O cenário político que temos no Brasil é altamente complexo, onde as dificuldades de transformação estão presentes desde a estrutura política e econômica e emergem à superfície na forma de entraves dos mais diversos tipos à luta dos dominados.
Na base, temos um país de capitalismo periférico, com desenvolvimento das forças econômicas e produtivas atrasado e desigual. Um país que ainda não adentrou totalmente ao capitalismo, mantendo modelos e mentalidades ainda próximas do feudalismo. Temos uma mídia altamente concentrada, que é causa e consequência desse atraso. Temos um enorme nível de desigualdade de renda, e a renda nada mais é do que reflexo da estrutura econômica, da concentração da propriedade dos meios de produção e do rentismo.
Aproximando-nos da superfície, temos lideranças políticas que manejam o Estado de forma a constituir este, de fato, a sala de estar das elites. As relações próximas e muitas vezes promíscuas entre Estado e grande capital são presença constante. Nesse meio de campo, apresenta-se desde 2002 um cenário ainda mais complexo e desafiante à classe trabalhadora, com a emergência de um governo federal que trabalha tendo como ideário político a conciliação de classes – e não se trata aqui apenas do Partido dos Trabalhadores, mas da intrincada coalizão que está à frente das decisões governamentais.
Essa coalizão, que tem à frente o PT, em nenhum momento dos últimos 13 anos preocupou-se em desenvolver dinâmicas de politização da população, mantendo todo o foco das ações governamentais em mecanismos de incremento de consumo que começam a esgotar-se, como agora começam a notar (ou, se já haviam notado, passam a expressar) até mesmo alguns dos mais importantes líderes e intelectuais petistas.
Com um governo com essas e outras características que o situam como centro na disposição das forças políticas, a oposição de direita, representada nacionalmente pelo PSDB – que possui origens em alguma medida socialdemocratas – acaba “empurrada” ainda mais à direita, para conseguir reposicionar-se no espectro político. Nessa posição, flerta com posições quase feudais, enquanto sua base política – consumidora de (des)informações da mídia hegemônica, afastada da realidade do país e pouquíssimo politizada – chega a atitudes de caráter fascistóide. Some-se a isso a intensa polarização e o baixo nível de debate da disputa eleitoral mais recente, e temos um caldo perigoso de intolerância e avanço do conservadorismo – e, mais do que isso, da ideia de retorno a situações que já pareciam vencidas.
Faz parte desse quadro também o PMDB, grande definidor da balança político-partidária nacional. Oscilando do centro à direita, teve, na vitória de Eduardo Cunha na disputa pela presidência da Câmara dos Deputados, um avanço importante. Algo que em alguma medida já acontecia por baixo dos panos, agora se torna visível e público: o PMDB consolida-se no papel de protagonista das decisões nacionais. E, com o PMDB, a senhoria dessas decisões fica profundamente vinculada às velhas elites do país. Mais do que isso, com Eduardo Cunha na presidência reduz-se a margem para a disputa do aparato decisório.
Movimentos sociais se reorganizam
Na outra ponta da política, fora da institucionalidade ou interseccional a ela, os movimentos populares se reorganizam. Esse processo, iniciado na parte final do primeiro mandato presidencial de Lula, expande-se. Em Junho de 2013, ascenderam movimentos de estrutura horizontalizada, organizados como “frentes” e chegando a reunir milhões em mobilizações por todo o país. No bojo do Oriente Médio e da Espanha, as redes sociais online se fortaleceram como espaços de organização e expressão. Organizações políticas tradicionais que não percebem isso, caducaram e vão caducando. Partidos políticos e sindicatos, fundamentais às lutas populares, ficam enfraquecidos por seus próprios erros e vícios. O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto aparece como grande expressão organizada das lutas, unindo características de movimentos tradicionais com novidades expressas como potencialidades em Junho de 2013.
Ao mesmo tempo, movimentos historicamente vinculados ao Partido dos Trabalhadores se veem em situação difícil, variando entre apoio crítico e apoio cego. Buscam manter sua base e ainda conseguem mobilizar grandes massas, mas fica cada vez mais difícil conciliar apoio a um governo quase perdido com trabalho de base e avanço da politização. Os movimentos populares se redirecionam, enfim, negando a socialdemocracia e, por suas próprias mãos, podem avançar no caminho da construção de consciência de classe. Infelizmente, muitas vezes não é o que acontece.
A esquerda na prisão do imediato
A esquerda – organizações e sujeitos – não existe fora da sociedade. Está inserida em um mundo capitalista e atravessada por contradições que se expressam naturalmente em quem está em um espaço e quer transformá-lo. Nessa inserção forçada, que deve e pode ser crescentemente desconstruída, está presente um triste pragmatismo imediatista e individualista – não por acaso, o imediatismo e o individualismo são duas características inseparáveis do ideário contemporâneo mais efetivo na manutenção do estado das coisas.
Parte significativa da relativamente nova esquerda brasileira se sujeita ao discurso da mídia dominante como um posicionamento tático contrário ao governo de centro, apagando a compreensão das estruturas da sociedade e, ao mesmo tempo, legitimando o discurso elitista desses setores midiáticos. Pensam apenas em necessidades imediatas das próprias organizações, em ganhos particulares ou particularistas específicos, e se esquecem da tarefa fundamental da esquerda: facilitar a construção de consciência de classe e estar junto aos trabalhadores na busca por uma sociedade pós-capitalista.
A pressa individualista em ver os processos políticos resolvidos rapidamente leva a uma visão utilitarista da política e das pessoas. Há voluntarismo e ativismo de sobra, enquanto a militância rareia. Há idolatria de lideranças e pouca reflexão. Há muita busca por depositar ideias, pouca busca por diálogo efetivo. Há muita prática, vontade real de transformação, e pouca reflexão sobre essa prática.
Direita avança em silêncio ruidoso
Enquanto uma multidão pouco politizada e mal informada toma as ruas pedindo impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), “intervenção militar” e outras barbaridades, avança silenciosamente um imaginário popular de direita, conservador, reacionário e intolerante. Essa semente, plantada pelas elites, vai dando frutos inclusive na classe trabalhadora, abandonada em matéria de política e reflexão emancipatórias pelo governo, por parte dos movimentos que dão sustentação a ele, e pela esquerda imediatista. A ascensão conservadora, visível no Congresso e ruidosa nas ruas tomadas pela classe média alta, constrói o reacionarismo também nos oprimidos, que passam a ver no próprio opressor saídas enganosas.
É esse cenário que enfrentam hoje os setores de esquerda combativos e comprometidos em maior ou menor medida com a defesa de transformações sociais profundas. É também nesse cenário que já se colocam projeções eleitorais perigosas, onde pode haver novas capitulações e novos avanços da direita, sustentada por um sentimento antipetista que, de forma absolutamente equivocada, identifica o PT com o comunismo e o comunismo com a barbárie, vendo na reação a única salvação possível.
Tarefas e desafios
Atacar de frente esses problemas é o grande desafio que se impõe à esquerda brasileira. É preciso compreender a complexidade do momento político e, na necessária crítica ao governo federal, marcar posição pela esquerda, absolutamente distinta do que está proposto pelas velhas elites. Mas devemos nos pautar pela direita? Não, devemos nos pautar pela situação concreta. E a situação concreta é que a direita quer confundir e a esquerda tem como tarefa colocar a realidade objetiva às claras e enfrentar os problemas de peito aberto.
É preciso fortalecer o trabalho de base, enfrentar o problema da dívida pública, enfrentar o problema da concentração dos meios de produção, enfrentar o problema da concentração dos meios de comunicação. É preciso pensar para além das organizações, pensar e atuar a partir dos interesses do conjunto da classe trabalhadora, ameaçada com perdas arrasadoras de direitos. É preciso menos sectarismo e mais diálogo, menos ativismo e mais práxis, menos legitimação da mídia das elites e mais construção da mídia dos de baixo. É preciso que a esquerda se reinvente mais rapidamente para que possa acompanhar as necessidades que se impõem. Necessidades urgentes impostas pela problemática conjuntura que aponta para retrocessos perigosos, mas que podem ser vencidos se enfrentados como uma verdadeira esquerda interessada em ser agente transformador: solidária, fraterna, democrática e combativa.
Direita e esquerda: lutas e variações no Brasil dos anos 2000, pelo viés de Alexandre Haubrich*.
*Alexandre é editor do Jornalismo B.