“O Estado brasileiro não está preparado para lidar com essa diversidade”

foto: Tiago Miotto

Entre os dias 13 e 16 de abril de 2015 aconteceu, em Brasília, o 11º Acampamento Terra Livre, em meio à Mobilização Nacional Indígena convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A revista o Viés foi convidada pelo Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (GAPIN) para acompanhar a mobilização na capital federal e traz agora uma série de reportagens sobre o evento, alguns dos temas discutidos pelos povos e dos acontecimentos da mobilização.

Na madrugada do dia 14 de abril, uma terça-feira, cerca de 1500 indígenas, representando mais de 100 povos originários de todas as regiões do Brasil, desembarcaram na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Enquanto os primeiros raios de sol mal se deixavam ver por trás das torres do Congresso Federal, os indígenas espalhavam suas barracas e erguiam com destreza as tendas de lona e bambu que ocupariam a grama nua pelos três dias seguintes, durante os quais aconteceria o 11º Acampamento Terra Livre.
Em meio à Mobilização Nacional Indígena, convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), os representantes originários deslocaram-se até a capital federal para mostrar aos poderes e aos poderosos do país que ainda existem, resistem e lutam por seus direitos – especialmente neste momento que é, talvez, o mais adverso que já enfrentaram desde o fim da ditadura militar.
Nos dias seguintes, dezenas de tendas, centenas de barracas e uma multiplicidade infindável de cores, pinturas, fisionomias, cocares, adornos e artesanatos ocuparam o espaço vazio que fica entre as sedes do poder do Estado – ambiente planejado pelo arquiteto Oscar Niemeyer para valorizar a arquitetura dos órgãos e instituições dos poderes legislativo, judiciário e executivo do país.
  
Nesta parte do Eixo Monumental – como se chama a via que corta a cidade planejada pelo urbanista Lucio Costa no sentido leste-oeste e aglomera os espaços institucionais e administrativos – o silêncio da noite e o movimento usual do dia-a-dia deram lugar a uma nova paisagem sonora, dominada pelo som constante dos maracás (espécie de “chocalho” indígena) e por uma diversidade enorme de cantos, rezas, rituais e idiomas que remontam a um tempo muito mais antigo do que os 515 anos que o Brasil colonizado oficialmente conta como seus.
Atualmente, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem no território brasileiro 305 povos indígenas, falantes de 274 idiomas. O processo de colonização foi violento para os mais de mil povos que, estima-se, viviam neste território antes da chegada dos europeus e somavam entre dois e quatro milhões de pessoas. O Censo 2010 do IBGE contabilizou 896.917 indígenas no Brasil, mas, para entidades indigenistas como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI, um dos organizadores do acampamento), este número é subestimado.
Para os povos indígenas, a colonização nunca terminou. Na Esplanada dos Ministérios, ergueram suas lonas representantes dos Pataxó Hã Hã Hãe, Guarani-Kaiowá, Guarani Mbyá, Kaingang, Munduruku, Terena, Arara, Tupinambá, Tabajara, Pancararu e de dezenas de outras etnias de todo o país – os “parentes”, como referem-se uns aos outros, unidos sob a identidade de indígenas mas diversos entre si, tanto quanto são variadas as línguas e culturas de seus povos.

Antes de ir para a Esplanada dos Ministérios, povos indígenas que chegavam a Brasília, como os Guarani-Kaiowá, preparavam-se espiritualmente para a semana de atividade com cantos e rezas. foto: Tiago Miotto

Algumas das etnias presentes no Acampamento Terra Livre lutam para resgatar seu idioma original, pois gerações atrás foram obrigados a abandonar suas línguas, em um processo de assimilação forçada ao modelo de civilização e ao modo de produção capitalistas. É o caso de algumas etnias do nordeste brasileiro, como os Pataxó Hã Hã Hãe, que apesar de terem sido impedidos de preservar seu idioma, demonstram que sua cultura está forte e viva, por exemplo, nos “torés”, como são chamados os rituais e cantos tradicionais deles e de outros povos dessa região.
Para quem ouve, alguns dos cantos do toré lembram a cultura e a religiosidade de matriz afro-brasileira, o que faz pensar na proximidade histórica dos indígenas com este outro grupo étnico que também sofreu ao longo da história brasileira, o da negritude. Não por acaso, uma das tendas que se ergueu em meio ao acampamento foi a dos quilombolas, vindos de diversas regiões do Brasil e solidários aos indígenas, tanto pela condição semelhante que enfrentam enquanto povos tradicionais quanto pelos ataques que sofrem, em comum, dos setores conservadores da sociedade.
Danças, rituais e um espaço de trocas culturais fizeram parte do encontro que antecedeu a ida para a Esplanada dos Ministérios. foto: Tiago Miotto

Mesmo entre semelhantes, as situações eram diversas: enquanto as representações de algumas etnias chegaram a Brasília ocupando ônibus inteiros, um jovem de 25 anos era o único representante da etnia Kinikinau presente no acampamento. Vindo do Mato Grosso do Sul, contava a quem quisesse ouvir sobre a história de seu povo, que foi obrigado pelo governo a renunciar a sua identidade e a viver em uma reserva do povo Terena. Internamente, os Kinikinau nunca esqueceram sua verdadeira origem e identidade, e agora lutam para recuperar sua autonomia e o direito de ser o que sentem que realmente são: o povo Kinikinau.
A cultura destes povos – no plural – resiste e se mantém viva não apenas por meio de suas línguas, das pinturas que fazem com urucum, dos traços e da cor mais ou menos típicos que caracterizam suas peles, mas também por algo que os antropólogos costumam chamar de “cosmovisão”. Na definição do programa Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socio-Ambiental (ISA, também apoiador do acampamento), as cosmologias são as “teorias do mundo”, que “definem o lugar que os humanos ocupam no cenário total”, a forma como cada ser se vê e se enxerga em relação a tudo que o circunda.
Durante a Mobilização Nacional Indígena, era possível ver uma variedade enorme de cantos, idiomas e pinturas – uma amostra de toda a diversidade dos povos indígenas no Brasil. foto: Tiago Miotto

Por aí, pode-se entender as particularidades culturais e, especialmente, a relação própria dos indígenas com a natureza e com a terra, da qual sentem-se parte. Esta é a principal razão pela qual praticamente todos estes povos enfrentam, ainda hoje, algum tipo de violação: alguns sofrem com a violência direta de fazendeiros e pistoleiros, outros com as violações de suas terras por empresas mineradoras ou por empreendimentos do próprio governo, e a maioria tem enorme dificuldade para acessar seus territórios originários, um direito reconhecido na Constituição de 1988 – a primeira a reconhecer, também, a autonomia destes povos, até então considerados “incapazes” pelo Estado.
  

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Nas laterais do espaço de grama onde foi erguido o acampamento, 17 grandes prédios retangulares e todos iguais sediam os ministérios do governo federal. Alguns prédios sediam mais de um ministério, outros ministérios tem um edifício inteiro para si. Um deles, ao sul, pertence a um único ministério e dá a dimensão dos problemas que os povos indígenas enfrentam no cenário político atual: é o prédio do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Nacional, que é comandado pela ruralista e anti-indígena declarada, Kátia Abreu (PMDB).
Em entrevista concedida no início deste ano, a ministra – que já recebeu o título de “rainha da motosserra” e é também presidente da Confederação Nacional do Agronegócio (CNA) – declarou que os conflitos envolvendo indígenas ocorrem porque “os índios saíram da floresta e passaram a descer nas áreas de produção”.
Seu Turíbio foi um dos indígenas da etnia Guarani Mbyá que saíram do Rio Grande do Sul para ir acampar na Esplanada dos Ministérios. Com mais de 70 anos, é um dos anciões e anciãs que estiveram presentes no Acampamento Terra Livre: todo o tempo que viveu ainda não foi suficiente para ver seus direitos sendo concretizados e respeitados. foto: Tiago Miotto

O panorama preocupante só começa aí: na frente do gramado por onde o acampamento se estendeu, encontra-se a dupla de torres e cúpulas do Congresso Nacional, onde tramitam dezenas de projetos que pretendem retirar direitos dos povos indígenas e fazer regredir as conquistas obtidas na Constituição Federal de 1988, com a finalidade de atender aos interesses de ruralistas, empresários, latifundiários, empreiteiras e indústrias farmacêutica, cosmética e mineradora, que influenciam a votação das leis atuando como lobistas e financiando campanhas eleitorais.
Segundo levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), a bancada ruralista, principal frente de ataque contra os indígenas, totaliza hoje 126 parlamentares, entre 109 deputados federais e 17 senadores – mais de um quinto do total de representantes no legislativo do Brasil. Entre os projetos e emendas contra os indígenas, a que mais preocupa hoje é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, que deve ser votada este ano e é chamada por esses povos de “PEC da morte”.
A PEC 215, em síntese, pretende passar do Poder Executivo para o Poder Legislativo a competência de aprovar as demarcações de terras indígenas e as titulações de territórios quilombolas e ratificar as demarcações e titulações já homologadas. Na prática, isso colocaria nas mãos dos maiores inimigos dos povos indígenas e quilombolas a prerrogativa de decidir quais terras lhes pertencem, abrindo espaço para que os interesses privados do agronegócio passem por cima dos processos técnicos de demarcação – que já são regulamentados pelo Decreto 1775/96 e garantem, inclusive, um período de contestação legal ao processo de identificação e delimitação das terras indígenas.
Indígenas das etnias Kaingang (foto) e Guarani Mbyá enfrentaram cerca de 30 horas de viagem em um ônibus, do Rio Grande do Sul até Brasília, para representar seus povos e comunidades e defender seus direitos no Acampamento Terra Livre. foto: Tiago Miotto

Atrás do Congresso encontra-se a Praça dos Três Poderes, espaço aberto do qual é possível vislumbrar as três principais sedes dos poderes da república. No limite sul da Praça, encontra-se a sede do Supremo Tribunal Federal (STF), órgão do Poder Judiciário responsável por zelar pela Constituição Federal e julgar questões ligadas a ela. Algumas interpretações recentes da segunda turma do STF, contudo, têm preocupado os povos originários, pois colocam em risco suas garantias constitucionais e podem abrir precedente para que o direito que estes povos têm às suas terras tradicionais seja questionado por fazendeiros e pelo próprio governo.
No outro extremo da Praça, ao norte, encontra-se o Palácio do Planalto, sede do poder executivo. Lá, no que toca aos direitos dos povos indígenas, a situação é a pior das últimas décadas. Depois que passam por um longo processo de estudo e contestação, sob responsabilidade da Funai, as demarcações de terras dependem, em última instância, de uma assinatura da presidência da República, para que as terras sejam homologadas. O governo de Dilma Rousseff, desde a redemocratização, foi o que menos declarou e homologou terras indígenas, e atualmente mantém a Funai sucateada, com poucos recursos e sem ter sequer um presidente oficial.
Durante o Acampamento, aconteceram manifestações voltadas aos três poderes da República, exigindo respeito aos direitos indígenas. foto: Tiago Miotto

O cenário, apesar de pouco animador, não intimidou as centenas de indígenas que ocuparam Brasília. Ao microfone, em um dos muitos espaços de debate que o Acampamento Terra Livre proporcionou para a discussão entre os “parentes”, Soninha Guajajara, representante da APIB, sentenciou: “Queremos aqui sensibilizar toda a sociedade nacional e internacional para que se junte à nossa causa, para que apoie a causa dos povos indígenas. O Estado brasileiro não está preparado para lidar com essa diversidade, para lidar com essa riqueza étnica cultural que existe nesse país, e nós, pela 11ª vez, estamos aqui para pintar Brasília de urucum”.
“O Estado brasileiro não está preparado para lidar com essa diversidade”, pelo viés de Tiago Miotto
 
Clique aqui para ler a segunda reportagem da série especial sobre o 11º Acampamento Terra Livre:
“Se é por falta de caneta, nós damos uma para que assine a demarcação das nossas terras”

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