A emergência das redes sociais online potencializou discursos antes apagados. Sujeitos e organizações outrora sem voz, ou cuja voz era restrita a guetos políticos e sociais, ganharam possibilidade de repercussão. Ao mesmo tempo em que essa transformação nas relações e dinâmicas sociais oferece novos caminhos aos sujeitos e movimento transformadores, humanistas e democráticos, o microfone também está aberto aos setores mais conservadores da sociedade. O senso comum conservador possui características muito claras de formulação e de conteúdo: é individualista, punitivo, autoritário e, sobretudo, violento. Em um contexto político polarizado e agressivo como o que vivemos hoje, o discurso de ódio emerge sem qualquer constrangimento e traz consequências que vão muito além de intelectos feridos pela vergonha de escutar ou ler absurdos tão recorrentes.
O discurso social em torno de cada tema vai formando a percepção coletiva sobre esse assuntos e sobre questões gerais. Discursos que atacam negros, homossexuais e mulheres, ou mesmo que reforçam estereótipos em torno desses grupos, vão construindo um imaginário contrário a eles. É esse imaginário de rejeição que leva aos preconceitos, às desigualdades sociais entre brancos e negros, entre heterossexuais e homossexuais e entre homens e mulheres. E é esse imaginário que leva também à violência física, elo final de uma corrente de violências de tipos os mais variados.
Quer dizer, a violência não surge do nada. Entre outros fatores, é porque se diz que algo mal feito é “serviço de negro” que a chance de um adolescente negro ser assassinado no Brasil é 2,5 vezes maior do que a chance de que o mesmo ocorra com um adolescente branco – em 2012, 30 mil jovens foram assassinados no Brasil, e 70% deles eram negros. É porque se diz que “lugar de mulher é na cozinha” que a cada uma hora e meia uma mulher é assassinada no Brasil em casos de violência de gênero, ou seja, pelo fato de ser mulher – 40% dos casos têm parceiros ou ex-parceiros como assassinos. É porque se diz que “família é homem e mulher” que a homofobia leva a um assassinato a cada 28 horas no Brasil – é o país campeão de assassinatos de homossexuais.
A palavra não é neutra. Ela tem sentido e um direcionamento político, percebamos ou não tudo o que cada frase que dissemos ou escrevemos carrega. As escolhas discursivas são construídas por determinada noção sobre o mundo e podem reforçar ou ajudar a transformar as práticas cotidianas desse mundo. O falar, portanto, é um ato político em si, queira-se ou não. Como ter nas próprias mãos o seu fazer político, então? Um bom começo é refletir sobre a própria fala e perceber seu verdadeiro caráter conservador ou transformador, autoritário ou democrático, preconceituoso ou humanista. Algumas frentes são fundamentais nesse questionamento.
A afirmação de que se trata “da minha opinião” não torna permissíveis posicionamentos preconceituosos ou que preguem o ódio. A “opinião” não está desvinculada de uma série de pressupostos analíticos e de compreensão do mundo. Se a sua “opinião” carrega elementos machistas, homofóbicos ou racistas, é hora de refletir melhor e transformá-la. O mesmo acontece com outra frente, a linguagem. Vivemos todos em uma sociedade capitalista, e, assim, carregamos os vícios dessa sociedade. Temos o patriarcado impregnado em cada um de nós. Temos o racismo e a heteronormatividade impregnados. Com esse padrão de mapas mentais, fazemos piadas preconceituosas como se fossem apenas piadas, utilizamos xingamentos como se fossem “normais”. Enfim, a tendência é a naturalização do que, na verdade, é cultural e opressor. Desconstruir esses mapas mentais é uma tarefa diária a que todos os que querem uma sociedade melhor devem dedicar-se.
Conjuntura desfavorável
Está claro que o momento do país não é o mais favorável para combater discursos de ódio. Eles estão por todas as partes. Como já disse, a emergência das redes sociais online permite a todos, em alguma medida, dizer o que quiser. Com um nível de politização bastante baixo e um conservadorismo de senso comum arraigado, o que estoura com mais força é o discurso de direita, autoritário e violento.
Quer dizer, a violência não surge do nada. Entre outros fatores, é porque se diz que algo mal feito é “serviço de negro” que a chance de um adolescente negro ser assassinado no Brasil é 2,5 vezes maior do que a chance de que o mesmo ocorra com um adolescente branco – em 2012, 30 mil jovens foram assassinados no Brasil, e 70% deles eram negros. É porque se diz que “lugar de mulher é na cozinha” que a cada uma hora e meia uma mulher é assassinada no Brasil em casos de violência de gênero, ou seja, pelo fato de ser mulher – 40% dos casos têm parceiros ou ex-parceiros como assassinos. É porque se diz que “família é homem e mulher” que a homofobia leva a um assassinato a cada 28 horas no Brasil – é o país campeão de assassinatos de homossexuais.
Além disso, temos um contexto de ódio quase generalizado ao governo – identificado apenas como “PT, Dilma e Lula” ou pouco mais do que isso. Esse ódio é causado por diversos fatores: de erros e capitulações do próprio Partido dos Trabalhadores, características e rearranjos da direita institucional brasileira e sua relação com a mídia dominante, retrocessos como as MPs 664 e 665 e o projeto de ampliação das terceirizações, e até mesmo avanços como os programas Bolsa Família e Mais Médicos. Quer dizer, há um incômodo desorganizado e, com uma esquerda fragilizada e em alguma medida esquizofrênica, e um governo que em mais de três mandatos não forneceu ao conjunto da população capital político, quem melhor tem organizado essa indignação é a direita, especialmente através dos meios de comunicação – os quais, vale dizer, o governo também jamais procurou efetivamente democratizar.
É apenas construindo formas de atuação pedagógica e coletiva que se pode fazer frente a essa difícil realidade. É necessária uma retomada dos “novos” movimentos populares que sofreram com a desagregação provocada pelo processo eleitoral e pela Copa do Mundo de 2014. É necessária também uma urgente atualização dos movimentos populares “tradicionais”, cada vez mais descolados da realidade que os cerca. Os discursos e as práticas individualistas, punitivos e violentos só poderão, em especial nesse contexto, ser combatidos com discursos e práticas coletivos, solidários e democráticos.
Contradiscurso, pelo viés de Alexandre Haubrich*.
*Alexandre é editor do Jornalismo B.