Quinto andar. Sala 521. Para os que passam por ali, é apenas mais uma das salas da Reitoria da Universidade Federal de Santa Maria, sem qualquer adorno ou placa de identificação. Os mais bem informados sabem que ali funciona o gabinete de Paulo Bayard, vice-reitor da instituição. Mas, se voltássemos no tempo, num passado não tão distante, veríamos que aquela sala já guardou fatos obscuros dessa que é a primeira universidade do interior do país.
Durante a ditadura militar, funcionou ali a Assessoria Especial de Segurança e Informação, ou AESI, responsável por monitorar atividades consideradas subversivas dentro de repartições públicas, incluindo Universidades Federais: estudantes, docentes e técnicos administrativos em educação eram constantemente investigados pelo órgão. Em 1986, um ano após a redemocratização do Brasil, a AESI que funcionava na Universidade foi a última a ser fechada no país. Os documentos que comprovariam os anos de perseguição cometida pelo órgão não foram encontrados, e o cofre que os guardava estava vazio. Desde aquela época, levanta-se a questão: onde foram parar os arquivos da repressão na UFSM?
É preciso contextualizar o período para se obter algumas respostas. O Golpe de 1964 não foi mal recebido pela alta hierarquia da Universidade. O então reitor e fundador José Mariano da Rocha Filho era um declarado apoiador do novo regime. Foi também um dos idealizadores e oradores da chamada “Marcha de Agradecimento”, que, em 17 de abril de 1964, enalteceu a presença militar no governo federal. Um texto de sua autoria foi publicado no dia seguinte à passeata, no jornal A Razão, em agradecimento aos militares que trouxeram ao Brasil a “derrocada do comunismo, que pretendia substituir por imagens humanas a imagem de Deus e o Cruzeiro do Sul por uma Ursa Polar”.
O mesmo jornal noticiaria, um dia depois, uma viagem de Mariano da Rocha a Brasília para uma reunião com o novo ministro da Educação, Flávio Lacerda. Naquele ano, com o aval de Mariano e outros reitores, Lacerda implementaria os termos do polêmico acordo MEC-Usaid, que instaurava o modelo tecnocrático do ensino superior americano, que visa o mercado de trabalho, nas Universidades Federais brasileiras. Dez dias após a reunião, o professor Mariano da Rocha seria consagrado cidadão emérito de Santa Maria, louro também noticiado pelo jornal A Razão.
A fidelidade da UFSM com o Regime se faria sentir também nos movimentos estudantis. O então estudante de Engenharia Civil, Dartagnan Agostini, comenta que as gestões do Diretório Central dos Estudantes foram simpatizantes aos militares, com exceção da gestão de 1966, da qual fez parte. Como o movimento estudantil estava cerceado pelos militares, a alternativa para a juventude militante de esquerda se encontrar e se organizar era a Vanguarda Cultural, um grupo que realizava peças de teatro e outras atividades culturais na antiga sede da União Santa-mariense de Estudantes, na Rua do Acampamento.
Com a UFSM comprometida com o regime e os movimentos estudantis ligados à clandestinidade, é notório que a AESI tinha o ambiente perfeito para realizar suas investigações. Logo, é de se surpreender que o vasto material que ocupou a sala 521 nunca tenha sido encontrado. O professor do curso de História da UFSM, Diorge Konrad, pesquisador sobre o período, aponta três possíveis destinos para os documentos: ou estão no Arquivo Nacional, em Brasília (recentemente abertos pelo governo Dilma); ou na residência de alguém (como o caso dos documentos do Departamento de Ordem Política e Social, DOPS, encontrados na casa dos familiares de Filinto Müller, coordenador deste órgão); ou na própria UFSM.
Se esta possibilidade existe, a Universidade nega. Com base na Lei de Acesso à Informação, o Comitê Santa-mariense pelo Direito à Memória e a Verdade solicitou estes documentos ao ex-reitor Felipe Müller. A resposta contundente da reitoria foi de que estes documentos não se encontram mais lá. Para dar sequência às buscas, o Comitê é uma peça chave nessa luta. Fundado em 2011 pelos diretórios acadêmicos de História, Arquivologia e Direito da UFSM, ele trabalha aliado às conjunturas nacionais em busca de dados sobre o regime na cidade. Os documentos da AESI são fundamentais para esclarecer a atuação militar dentro do Campus. Caso os documentos tenham sido eliminados, o Comitê afirma que isso ocorreu de maneira ilegal, já que para qualquer descarte, faz-se necessário um registro oficial do ato.
O pesquisador Diorge Konrad afirma que provavelmente a UFSM não seja, hoje, um empecilho para esta busca, já que boa parte do material que se tem para análise vem do próprio Departamento de Arquivo da Universidade, como atas e registros de contabilidade da época, que podem revelar informações interessantes sobre o período.
Em resposta ao pedido de informações sobre a contribuição da UFSM nas investigações, o reitor Paulo Burmann ressalta o apoio da instituição a este processo: “A Reitoria tem o maior interesse em ver apurados os crimes políticos cometidos dentro das universidades públicas, e irá colaborar para que isso aconteça, prestando toda a informação disponível em seus arquivos”.
Concomitantemente, o mandatário máximo da Universidade confirma oficialmente que houve repressão na instituição: “A Universidade foi atingida em cheio pela Ditadura. O chamado ‘AI-5 das universidades’, decreto-lei nº 477, previa a punição de professores, alunos e TAEs considerados culpados de subversão ao regime”. A declaração de Burmann entra em choque com a de Derblay Galvão, único reitor vivo a ter atuado durante o regime militar e que ocupou o prédio da reitoria de 1977 até 1981: “No período em que estive na Reitoria, não sofri nem um tipo de pressão ou interferência do governo em meu mandato”. Derblay Galvão afirma que as movimentações de estudantes estiveram circunscritas ao Campus e reafirma que a “Reitoria sempre os tratou no âmbito da administração, sem interferência de órgãos de repressão”.
Não só os documentos da antiga AESI se encontram perdidos. De acordo com Olga Herbertz, membro do Comitê Santa-mariense pelo Direito à Memória e a Verdade, os arquivos do DCE anteriores a 1985 estão de posse de um ex-membro das gestões daqueles anos. Estes arquivos seriam importantes para analisar o papel efetivo do regime dentro do Diretório. O detentor desses documentos alega que não os devolve pela falta de estrutura do atual DCE para armazená-los adequadamente. Apenas uma caixa com documentos desse período foi encontrada, provavelmente por esquecimento do ex-membro que levou os arquivos.
Esta caixa não contém documentos incriminadores, mas revela informações curiosas sobre o DCE da época. A presença de recortes de jornais publicados em diversas regiões do estado mostra o interesse do Diretório em monitorar como a política nacional era tratada na mídia gaúcha. Este trabalho era realizado pela chamada “Comissão de Imprensa” Além desses recortes, páginas avulsas de diferentes estatutos do DCE podem ser encontradas lá.
Quanto às acusações de falta de estrutura, um dos atuais coordenadores gerais do DCE, Felipe Costa, responde: “Há muito tempo a Universidade não vem dando a devida atenção para esta questão. Atualmente, temos um bolsista para trabalhar no Arquivo, mas isso de nada adianta se não tivermos condições estruturais, como um local de qualidade, com estrutura adequada. Estamos tentando trabalhar na solução destes problemas”. O Comitê diz que irá entrar com ação judicial para reaver os documentos.
A sala 521 se mantém no prédio da reitoria como um símbolo de uma UFSM que se choca entre a memória e a retratação. Não só os documentos da AESI, mas também de outras entidades se perderam no tempo, formando peças invisíveis de um quebra-cabeça que se esforça para ser sutil. Será que a UFSM de hoje dedicará esforços para acobertar o seu passado ainda sombrio, ou servirá ao seu propósito para com a memória santa-mariense?
Documentos perdidos: a busca pelos arquivos da repressão na UFSM*, pelo viés de Mateus Martins de Albuquerque (mateusmartinsdealbuquerque@gmail.com) e William Boessio (williamboessio@gmail.com)**
*Reportagem originalmente publicada da revista .TXT
**Estudantes de jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria