“Não é Gil, nem Caetano. Nem Chico”. Certa altura da noite, esse foi o argumento para justificar a bravura (e a ousadia) de quem abraçou um projeto tão improvável aos olhares desse conceito nebuloso chamado “maioria”. Afinal, muita coisa pode ser dita sobre Arnaldo Baptista, mas jamais que se trata de um mito pasteurizado – não que Gil, Caetano e Chico sejam, embora alguns deles, em determinadas ocasiões, se esforcem para tal.
Arnaldo é justamente o avesso disso. É errático e pagou o preço por isso. Não por acaso, depois de chocar o mundo dos festivais com as performances nada usuais dos Mutantes – junto com o irmão Sérgio Dias e a então companheira Rita Lee – e de mergulhar fundo na experimentação progressiva, na última fase original da banda – já sem Rita Lee – o primeiro disco solo de Arnaldo, de 1974, é sintomaticamente batizado como “Lóki?”. A loucura, aliás, é talvez a paixão platônica de Arnaldo e o acompanha desde sempre, tal como a relação de obsessão entre Charly García e a morte, por exemplo. É curioso, mas, para a indústria, visceralidade é artefato de mentes insanas. Se é assim, Arnaldo Baptista é o mais louco dos loucos.
Toda essa história, irresponsavelmente reduzida nos dois parágrafos acima, serve para explicitar ainda mais a proporção do que ocorreu nessa terça, 7 de julho de 2015, em Santa Maria – mais especificamente no Theatro Treze de Maio. Nessa data, o que se viu e ouviu no palco do Treze, foi o peso de uma das histórias mais intensas da música brasileira. E tudo isso graças ao show “Mutante: as cores e os sons de Arnaldo Baptista”.
Apoiado em um repertório cirúrgico, estava Adriano Zuli, músico talentosíssimo, conhecido especialmente pelo seu trabalho na Geringonça – mas que toca duzentos instrumentos diferentes em duzentos projetos diferentes – , e de um carisma que torna divertido até agradecimento para patrocinador. De tom e timbre vocal que já lembram Arnaldo naturalmente, nem precisaria adaptar, mas adaptou. E bem. Mexeu nas obras com carinho e respeito, em especial na primeira parte, quando executou, apenas ao piano e voz, canções que não foram originalmente registradas nesse formato. Destacou melodias e letras que antes disputavam espaço com todos os instrumentos e invenções que Arnaldo sempre misturou – e que, saliente-se, nunca foram um problema. É desse momento do show, por exemplo, “Sunshine”, que poderia causar estranheza sem a guitarra distorcida em solo constante, o baixo e a bateria marcando, mas que ficou linda na suavidade típica só das teclas. Também figuraram essa primeira parte “Não estou nem aí”, “El justiciero” e “Ando meio desligado”, além de “Blowing in the wind” (cover de Bob Dylan que o próprio Arnaldo faz em seus shows) e a instrumental “Honky, Tonky”, que sacrimentou, já de largada, os talentos, de Arnaldo e Zuli, ao piano de referências clássicas.
Num segundo momento, o piano e a voz ganharam a companhia de Rodrigo Cassuli (baixo) e Bruno Sesti (bateria), que “surgiram” por de trás das cortinas, ao fundo do palco, no exato momento em que “Será que eu vou virar bolor?” estourava. O que se seguiu, então, foi uma sequência destruidora de canções do álbum “Lóki?” como “Vou me afundar na lingerie” (um das minhas preferidas, do Arnaldo e do show), “Desculpe” e “Cê tá pensando que eu sou Lóki?”. Pra encerrar, nada melhor que a maior confissão de um dos maiores mestres em se confessar, e “Balada do Louco” levou o Treze ao delírio sem culpa. E ainda teve o bis, com “Qualquer bobagem”.
Ainda durante o show, sobre a escolha das músicas, Zuli declarou o objetivo de atingir todo mundo. E atingiu. Perpassou todas as fases e a pluralidade de Arnaldo, desde clássicos dos Mutantes até a carreira solo, incluindo o período acompanhado pela Patrulha do Espaço – talvez, junto com a Vitória Régia de Tim Maia, uma das mais lendárias bandas de apoio da música brasileira – e até um medley do disco “Let it Bed”, de 2004, o que não deixou nem as “menos conhecidas” de fora. E teve mais
Como não poderia deixar de ser tratando-se de Arnaldo Baptista, que nunca separou estética, encenação, música e tudo mais que pudesse misturar, outras expressões, que não sonoras, não poderiam passar batidas no show dessa terça. O piano ao centro do palco, por exemplo, foi rodeado por flores, no mesmo cenário do show do próprio Arnaldo. Da mesma forma, enquanto baixo e bateria ainda não eram descobertos, reproduções das obras visuais do artista estampavam o telão ao fundo. Entre uma música e outra, a história sempre contada, por Zuli ou por trechos de entrevistas que corriqueiramente emocionavam a plateia. Enfim, uma noite para encher olhos, ouvidos e corações. Uma noite de gratidão e torcida para que o espetáculo se repita logo, no teatro, na rua, onde for.
Ao Arnaldo Baptista, grande homenageado da noite, é complicado agradecer. Afinal, nos encantam a visceralidade e a sensibilidade com as quais sempre encarou a arte, mas foi apenas ele que pagou o preço por esse processo monstruoso que, quando não se consegue dosar, pode ser bastante corrosivo. Se serve de consolo, e imagino que sirva, o que ficou desse processo foi uma obra que não permite que tudo tenha sido em vão. Muito pelo contrário. E já que falamos em corrosão, se pudesse ficar apenas um recado ao eterno Mutante, diríamos: jamais virará bolor.
Mutante: as cores e os sons de Arnaldo Baptista
Ficha técnica:
Produção – Adriano Zuli, Carolina Carvalho e Vinicius Bertolo
Iluminação – Luiza De Rossi
Captação de imagens – Rodrigo Ricordi
Ilustrações – Paulo Chagas
Projeções – Carolina Carvalho
Operação de som – Vinicius Bertolo
Músicos convidados
Contrabaixo – Rodrigo Cassuli
Bateria – Bruno Sesti
Louvado seja Deus que nos deu Arnaldo Baptista, pelo viés de Rafael Balbueno
rafaelbalbueno@revistaovies.com