O trabalho de Giulio Di Meo é marcado pelo profundo engajamento do fotógrafo com os oprimidos das terras por onde passa. Desde 2003, ele viaja por países da América Latina e da África em busca de imagens que falam de exploração, mas principalmente, que falam de resistência. No ano passado, Giulio publicou um livro de fotografias onde, nos retratos dos camponeses, está um pouco dos 30 anos de lutas do Movimento Sem Terra. O Jornalismo B (site parceiro da revista o Viés) conversou com Giulio, por email, sobre a fotografia, a beleza e os movimentos sociais.
Jornalismo B: Fale-nos um pouco sobre a sua trajetória como fotógrafo. Quando você começou a trabalhar com movimentos sociais?
Giulio di Meo (GM): Eu tenho trabalhado como fotógrafo freelancer há mais de dez anos, perseguindo meus próprios projetos de forma independente, sem trabalhar para as agências ou revistas. Em particular nesses últimos anos, eu estive trabalhando com reportagem e ensino: organizei encontros e oficinas de fotografia social e de rua na Itália e em outros países, e oficinas para crianças, adolescentes, imigrantes e pessoas com deficiência para promover a fotografia como instrumento de expressão e integração. Trabalho em colaboração com diferentes associações e ONGs, como a ARCS (Arte, Cultura e Desenvolvimento), a maior associação italiana com a qual, desde 2007, eu organizo oficinas de fotografia em diferentes países do hemisfério sul. Nestas colaborações, eu tenho documentado várias questões sociais, incluindo as realidades dos movimentos sociais. Eu acredito que a fotografia pode ser um veículo importante de informação e denúncia. Esta é a minha fotografia. A que amo e que eu gosto de chamar de “social”: uma fotografia que é feita de luta, raiva, indignação, mas também de amor, a paixão, esperança.
Como você começou a sua relação com MST?
(GM): Como meus avós eram agricultores, eu sempre fui atraído (como fotógrafo) pelas histórias dos camponeses. Quando eu cheguei ao Brasil pela primeira vez, em 2005, tive a oportunidade de conhecer o Movimento Sem Terra e eu decidi seguir neste tema indo a alguns acampamentos e assentamentos no estado da Bahia. No ano seguinte, em colaboração com o Movimento Sem Terra e a ARCS, organizamos o primeiro workshop de fotografia para jovens italianos e brasileiros a fim de dar-lhes a oportunidade de conhecer, através da fotografia, a realidade e as lutas do MST no Brasil. Este ano vamos organizar o oitavo curso de fotografia no Brasil, no estado do Ceará.
Como foi o processo de construção da obra Sem Terra: 30 anos de história, 30 anos de rostos?
(GM): O livro Sem Terra: 30 anos de história, 30 anos de rostos, publicado em outubro de 2014, nasceu quase por acidente. Em fevereiro 2014, fui enviado para o Sexto Congresso do MST, durante o qual eu fiz cerca de 400 retratos dos sem-terra, um pouco por diversão, um pouco porque eu estava fascinado pela ideia de retratar muitas faces e muitas as histórias que vieram de vários estados brasileiros. O MST e as associações italianas que apoiam o Movimento amaram as fotos e assim nasceu a ideia de criar um livro com elas. O livro foi publicado na Itália e no Brasil, e todas as receitas da edição italiana foram e serão doadas para a Escola Nacional Florestan Fernandes. Em janeiro de 2015, enviamos a primeira doação de € 1,000 para a Escola.
Por que você escolheu os rostos para retratar o MST? O que eles dizem sobre esse movimento social?
(GM): Como bem escrito pelo João Pedro Stedile, no prefácio do livro, as fotos mostram o que é o MST: rostos e nomes, expressões de luta e alegria, suas experiências e sua esperança. Através desses rostos você pode ver por quem é formado o MST: homens e mulheres, idosos e crianças, camponeses e intelectuais, ativistas e estudantes. Alguns deles vivem no Brasil, outros na América Latina e na Europa. Os militantes do MST vêm de todo o mundo.
O que é a beleza do movimento social?
(GM): Eu amo o MST porque é um movimento social que não só prega a mudança, mas que a realiza concretamente lutando, dia após dia, contra as maiores injustiças e dificuldades sentidas pelos agricultores brasileiros. Eu amo este movimento pela dignidade e solidariedade com que seus militantes enfrentam a vida cotidiana.
A beleza do MST está nos seus rostos?
(GM): Claro! A beleza do MST, bem como a sua história, está cunhada naqueles rostos: nas rugas dos idosos, um sinal de uma vida dura, e na alegria das crianças, símbolo de esperança para o futuro.
Como a beleza se expressa nos diferentes movimentos sociais?
(GM): Eu acho que a coisa mais bonita dos movimentos sociais é que eles lutam todos juntos para uma sociedade mais justa e melhor.
A beleza dos movimentos sociais pode ser retratada? Isso é possível?
(GM): Eu não sei se sou capaz de retratar a beleza dos movimentos sociais. O que eu tento fazer é dizer, descrever e mostrar através das fotografias o cotidiano dos movimentos sociais: a vida de todos os dias de pessoas que lutam com força, dignidade e esperança por um futuro melhor, apesar das injustiças que sofrem.
Como a fotografia contribui para a expressão das necessidades e lutas dos movimentos sociais?
(GM): Eu acredito que a fotografia é um instrumento útil para aumentar a conscientização sobre as lutas e histórias dos movimentos sociais. O fotojornalismo nasceu com a missão de descrever e mostrar ao mundo seus habitantes, com o objetivo de denunciar a miséria e os abusos sofridos por aqueles considerados menos importantes na nossa sociedade. Nasceu na crença de que essas imagens poderiam ajudar a subverter as injustiças. Eu acredito que hoje em dia os fotógrafos não podem limitar-se somente a informar. Hoje, se tornou necessário agir, tomar a iniciativa, tomar parte. Eu acredito na fotografia concreta, através da qual podemos alcançar algo tangível. Assim foi com o livro de fotos Pig Iron – Il ferro dei porci, sobre as injustiças sociais e ambientais cometidos pela multinacional Vale do Rio Doce no Brasil, com o qual temos recolhidos e doados 5 mil euros para a campanha internacional Justiça nos Trilhos. Como aconteceu com o livro Sem Terra, e a mesma coisa vai acontecer com o livro Il Deserto Intorno (um livro de fotos dedicado a refugiados saharauis), que será publicado em maio de 2015 e com o qual nós vamos recolher fundos para a associação chamada Afapedres, criada em 1989, como uma resposta civil e não-violenta para as contínuas violações dos direitos humanos cometidas pelo governo marroquino contra os saharauis.
Existe uma fotografia onde você acredita ter retratado a beleza dos movimentos sociais?
(GM): Eu estou muito ligado à foto de Luiz Beltrame. “Seu Luiz” tem 106 anos e ele é um símbolo para o MST. Em fevereiro de 1997, quando ele já tinha 88 anos, ele decidiu participar da primeira grande Marcha Nacional do MST: 1.500 quilômetros a pé para exigir justiça para o massacre de Carajás. Em 1999, ele participou de outra marcha, de Niterói para Brasília: mais de 1.700 quilômetros em vários meses de caminhada, enfrentando todos os tipos de dificuldades. Em 2005, o MST organizou a Terceira Grande Marcha Nacional, que viajou 330 quilômetros de Goiânia a Brasília, com a participação de 17 mil militantes. Seu Luiz, que foi com 97 anos, estava novamente na primeira fila. Para todos os militantes do MST, ele é um exemplo de coragem, força e humildade. Com seu espírito de sacrifício, ele ganha força para continuar no caminho da luta.
Outra foto a que estou muito ligado foi tirada em um acampamento do MST no Pará (primeira imagem). A menina olha para um folheto que anuncia um novo bairro em construção: é bonito, luxuoso, limpo, é o lugar certo onde crescer feliz e onde construir um futuro de paz. Seu pai está voltando de uma manhã de trabalho no campo e ele tem apenas tempo para um prato de arroz e feijão, consumido em pé. Na cabine por trás deles, o resto da família está comendo e não há cadeiras suficientes para todos. O pai para na porta observando a filha. Em sua face, você pode ler a preocupação de não ser capaz de oferecer aos filhos um futuro digno e uma educação adequada. A raiva e a esperança se alternam com dor na alma dessas pessoas. É definitivamente um mundo injusto, mas a confiança em um futuro melhor e a vontade de viver lhes dá a força para resistir e para ir em frente todos os dias, nunca desistir. No boné que ele usa para se abrigar do sol escaldante se destaca a palavra “VIVO”, e não importa se é o logotipo de uma empresa de telefonia no Brasil: ele está vivo e, com ele, a esperança de que as coisas, mais cedo ou mais tarde, ainda podem mudar.
“Amo o MST pela dignidade com que seus militantes enfrentam a vida cotidiana”*, pelo viés de Bruna Andrade**
*Entrevista originalmente publicada em JornalismoB
*Bruna Andrade é redatora do Jornalismo B.