A rua Bento Gonçalves fica a poucas quadras do centro de Bagé. No lado esquerdo, além da minha casa, encontra-se uma variedade de empreendimentos que vão desde a famosa fruteira do Zico, o antiquário da Martha até salões de beleza, lojas, imobiliárias e escritórios de advocacia. É em um desses escritórios, logo na esquina da Bento com a General Osório, que se encontra o brechó da Maria de Lourdes.
A casa amarela, de arquitetura antiga como muitas casas da cidade, abriga no que viria a ser a sua garagem, um negócio que tem dado certo há 15 anos. Em meio a um mundaréu de roupas por todos os lados, a senhora de 63 anos me recebe desconfiada atrás do balcão.
A bagunça organizada do brechó demonstra que Dona Maria recebe muitas roupas para vender. São sacos e mais sacos repletos de tudo o que é tipo de vestuário. A peça já é pequena para tanta mercadoria. Maria só não se muda porque o aluguel é caro em outros lugares. Há cinco anos nesse local, a comerciante conta que iniciou o seu brechó por causa de uma amiga: “Antes daqui eu trabalhei de doméstica, há muito tempo. Aí eu parei e quis montar uma coisinha mais minha. O artesanato é pouco valorizado, então eu resolvi mudar”, revela.
Além das roupas, é possível comprar os bordados, pinturas, tricôs e crochês que Maria faz. Também tem meias, calcinha, sutiã, botão, agulha, capacete, prendedor de cabelo e roupas de festa para alugar. A variedade de produtos é a marca do negócio de Maria de Lourdes.
A simpatia escondida e envergonhada da senhora viúva, que tem cinco filhos, um companheiro e uma neta, surge sorrateira no meio dos cabides coloridos, bolsas penduradas no teto, fantasias e diversos tipos de vestimenta que ela produz: “vestidos eu faço às vezes, reforma também. Alugo pra semana farroupilha, vestido de noiva, aia…”, comenta.
Durante a nossa conversa aparecem algumas pessoas para vender roupas. Dona Maria recusa, diz que está cheia de mercadoria. “Eu só compro, não fico com nada de ninguém. Tudo que tem aqui é meu, é comprado. Eu já tenho umas clientes que todos os anos são as mesmas que vêm e me deixam. Daqui da cidade mesmo. Tem umas lojas que me deixam roupa com etiquetas, me deixam a preço de custo, mais barato. As roupas que sobraram de uma estação pra outra, que não são vendidas”, explica. Quando ela vai atender algum cliente, aproveito para olhar de perto e ver se não encontro algo para mim. Segundo ela, seus clientes são diversos. “Tem com dinheiro, sem dinheiro, tem médio, bem variado”. Tem até clientela de Dom Pedrito, Hulha Nega, Candiota e Aceguá.
Aproveito o movimento e caminho alguns passos até os fundos do brechó. Observo a manequim bem vestida e aquecida com um vestido de lã. Em uma tarde fria de maio, penso que ela está mais agasalhada do que eu. Sorte dela. Já longe do devaneio, vejo Maria sair de trás do balcão. Ela se debruça no colorido das roupas penduradas nos cabides. “Eu faço muita doação também, campanha do agasalho, colégio, etc. Sempre ficam coisas que não saem, não adianta.”
Como se eu estivesse numa visita guiada, Dona Maria começa a perambular pelo brechó e me mostra as acomodações. A cicerone entra em uma peça escondida e camuflada pelas roupas. Uma espécie de passagem secreta. A peça, muito apertada, comporta alguns armários com as tão faladas roupas de festas que ela aluga. É uma mais bonita que a outra. São lantejoulas, vestidos, ternos e sapatos de primeira linha. Os perfumes impregnados em algumas vestimentas denotam que elas foram usadas. Rapidamente, Maria responde que lava as roupas com uma sabão especial. Essas estão na fila.
Seguindo os passos da senhora já entregue à minha curiosidade, ultrapasso o balcão e encontro escondida uma pequena parte da máquina de lavar roupas. Depois de lavar as peças, Maria deixa secá-las ali mesmo no brechó. “Seca rápido”.
Atrás da montanha de casacos, blusões, moletons, blusas e camisetas, encontra-se uma cozinha improvisada com fogão, mesa e geladeira. “Tem muitas coisas pra fazer. Três vezes na semana eu poso aqui e tem noites que eu não durmo”. Um colchão de casal, também escondido por baixo das roupas, serve de repouso para as noitadas de organização do empreendimento.
Além das peças que ela compra diretamente das pessoas, Maria viaja algumas vezes para São Paulo. Ela ainda conta com ajuda de amigos de Porto Alegre, Santa Maria e empresários de Bagé. A neta e a sobrinha ajudam no negócio. Pâmela, que não gosta de tirar fotos, já terminou os estudos e ganha um bom salário para trabalhar com a avó. “Seria só de tarde que eu trabalharia, mas eu sou uma neta chata e eu venho de manhã também. Fazer o quê em casa? Nada, né. Se eu trabalhar o mês todo, ganho novecentos e poucos reais”. Segundo ela, um dinheiro difícil de conseguir em outro comércio da cidade.
Para Maria de Lourdes existe ainda muito preconceito com os brechós: “teve gente que ficou parada na porta e eu dizia: – O senhor não quer entrar, sentar, sair do sol? Não, não vou entrar porque eu posso pegar uma doença. O preconceito é incrível nos dias de hoje”. Apesar disso, de segunda à sexta, Dona Maria não desiste do negócio. “Agora, graças a Deus, sempre sobra um troquinho. Eu tenho uma mãe velhinha, uma irmã que é deficiente, então quando eu vou a Lavras eu ajudo, levo alguma coisa, um ranchinho”. Além de ser um meio de sustento, Dona Maria conta que gosta do que faz e adora costurar, ajeitar, modificar as roupas. A máquina overlock atrás do balcão não a deixa mentir.
Pelas contas de Maria de Lourdes, são mais de cinco brechós espalhados pela cidade. Um dado interessante para uma cidade conservadora e ainda pouco acostumada com esse ramo de loja. Segundo um levantamento do Sebrae/RJ publicado em outubro do ano passado, o número de brechós cresceu 210% em cinco anos, o que representa mais de 11 mil empreendimentos desse tipo no país. Só no Rio Grande do Sul são 1,2 mil estabelecimentos de artigos usados de pequeno porte. A informação é do Fórum de Debates sobre o Mercado de Brechós, que aconteceu em Porto Alegre, no final de maio.
De volta ao brechó, um rapaz se aproxima do balcão e oferece dois blusões praticamente novos para Dona Maria. Ela indaga a procedência, tenta hesitar, mas compra as duas peças. Eu experimento, mas percebo que ficam muito grandes. Deixo pra lá e vou atrás de um tênis all star. De volta aos fundos do brechó, na estante dos calçados, observo um par bem novinho. Número 42. Encaro a manequim e prometo voltar com mais calma para comprar um casaco pra mim.
O brechó da Tia Maria, pelo viés de Felipe Laud*.
*Felipe é jornalista formado pela UFSM e autor do blog Rua da Gente.