como produto cultural…
MB: Totalmente. Tem um cara que eu acho que ainda vai ser muito reavaliado, até me surpreende que ainda não tenha sido, ao menos na medida em que eu acho que a obra dele demanda, que é o Odair José. Se tu ouvir as obras do cara é uma poética, que era uma coisa de subúrbio, evidentemente, uma pessoa que não tinha aquela instrução toda, mas pô, o que é mais rock n’roll que isso? Ele falava de temas bem complexos, e com umas imagens também com a complexidade nos limites. Um cara “culto” jamais faria versos como os que ele fazia, que dava um impacto maior pra coisa, porque era realmente a voz do subúrbio. E eu, como fui criado como muita gente da minha geração, naquele tempo em que a empregada doméstica dormia em casa, isso era uma realidade que a gente vivia. Isso numa época em que no colégio público, por exemplo, eu tinha colegas que não podiam comprar um lápis, e ao mesmo tinha colegas que eram filhos de políticos. Hoje em dia não existe mais político botar filho em colégio público, né? Então eu acho que foi legal porque essas misturas aconteciam melhor, paradoxalmente, e a coisa transitava mais. Hoje parece que fica tudo muito segmentado, todo mundo muito preocupado em não queimar o filme, todo mundo como naquele filme em que o Woody Allen fala: “que época de merda que a gente vive, todo mundo é analisado, bem-sucedido, normalizado”.
E uma curiosidade histórica: rolou um momento ali no final dos anos 80, inícios dos 90, em que se formou toda uma mitologia em torno da cena musical de Porto Alegre, tendo o Bonfim como o epicentro da rebeldia. Qual foi a tua perspectiva desse fenômeno na época? Foi uma coisa real ou a história é muito glamourizada?
MB: Era verdade. A coisa realmente acontecia. Porto Alegre no início dos anos 80 era uma cidade que tu ainda tinha muito resíduo hippie, uma coisa muito passadista, que eu achava esquisitíssimo. Eu via aquela cena e pensava “que coisa estranha”. A minha geração quando começou sabia que não queria aquilo, aqueles valores pseudo-políticos, da defesa da MPB como autonomia cultural brasileira e tal. Tinha um pouco desse esquerdismo rançoso, pseudo-nacionalista, digamos um esquerdismo agrário, de estética agrária, por assim dizer. Naquela época as coisas chegavam lá depois, então tu via muito hippie em Porto Alegre. Era muito estranho aquilo, eu tinha vários tios hippies (risos), sempre achei aquilo completamente fora de contexto. Então a minha geração, aquela galera toda da qual eu fazia parte, Gordo Miranda, Frank Jorge, o pessoal dos Replicantes, o Edu K, a gente tinha essa noção. Não era aquilo que a gente queria, a gente queria a informação mais atualizada. E tinha uma galera que tinha os discos importados, mas tu conhecia uma banda como o Devo, por exemplo, quando eles já estavam no quarto ou quinto disco. Naquela época tinha essa importância, porque os lançamentos eram mais esparsos. Hoje é essa montanha de informação que tanto faz tu conhecer o disco no momento do lançamento ou daqui a dez anos, continua a ser uma banda nova. Então a gente tinha essa coisa de querer procurar umas coisas novas, tipo a vanguarda paulista, ao menos no meu caso, e botar Porto Alegre num mapa cultural mais atualizado. Daí a galera naturalmente se encontrou. Um belo dia eu liguei pro Gordo Miranda, que tocava no Taranatiriça, que era uma banda instrumental, que tinha uma outra proposta, e falei que a gente tinha uma banda, mas não encontrava gente pra tocar, naquela época era difícil. E ele disse, vem aí em casa. E calhou de muita gente estar se procurando com esse objetivo. Foi aí que eu conheci o Edu K, a gente fez o primeiro ensaio e não bateu muito, aí a gente acabou fazendo duas bandas. Mas continuamos amigaços até hoje. E tinha muito essa coisa assim de querer se informar qual era a roupa moderna, mas que era um moderno que não chegava pela mídia mais óbvia. A gente ia muito atrás das coisas. E aí teve essa intenção, e realmente ouvindo hoje, os dois primeiros discos do Defalla, se tu comparar com o som das bandas dos anos 80, não tinha nada parecido com aquilo. Tu pode até não gostar, mas que era uma sonoridade única, que tu não encontrava em lugar nenhum, disso não resta dúvida. Mesmo os Replicantes, a Graforreia, que já foi a minha segunda banda, são bandas que até hoje ainda causam uma espécie de estranhamento. Minha primeira banda foi a Prisão de Ventre, uma banda meio new wave, que misturava música brega com música de vanguarda, minhas primeiras experiências foram ali. Dali saiu muita gente, o Che, que depois foi pro TNT, o Frank Jorge, enfim, várias pessoas passaram pela formação não-oficial do Prisão de Ventre, o próprio Zé Natale, que toca nos Papas da Língua, chegou a fazer alguns ensaios com a gente. Era mais uma reunião de amigos, até a gente decidir que seria uma banda. Então acho que realmente teve um diferencial, porque me parece que foi a única cena do Brasil que se manteve autônoma e sem jabá*. Eu fui me dar conta disso quando fui morar fora de Porto Alegre, já nos anos 2000. Eu chegava em Goiânia, por exemplo, e tinha rodinha de violão em que a galera tocava músicas de bandas de Poa. Eu pensava “cara, como assim?”. Era uma realidade que eu não conhecia, que estava completamente fora dos meios que eu poderia alcançar. Depois, quando morei em Floripa, vi isso acontecer também, as pessoas chegavam a me reconhecer na rua. “Bah, tu é o Marcelo Birck?”. Uma coisa que pra mim era esquisitíssima. Em Porto Alegre até rolava, claro, mas lá isso não me surpreendia que acontecesse. Mas eu percebi que esse mercado foi além. E sempre que aconteceu a relação com gravadoras, do chamado “rock gaúcho”, sempre foi uma coisa à margem. Nunca, mesmo quando o pessoal esteve lá, nunca teve aquele orçamento todo, ou aquele jabá. Tipo, a gravadora pagar clipe, isso aí não acontecia, a maioria dos clipes foi totalmente independente. Então acho que rolou essa parada, e o próprio fato de ter se estabelecido um circuito do interior pra trabalhos autorais. Daí, no final dos anos 90, a coisa começou a cair, e desde então, até está meio estabilizado hoje, mas está muito abaixo do que já foi. Influenciava o fato de existir uma rádio como a Ipanema também, que não era a única, porque até a Atlântida tocava bandas locais. Isso aí não existe no Brasil inteiro.
E nessa época, em Porto Alegre, convergiam várias linguagens artísticas? Quem andava junto acompanhando esse movimento da cena musical?
MB: Mais ou menos. Tinha um pessoal das artes visuais nos anos 80 que foi bem ativo, que não eram exatamente ligados à cena rock, mas conheciam todo mundo. Eu sou um cara que sou muito ligado às artes visuais, então conheço muita gente, tenho amigos do tempo da faculdade. Por exemplo, a Lúcia Koch, ela foi minha contemporânea na faculdade. No final do ano passado vi uma lista de 20 artistas top hoje no mundo, e o nome dela estava lá. E assim outras pessoas que são meus amigos até hoje, a Elaine Tedesco… E tinha o pessoal do cinema, o Gerbase, dos Replicantes, o pessoal que fazia os clipes. No pessoal do teatro, tinha o Balaio de Gatos. As três vocalistas da banda do Gordo Miranda, a Urubu-Rei, eram desse grupo. Uma delas era a Luciene Adami, que depois foi fazer novela, trabalhou com o Zé Celso. Então tinha esse encontro, o pessoal acabava se cruzando ali pelo Ocidente. Mas tinha um grande problema, por exemplo, na questão de gravações, e mesmo sonorização no geral, o pessoal estava muito no início. Então era muito deficiente, isso melhorou muito.
Tem um momento da tua fala que abre um gancho pra outra questão: muita gente considera a Graforreia Xilarmônica uma banda injustiçada em termos comerciais. O que fez com que a banda se tornasse um ícone cult, mas nunca alcançasse um espaço maior na mídia?
MB: São dois focos. Um deles é que, e já na época eu tinha essa noção, a Graforreia tinha uma coisa que se diferenciava de tudo, essa coisa de misturar tudo, até o fato de pegar a Jovem Guarda e misturar com as coisas mais vanguarda, pegava o repertório mais baixo e misturava com o mais alto, na medida do que a gente conseguia. Então quando deu a história toda de “Amigo Punk” virar hino e tal, aquilo não chegou a me surpreender, porque eu sempre tive mais ou menos uma noção de que aquilo teria um potencial, que bastava as pessoas virarem o dial um pouquinho e entender a ironia daquilo e o que estava envolvido de pesquisa, que tinha um aspecto da banda que era extremamente acessível. Chegava a ser primário até. Eu me surpreendo de ver que com o passar dos anos, apesar de eu não ser o maior fã da Graforreia, sei que talvez seja mais importante pra muita gente do que pra mim, mas percebo que na comparação com bandas novas, a Graforreia continua sendo a mais radical. O repertório não envelheceu, tanto é que a gente vê nos shows hoje pessoas que não eram nascidas quando a gente fez aquelas músicas. “Amigo Punk”, por exemplo, eu acho que é de 87, 88. Eu penso nisso, e fico pensando “caralho!”. E tem músicas mais antigas. Agora o que me parece é que a Graforreia, e isso é uma característica do rock gaúcho em geral, nunca soube administrar a coisa. Naquele aspecto de fazer contatos, prestação de contas, orçamentos, lidar com empresários. Que num certo sentido até hoje Porto Alegre ainda é meio deficiente, isso ainda ficou num nível de amadorismo, com algumas exceções. É tipo oito ou oitenta, ou o cara tá lá em cima ou ele tá lá embaixo.
Ser um dos compositores de “Amigo Punk”, que é uma canção super-conhecida, em algum momento se tornou um peso ou um estigma?
MB: Cara, a gente tira onda com essa história. “Puta, vamos ter que tocar essa música de novo!”, falamos até no show isso. Mas é que até nisso a Graforreia tem uma postura que permite essas coisas, então todo mundo entende que a gente não está dizendo de fato aquilo. De certa forma sempre foi uma banda que sempre chutou o pau da barraca, e o público entende isso, até espera. O Alemão para o show pra contar uma piada na frente do palco, um stand up de quinta categoria, e funciona exatamente por isso. Então essas coisas, a gente tira onda. A gente só não toca em ensaio nunca. Nas raras vezes em que gente ensaia, aliás (risos).
Tu ouve Graforreia?
MB: Cara, eventualmente eu ouço. O que eu mais gosto ainda é a demo. Eu gravei os primeiros discos, a banda meio que acabou, eles quiseram voltar e eu não estava muito na pilha porque estava com outros projetos, isso lá nos anos 90. Daí agora essa minha volta foi no sentido de que aconteceu um fato curioso, algumas pessoas entraram em contato comigo… Bom, antes de falar nisso, o fato é que as pessoas nunca me desvincularam da banda. Mesmo pessoas que não sabiam do histórico, eu continuava sendo um integrante da banda, mesmo eu não estando de corpo presente. Isso não me incomodava, pelo contrário até, não deixava de ser um empurrão. Mas rolou um fato mais recente, teve um pessoal de Alvorada que me procurou dizendo que tinham uma banda cover de Graforreia, perguntaram se eu não faria uma participação tocando no show deles. Daí eu disse “olha, cara, me pega em casa, me leva de volta, me dá uma ajuda de custo que eu faço de boa”. E aí foi uma situação em que eu tive contato com um fã-clube informal da banda, numa cidade em que a Graforreia nunca tinha tocado. E a gente fala em Alvorada em uma das músicas, e a gente sempre pensava, o que o pessoal de Alvorada vai pensar quando ouvir essa música? Que é o “Rancho de Alvorada”, que na real é uma puta de uma pegação. Aí quando eu toquei lá, os caras falaram “essa música a gente vai ter que tocar, não tem como não tocar”. E quando tocou a galera ficava numa felicidade surreal, de subir pelas paredes do lugar (risos). Aí me perguntaram: “pô, porque vocês decidiram falar em Alvorada na música?” Daí eu pensei “tá, vou falar a verdade”. Quando se falava sobre Alvorada em Porto Alegre era sempre nas páginas policiais, agora os caras vão rir ou vão me dar um pau. Felizmente, foi a primeira hipótese (risos). E aí, cara, eu me liguei que havia pessoas que eram realmente muito fãs, que começaram a tocar em função disso, a organizar esse evento que eu fui, que chama Ensaio de Rua. O evento existe há dez anos. Pô, quer dizer que musicalmente conseguimos estimular um protagonismo, né? E aí comecei a pensar que muita gente ia curtir ver a formação original, como muita gente já tinha me falado, e eu dizia, “bah!, esse é um período que já passou e tal”. Daí repensei e propus pra eles, “ó, se vocês tiverem interesse a gente pode retomar a parceria”. E ok, entramos num acordo e realmente é uma coisa que rolou um interesse grande de quem ia nos ver. De falar “bah, a banda é os quatro, a questão das duas guitarras meio tortas e tal”.