Alguns homens desse país defendem que a vida seja um instrumento de punição. Punem as crianças pobres e negras como consequência de sua condição de vida. Matam a quem nunca ofereceram, ao menos, um indício de dignidade. O sorriso no rosto dos deputados que votaram pela redução da maioridade penal em assembleia é uma afirmativa do crescimento do ódio no país. E querem que riam, até a morte, quem passa fome, quem é excluído por não ter, quem não tem acesso à escola, as mães trabalhadoras e solteiras, os pais explorados e cansados. O questionamento feito certa vez por Benedetti é trazido para cá como uma dúvida inquietante. “Numa perfeita foto do jornal, senhor ministro do impossível, vi enlevado e eufórico e perdido de riso o seu rosto simples. Serei curioso senhor ministro: de que se ri? de que se ri?”.
A realidade do sistema socioeducativo se apresenta no seguinte relato: “eles eram tratados como cachorros, eram violentados por qualquer questão. Se fossem reivindicar melhor qualidade da comida ou mais horas no sol, eles eram tratados como indigentes”. O relato trata de jovens que passaram pelo sistema socioeducativo fechado no Rio Grande do Sul. Assim são “educados” os menores no país. Muitas vezes, em condições piores e mais repressivas.
Um Educador Social, que preferiu não ser identificado, trabalhou por oito meses na Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE) no sistema de semiliberdade em Pelotas. Segundo ele, a FASE apresenta vários problemas. Um deles é não contratar pessoas capacitadas ou pelo menos capacitar os trabalhadores para lidar com os menores infratores.
“Lá dentro ninguém passava por uma capacitação pra saber lidar certamente com eles. Geralmente eram contratados homens e seguranças grandes para conter os jovens. Nós que tentávamos ter um melhor diálogo com os jovens acabávamos conseguindo. Justamente, porque a gente não estava ali para conter ou segurar eles. A gente estava ali pra ajudar eles a conviver em sociedade”.
O educador ainda apresenta a ineficiência dessas instituições em ressocializar os menores. “Havia um próprio dado da FASE que de 90 a 95% dos menores infratores reincidiam criminalmente. Que eu saiba, lá dentro, os únicos que tinham alas separadas dos demais pra que não houvesse abuso eram os ditos duques, um termo que vem do artigo 213 que significa estupro. Ou seja, quem cometia até mesmo latrocínio (roubo seguido de morte) ficava na mesma ala de quem cometia furto banal numa vendinha. Tu imagina tu ter ali como colega de classe alguém que já está há muito tempo nesse processo, que está cumprindo novamente a mesma pena. Eles saíam um robozinho da criminalidade lá de dentro”. A equipe da revista o viés tentou contato com a FASE de Pelotas, mas não tivemos acesso, pois segundo a diretoria eles estão em processo de reestruturação e visitas não podem ser feitas, nem mesmo entrevistas puderam ser dadas.
A redução da maioridade penal é discutida no mundo inteiro há muito tempo. Os países possuem políticas diferentes. Os Estados Unidos é o país com a política mais repressora do mundo. Do lado oposto, a Suécia fecha prisões pelo decrescimento de presos. Cada população vê a política de combate à criminalidade de maneira diferente. Mas, ainda que faça parte do processo democrático a exposição de ideias, não se pode negar os dados que apontam a falta de efetividade no combate à criminalidade com a redução da maioridade penal. Nenhum país no mundo que reduziu a idade penal conseguiu diminuir a criminalidade.
A redução e a Constituição Federal
A Ordem de Advogados do Brasil (OAB) e outras entidades consideram inconstitucional a PEC 171/93, que propõe reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos. “A OAB Federal, através da sua Comissão de Direitos Humanos, defende desde 2007 que a regra contida no art. 228 da Constituição Federal, que prevê a inimputabilidade penal aos menores de dezoito anos, constitui um direito fundamental do indivíduo. Logo, o art. 228 seria uma cláusula pétrea que não pode ser modificada ou abolida nem mesmo por emenda constitucional. A grande polêmica é que o art. 228 não está inserido no artigo 5º da Constituição Federal, que trata dos Direitos e deveres individuais e coletivos. Para resolver essa polêmica, a OAB alega que o STF já reconheceu numa decisão relacionada a outro direito fundamental, a possibilidade de existirem outras cláusulas pétreas para além do art. 5° da Constituição Federal (no caso o art. 228)”, segundo afirma o professor de Direito da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Tiago Nunes.
No entanto, o Congresso Nacional ignora isso e coloca em votação um tema nem ao menos discutido com a população. O professor elucida como isso é possível. “Uma questão importante a ser explicada é que no sistema político brasileiro (e de muitos outros países) é possível e muito comum que o parlamento na sua atividade política (seja na esfera municipal, estadual ou federal) elabore leis que tenham conteúdo ilegal, em desconformidade com o restante do ordenamento jurídico ou mesmo inconstitucionais (em desrespeito à Constituição Federal, que é a norma mais importante). Assim, cabe ao Poder Judiciário realizar o controle de constitucionalidade (legalidade de uma lei) em última instância. Assim, frente à possibilidade da eventual redução da maioridade penal pelo congresso, a OAB certamente ajuizará ação de inconstitucionalidade no STF e este deverá se pronunciar claramente a respeito”.
As políticas adotadas pelos últimos governos foram exitosas na diminuição da pobreza extrema, mas não lograram reduzir a desigualdade social. Aliás, ela só aumentou. E essa desigualdade também se manifesta no sistema penal. Apesar de cega, muda e surda existe um corte de classe no sistema penal, este tem a mão mais pesada quando o réu é pobre.
Questionado sobre quais políticas públicas seriam efetivas para diminuir a criminalidade e aumentar a ressocialização de menores infratores, o professor destaca a importância de uma política de combate à desigualdade social, questão intimamente ligada com o fator da violência urbana. “As políticas adotadas pelos últimos governos foram exitosas na diminuição da pobreza extrema, mas não lograram reduzir a desigualdade social. Aliás, ela só aumentou. O Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo. E essa desigualdade também se manifesta no sistema penal. A questão é saber quem são os detidos que lotam as prisões do Brasil! Apesar de cega, muda e surda existe um corte de classe no sistema penal, este tem a mão mais pesada quando o réu é pobre. A maioria dos detentos é parda ou negra e possui baixa escolaridade. Outro dado interessante é que quase a metade dos presos brasileiros é formado por presos provisórios, aqueles que ainda não foram condenados, mas que mesmo assim estão encarcerados”.
Amanhecer contra a redução
Durante os anos que sucederam a ditadura, no processo democrático, poucas políticas de resgate da memória trouxeram à tona a repressão militar e discussões para o combate a ela. A escola traz a discussão para a sala de aula com um discurso tão engessado que a atenção se prende muito mais ao que deve ser decorado – para logo ser esquecido – do que a como se pode compreender o que significou para as pessoas torturadas, para as famílias de presos e perseguidos políticos e, principalmente, para a política de interesse dos militares e da elite. A mídia sempre tratou o fato como relativo do ponto de vista de quem olha para a história e alguns jornalistas chamam, ainda hoje, a ditadura de “revolução de 64”.
Faço esse apanhado para falar sobre os resquícios repressivos da polícia, o apoio da população brasileira para a redução da maioridade penal como consequência do método educacional e da desinformação muito bem articulada pelos monopólios midiáticos. Se hoje 83% das pessoas são favoráveis à redução da maioridade penal, ouso afirmar que se trata especialmente da desinformação sobre o sistema penitenciário, sobre a repressão covarde policial e sobre a ineficiência dessa política em outros países que compraram o discurso. A Alemanha e a Espanha, países que diminuíram a idade penal, resolveram voltar para 18 anos a punição adulta.
Após as eleições presidenciais de 2014, no Brasil, a direita obteve um crescimento significativo no Congresso Nacional. Tanto na Câmara como no Senado, as discussões são pautadas pelo retrocesso. Com a crise econômica, a população exigiu respostas viáveis do governo. Sendo assim, a Reforma Política surgiu – em um primeiro momento – como alternativa mais prática e viável para a resolução dos problemas políticos do país. No entanto, o que temos visto é uma reforma de contramão aos direitos trabalhistas e aos direitos humanos. E, com isso, estamos prestes a ver o Congresso votar pela redução da maioridade penal.
Para representantes da organização Amanhecer contra a Redução, nem todos os parlamentares têm posicionamento fechado sobre a PEC. Sendo assim, é fundamental construir atividades nas ruas, dialogar com a população no sentido de informar sobre o tema e convencer as pessoas da ineficiência da redução.
“Nós temos um grupo de trabalho que estuda o mapa da Câmara e tem como objetivo traçar a melhor maneira de fazer pressão política. A votação será muito apertada, diferente do que tentam mostrar na grande mídia. Nem a maioria esmagadora da sociedade é a favor da redução, nem a maioria esmagadora do Congresso. Hoje a câmara se divide em três partes, contrários e favoráveis estão praticamente empatados. Mas a maioria dos deputados e deputadas não tem posição fechada ainda. O Amanhecer serve também para mostrar que uma grande parte da população é contra a redução, e assim parlamentares que estejam em dúvida de fechar sua posição como contrária a redução, possam fazer sem ter tanto medo da opinião pública”, afirma Thomaz Gaio S. Soriano, que participa do Amanhecer contra a redução.
Para falar sobre violência e punição sem pesar e entristecer as pessoas, ainda que o assunto carregue consigo o cinismo dos parlamentares que defendem e a dor das mães e dos jovens punidos, o grupo se inspirou na campanha “No a la baja” do Uruguai para dizer não à redução. Desde a campanha do “No” que defendia o fim da ditadura de Pinochet no Chile, alguns publicitários defendem que cores alegres e festivais culturais atraem muito mais a atenção das pessoas do que discursos carregados de conceitos e negatividade.
“A campanha do ‘No’ particularmente é uma eterna fonte de inspiração. O Amanhecer surgiu no Rio de Janeiro inspirado diretamente pelas ações do ‘No a la baja’. Quando a PEC 171/93 foi aprovada na CCJ da Câmara, um grupo de jovens se inspirou no movimento uruguaio para começar a mobilizar mais jovens para a campanha. Acreditamos que a forma de narrativa do Amanhecer é ponto principal do alcance que conseguimos ter até agora. Partimos do princípio de que devemos ter ações criativas, que quebrem certos paradigmas dos movimentos sociais tradicionais, com o objetivo das nossas ações dialogarem com quem não necessariamente já concorda com a gente”, afirma Thomaz. E acrescenta falando que desde o início das atividades até então, foi possível notar uma mudança nas opiniões. “Na primeira atividade pública, que foi o Amanhecer de 400 praças pelo Brasil, tivemos pouco espaço de debate ao vivo com a sociedade já que as praças foram enfeitadas durante a madrugada. O objetivo era levantar o debate quando a cidade acordasse, sem estarmos necessariamente presentes nos locais. Todas as atividades seguintes foram ‘corpo-a-corpo’. Fizemos intervenções em shows de público diverso, debates e rodas de conversa. Conforme a campanha crescia, escutávamos mais pessoas que já conheciam ou que já tinham falado com outra pessoa do Amanhecer. Sempre emocionante conseguir colar o nosso adesivo em alguém que chega pra conversar achando que a redução da maioridade penal irá reduzir a violência”.
“Há quem tenha medo que o medo acabe”
A discussão sobre a redução da maioridade penal na Câmara trouxe algo importante: discutir políticas públicas para o combate à criminalidade. Para além disso, é preciso problematizar o debate e inserir fatores extremamente importantes como, por exemplo, o sistema penitenciário brasileiro. Pois ganhar na pauta da redução não é suficiente para avançar.
As fundações de socioeducação e as prisões não oferecem reeducação, inclusão social e ressocialização a nenhum menor infrator e detento. Mas antes disso, precisamos pensar como fazer para que as pessoas nem mesmo tenham motivos para serem punidas. Considerando que a maioria das pessoas presas são pobres, negros e homens, três questões são fundamentais para serem pensadas: o combate à desigualdade social, ao racismo e ao machismo.
Alguns menores infratores são presos por matarem os padrastos ou pais que violentavam suas mães. A realidade da maioria das famílias que sofrem com seus filhos presos é de mães solteiras que trabalham o dia inteiro e têm contato com os filhos apenas no final do dia. A falta de condições financeiras para comer, vestir, ter acesso à cultura e ao lazer acarretam na necessidade de ter esses direitos de alguma maneira. Se o Estado não dá, se o emprego é precário ou falta oportunidades para ocupar esses espaços, as pessoas ingressam no crime como forma de obter o que é seu por direito, pelo menos, o básico, de alguma maneira. Não estou falando aqui de não haver punição, mas sim de explicitar que a maioria dos crimes são furtos banais (comida, por exemplo) ou motivados pela condição precária de vida e que, com políticas públicas que garantam cultura, educação, casa e comida, a criminalidade, a pobreza e o racismo podem diminuir.
No entanto, deputados se utilizam do cinismo para defender um regime genocida jogando com o sentimento de medo e insegurança da população, articulado com a grande mídia que omite a parte mais importante do debate. O financiamento privado das campanhas – tema polêmico na Câmara que, em um primeiro momento votou pelo fim, mas no dia seguinte, voltou atrás e manteve o financiamento por empresas privadas às campanhas de parlamentares – tem relação direta com o desejo de deputados para diminuir a redução da maioridade penal. Visto que, ao passo que não há políticas públicas para o combate à criminalidade, somente a redução não acabará com ela. Pelo contrário, provavelmente aumentará. Com isso, mais prisões privadas serão abertas. Os empresários por trás dessas prisões são os mesmos financiadores das campanhas dos partidos que defendem a redução.
A juventude quer amanhecer e voar. Quer escrever, cantar, desenhar, praticar esportes, comer, estar aquecida e ter onde morar. A juventude não quer morrer. Que o medo não seja morada da redução de direitos e sim, sirva para exigir políticas públicas efetivas para a garantia dos direitos da juventude. Queremos que as mortes cessem e que as crianças brinquem e que a política mude. Devemos, então, pensar racionalmente e direcionar nossos sentimentos aos ninguéns. No texto “Há quem tenha medo que o medo acabe”, Mia Couto explicita a manutenção do medo por poderes políticos. Encerro minha reflexão com a sensibilidade dele pra que a gente se comova e comece a trilhar um outro amanhecer.
“Para fabricar armas, é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.
Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de ‘eles’. Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível”.
A redução da maioridade penal e o medo do medo acabar, pelo viés de Maiara Marinho