Mês passado, o programa Na Moral, da Rede Globo, fez uma edição especial para discutir temas como nudez, sexo e homossexualidade na história das representações da emissora e na sociedade brasileira como um todo. As avaliações sobre a qualidade do programa exibido no dia 23 de abril de 2015 (ele é gravado e editado, não é ao vivo) variaram muito entre ativistas e público em geral.
Cumpre destacar quais foram as quatro pessoas convidadas para comentar os temas: Sílvio de Abreu, teledramaturgo, Jô Soares, apresentador de televisão, Maria Berenice Dias, advogada e especialista em direito homoafetivo, e Silas Malafaia… a descrição sobre Malafaia é a que interessa para a problematização deste texto. No geral, ele é pastor. Seria um convidado apropiado para esta discussão? Sim. Um pastor é apropiado, já que lideranças religiosas (a despeito do quão autoridades sejam entre seus círculos) tratam, sobretudo, de temas morais e cosmovisão teológica em suas vidas profissionais — e pessoais, embora nem sempre haja coerência entre ambas as esferas.
Entretanto, Silas Malafaia é um pastor com uma atuação pública bastante específica no que diz respeito ao tema da homossexualidade e dos direitos da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) em geral. Eu já escrevi sobre ele duas vezes (aqui e aqui), e minha posição sobre esta figura pública é bem clara. No primeiro link, num texto em Inglês, destaquei uma declaração do pastor Silas Malafaia em entrevista ao jornal The New York Times em novembro de 2011. De modo relativamente, consensual, o NYT é considerado o jornal mais importante do mundo hoje. Ele disse, literalmente, segundo o jornal:
Eu sou o inimigo público número 1 do movimento gay brasileiro.
Os dois textos que escrevi sobre este senhor trazem mais aspectos do ativismo antigays dele que corroboram esta ideia (embora hiperbólica por desejo egóico do próprio pastor), mas eu gostaria de manter a atenção ao que uma frase destas significa. É sensato, para dizer o mínimo, que uma figura pública que declara isso seja convidada para o programa de uma emissora de televisão para discutir sobre homossexualidade? Que tipo de ética jornalística ou responsabilidade com uma concessão pública de meio massivo (televisão) permite isso? Por que a mera possibilidade de excluir deste debate ativistas antigays não é discutida? Quão longe podem ir condutas irresponsáveis e contrárias aos direitos humanos quando se organizam debates televisionados sobre minorias sociais?
Falar sobre isso, para mim, não é novidade. Felizmente, outras pessoas também já escreveram sobre este tópico; e não apenas sobre gays, mas sobre outros grupos sociais. Resolvi, então, resgatar um texto que havia publicado há cinco anos em meu blog, e que trata exatamente disso. Por meio de uma coluna feita por um crítico de mídia dos Estados Unidos, Eric Deggans, eu contextualizo as questões éticas sobre a ideia de que sempre existem “dois lados” (ou “outros lados”) em debates sobre homossexuais, e, mais ainda, sobre que tipo de lados é esse que a esmagadora maioria da imprensa ouve e amplifica por seus canais.
* * *
Há alguns anos, escrevi no meu blog (hoje desativado) sobre uma edição do programa Profissão Repórter, da Rede Globo. Destaco abaixo um trecho daquela reflexão para começar esta outra.
A equipe do Profissão Repórter não conversou com o pastor da igreja que diz ter algo a falar sobre homossexualidade; não perguntou o que a CNBB acha de tudo isso; não contatou a assessoria do Vaticano; não questionou o Poder Judiciário para saber das questões formais e do preto no branco; nem mesmo conversou com aquela psicológica que apregoa a cura da homossexualidade… uma falta de pluralidade imensa nesse programa; tudo monofônico, só gente que aceita gays, que superou o preconceito, que não quer reverter essa sexualidade desviante… Felizmente foi assim.
Neste trecho acima falava especificamente de uma questão muito importante dentro do jornalismo: o enfoque, ou recorte que fazemos ao elaborar uma pauta. Esta discussão — eminentemente ética e crucial para a deontologia jornalística — é bem mais ampla do que parece, pois coloca ao jornalista (e ao editor, fotógrafo, editorialista…) diversas ponderações a serem feitas acerca da tematização que se dará a uma pauta, da escolha das fontes (portanto, idem das “não fontes”); depois do que efetivamente o jornalista escreverá, “contaminando” (aspas porque a palavra é feia, não?) profunda, total e irreversivelmente o texto com as escolhas que ele têm em mente — e no inconsciente; há ainda a diagramação, a fotografia e, a cereja, as declarações das fontes que serão utilizadas (portanto, idem as que não serão usadas). Enfim, é um campo de escolhas totalmente afinadas com a ética e com a política editorial do veículo.
Por isso quero recolocar este debate aqui focando na população LGBT e no fato de que as questões que concernem “aos gays” hoje são uma pauta recorrente na mídia — interessa-me no jornalismo especificamente. Lembro-me que em algumas aulas da graduação, quando discutíamos certas pautas, ficava pensando do por quê haver certa sacralidade na ideia de que “devemos ouvir sempre todos os lados”. É um cânone associado à pluralidade de vozes e opiniões no jornalismo que esconde, por sua aparente simplicidade conceitual, algo mais complexo: como definir o que é um dos lados? Quem definiu tal configuração de “lados de uma questão”? Não podemos — não devemos? — questionar este mantra diante de algo que nos incomoda?
Todas essas perguntas eu me fazia quando pensava no (suposto) dia em que meu editor solicitasse fazer uma matéria sobre direitos dos gays, aceitação da população LGBT no Brasil, indicadores de violência, homofobia nas escolas, etc. Eu jamais daria espaço, na minha matéria, ao padre, ao pastor, ao assessor de imprensa do Vaticano ou a um pesquisador da Bob Jones University que têm algo a falar sobre “gays são pecadores”. “Eles” não são um lado desta questão para mim. Mas culturalmente são, não?
Decidi fazer esta reflexão hoje porque, nesta semana, encontrei um belíssimo artigo do crítico de mídia Eric Deggans, que escreve no St. Petersburg Times. Ele faz a analogia que sempre me pareceu lógica entre o racismo e a homofobia ao tratar da cobertura midiática (usando a CNN como exemplo pontual). Tomei, então, a liberdade de fazer uma livre tradução de sua coluna publicada em 17 de janeiro. Este dia [1], para quem não sabe, é um feriado nacional nos Estados Unidos: foi instituído em 1986 em memória de Martin Luther King Jr.
A coluna de Deggans simplesmente coloca a questão como eu sempre a vi. Por que os meios de comunicação dão voz a “qualquer lado” só por que historicamente tal lado tem se oposto a determinado ponto de vista? Por que não se faz uma reflexão mais profunda acerca da relevância de certas opiniões para certos temas? É por este caminho que o colunista vai. Quem lê em inglês, pode ir ao original.
* * *
Minhas considerações no feriado de Martin Luther King Jr.: quando a mídia vai parar de dar espaço aos ativistas antigays?
17 de janeiro de 2011
O feriado que celebra o nascimento de Martin Luther King Jr. é sempre uma oportunidade para pensar sobre a igualdade na sociedade Americana.
Então, esta manhã, eu me peguei pensando acerca da CNN e da Aliança Gay e Lésbica Contra a Difamação (GLAAD).
GLAAD, o grupo ativista que luta por tratamento igualitário à comunidade gay por parte da mídia, lançou uma petição no começo deste mês exigindo que a CNN parasse de dar espaço durante debates e relatos sobre a comunidade gay a especialistas cuja única qualificação é ser contra a homossexualidade.
O grupo menciona Peter Sprigg, do Family Research Council, como um exemplo do que eles chamam de “indústria antigay”, uma rede de especialistas cuja maior meta é promover a ideia de que os homossexuais não merecem os mesmos direitos que os demais norte-americanos. Ao colocá-los lado a lado com aqueles que possuem efetivo conhecimento para debater questões como a política militar “não pergunte, não fale”, GLAAD afirma que a CNN está exaltando o discurso ofensivo destes opositores.
Esta concepção traz à tona uma importante questão quando consideramos a cobertura da imprensa sobre tais temas: quando é que uma empresa jornalística exclui aqueles que promovem discursos odiosos?
Dito de outro modo, quando um veículo da imprensa deve concluir que determinado tipo de oposição é preconceito que eles não deveriam mais apoiar?
Retornando à época do Dr. King, quando os debates sobre direitos civis eram cobertos pela mídia, ela também “religiosamente” incluía aqueles que eram favoráveis à segregação ou à proibição de voto por parte dos negros ou ao impedimento de casamentos inter-raciais. Contudo, finalmente, os meios de comunicação compreenderam que tais visões eram preconceituosas e pararam de expô-las como opiniões válidas — concluindo que tratar racistas como participantes em pé de igualdade naqueles debates apenas lhes garantia uma autoridade que não deveriam ter.
Portanto: quando é que a mídia tomará decisão semelhante em relação aos ativistas antigays?
Trata-se de uma questão simples. Ou há um debate aberto sobre se ser gay é prejudicial ou ofensivo — e nenhum psicólogo ou profissional de saúde mental que seja respeitado afirma que haja — ou não há. E se ser homossexual não é prejudicial, então por que há diversas organizações jornalísticas renomadas dando espaço àqueles cuja única especialidade é uma contínua resistência à corrente aceitação dos homossexuais?
CNN não convida um membro da organização Ku Klux Klan para um comentário “abalizado” quando trata da situação da população negra nos Estados Unidos. Então por que continua dando voz a grupos que se opõem aos direitos gays para debater temas ligados aos direitos civis desta população? (Aqui há uma coluna que escrevi há sete anos sobre o porquê dos direitos gays serem a moderna luta por direitos civis)
Não me entendam mal; se há alguém com real conhecimento acerca de outro ponto de vista duma questão — leia-se, um comandante militar que se opõe ao fim da política “não pergunte, não fale” –, entrevistá-lo é pertinente. Mas concordo com GLAAD quando afirma que dar espaço a ativistas antigays simplesmente reforça a ideia de que o debate acerca da “adequação” da orientação sexual homossexual ainda é um tema em aberto.
E considerando-se o fato de que a homossexualidade é legal, não é classificada como uma desordem mental ou uma disfunção sexual e que gays podem casar e adotar crianças em vários estados, eu diria que esta questão já está muito bem respondida.
Naturalmente, sei por que a mídia não fará esta escolha. Apesar da coerência do raciocínio, muitas pessoas ainda se opõem aos direitos dos gays; o que significa que tal decisão poderia gerar uma séria repercussão e poderia soar como se a mídia estivesse tomando partido numa questão ainda em aberto.
Ainda assim, talvez a CNN pudesse considerar honrar Dr. King, neste dia, mudando sua política. Isto porque, quando me recordo sobre a história das lutas por direitos civis nos EUA, lembro-me de todos os jornais que tiveram que pedir desculpas pela forma como lidaram com o preconceito e o racismo enquanto cobriam a luta de Dr. King quarenta anos atrás.
CNN poderia evitar ter que pedir desculpas similares se agisse agora. Quem sabe, apenas uma vez, nós pudéssemos aprender com nosso terrível passado ao invés de repeti-lo.
Gays na mídia ou debates sobre homossexualidade: qual o “outro” lado?, pelo viés do colunista Luiz Henrique Coletto
Notas
[1] O feriado é sempre na 3ª segunda-feira de janeiro, para mais ou menos coincidir com a data de nascimento de Luther King Jr., em 15 de janeiro de 1929.
Foto da capa: Saskia Houttuin