Crianças são exploradas por adultos, mulheres são abusadas por maridos violentos, um homem negro é encontrado morto na porta da favela. Isso tudo é visto cotidianamente na mídia, e principalmente nas novelas Globais, sem que cause qualquer espanto. No entanto, se duas mulheres se beijam em uma cena em horário nobre, isso não pode. Como assim não pode? Um dos mais eminentes filósofos da atualidade e ainda vivo, o francês Edgar Morin, defende, há muitos anos, a necessidade de entendermos a relação a partir do que é visto como complexo e desviante no dia a dia dos indivíduos e em suas relações no mundo. Nesse viés, é necessário problematizar a proibição e proporcionar o rompimento da pedagogia do armário e da heteronormatividade.
O ambiente escolar proporciona um solo fértil e é uma etapa de suma importância para a construção e desconstrução dos indivíduos, e como bem disse o escritor Guimarães Rosa: “O bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão terminadas, não nascem prontas, elas afinam e desafinam”. Edgar Morin se debruça no âmbito do conhecimento transmitido pelas instituições de ensino e elabora problemáticas necessárias para a educação do futuro, incluindo, por exemplo: a necessidade de ensinar a condição humana; a necessidade de discutir sobre a vida terrena e a relação estreita que existe entre todas as criaturas vivas e suas produções. Para isso, ele trabalha com o conceito da palavra “complexo”, argumentando que complexo é tudo aquilo que é tecido junto, ou seja, a complexidade humana não pode ser reduzida a poucas derivações e normas instauradas por classes dominadoras. Na verdade é complexo exatamente porque existe a possibilidade de tecer milhares de fios no tecido social. É nesse local, a escola, que os jovens passam, no mínimo, 12 anos de suas vidas. Nesse período os hormônios estão em atividade permanente e as funções cognitivas se formando e estruturando.
Nesse tocante, a instituição escola pratica a pedagogia do armário, a qual regula a vida social e doutrina pela coerção moral e, como assertivamente já dizia Foucault, “a domesticação dos corpos”. Controlar os jovens e as erupções sexuais transmitida por ações corporais e falas, no cotidiano escolar, é o foco de instituições que estão fechadas em normas prontas e perpetuadas há muito tempo. Essa questão, para a psicologia, inicia desde o complexo de édipo, quando a criança vive a tríade mãe-criança-pai, se identifica com um dos progenitores e, lá pelos cinco anos de idade, a figura paterna entra em cena e instaura a lei e a regra, as quais a criança inconscientemente internaliza e passa a respeitar. No entanto, aceitar o complexo de édipo como algo instaurado é viver a relação eternamente e sempre esperar que a figura paterna faça seu papel de doutrinar com a lei, com a moral do certo e do errado. Por isso que os filósofos Deleuze e Guattari discutem essa necessidade de, em todas as gerações subsequentes ao aparecimento do complexo de édipo, os indivíduos terem que passar e viver o édipo. No livro “Anti-Édipo”, os filósofos trabalham a ideia de desprendimento do édipo pela sociedade, o que permitiria que os pais e professores pudessem trabalhar a questão sexual com mais abertura e sem a necessidade de seguir a norma edipiana. Nesse sentido, Eve Sedgwick, em seu livro intitulado “A epistemologia do Armário” explica muito bem que o regime de ocultações de posições dissidentes à matriz heterossexual, a qual domina e controla as condutas das crianças para que elas se mantenham na linha da sexualidade héetero, age para manter o silêncio ou para expor os jovens de forma preconceituosa.
Além disso, pensar e permitir que a heterossexualidade seja o padrão de gênero é heteronormatizar os indivíduos. Nisso, aqueles que não seguem as normas estão se desviando das condutas estabelecidas pela sociedade cultural vigente. Voltando à Morin, ele também trabalha com os conceitos de racionalização e racionalidade, sendo o primeiro um sistema fechado, o qual trabalha apenas com os dados aparentes e mostrados, que não considera fatores não evidentes e tem a solução em si mesma. De certo modo, é o pensamento de racionalização que alimenta grande parte da sociedade quando se pensa que ser heterossexual é o padrão e qualquer ponto destoante à norma deve se guiar por essa matriz. Já a racionalidade é aberta e considera novos dados, ela é aberta também porque se autocritica, avalia e reconsidera suas relações e suas variáveis. Ademais, é imperativo romper com esses dois sistemas, a pedagogia do armário e a heteronormatividade, e mostrar à população que diversidades sexuais existem e é natural que seres humanos, providos de todo o aparato cognitivo-emocional, estabeleçam relações, independente de gênero, etnia ou credo. Afinal, assim como na alegoria da caverna em Platão, só conhecerá a verdade quem olhar para a luz e deixar de contemplar apenas sombras projetadas por esses corpos.
Portanto, a mídia, vinculada a programas televisivos, como as novelas, deve expor à sociedade que esses fatos alimentam nossas vidas, queiramos enxergar isso ou não. Assim como o filósofo Deleuze demonstrava em suas obras, precisamos de atos e leituras que nos desacomodem, nos retirem do prumo, nos balancem do ponto de equilíbrio. Desse modo, cabe aos doutos, aos letrados e aos pensadores incitarem discussões abertas e contemplativas num tom agradável de esclarecimento, proporcionando, ao longo do tempo, a redução do medo pelo outro, que na verdade pode contribuir até mais do que os pares costumeiros, já que os “diferentes” também são repletos de sensibilidade, singularidade e compaixão.
Pelo Rompimento da Heteronormatividade, pelo viés do colaborador Leonardo Senna*.
*Leonardo Senna cursa Psicologia na UFSM.