Ángel Rodriguez Gallardo, professor da Universidad de Vigo, na região da Galícia, Espanha, é um sujeito de sorriso fácil, que já na primeira troca de palavras desperta simpatia em seus interlocutores. Convidado pelo Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria para compôr o grupo de conferencistas ibéricos presentes na programação do Congresso Internacional Brasil/Portugal: Ditaduras, transições e democracias, Ángel só perdeu o ar sereno e gentil ao abordar o tema que o trouxe até o extremo sul do Brasil: a pesquisa sobre a memória das vítimas do franquismo, a longa ditadura que submeteu a Espanha por quase quatro décadas do século XX. Nestes momentos, invariavelmente, sua expressão tornava-se sombria, pesada. “A Espanha é hoje um dos países com maior número de fossas coletivas do mundo”, diz Ángel, aludindo às desovas dos assassinados pelo regime franquista. Em todo o país, há hoje um processo de resgate dos corpos, da identidade e da memória destas vítimas – e também de responsabilização da ditadura franquista.
Conversamos com Ángel Rodriguez Gallardo numa manhã típica do outono gaúcho, sob o sol ameno de abril, no campus da UFSM. Na conversa breve, o pesquisador – que também integra o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra – falou de suas impressões sobre as manifestações do 15-M na Espanha, do seu desdobramento institucional mais evidente (o Podemos, fenômeno eleitoral que vem influenciando experiências similares mundo afora) e sobre o recrudescimento da extrema direita na América Latina e na Europa. A pronúncia galega – quase uma versão europeia do portuñol, vale registrar – facilitou bastante o fluxo da conversa e a compreensão mútua.
Revista o Viés: A experiência do 15-M na Espanha foi inspiradora em muitos cenários mundiais, inclusive na América Latina. Como você definiria a importância do 15-M para a atual situação política da Espanha?
Ángel R. Gallardo: O 15-M foi um fenômeno muito geracional, e ao mesmo tempo muito global, no sentido de que muitos dos seus traços se reconhecem no Syriza, ou melhor, na Praça de Sintagma, e mesmo nos movimentos árabes que se produzem há alguns anos. O que acontece na Espanha é que há uma geração que não tem espaço social, nem espaço de trabalho. Portanto, é provavelmente a geração mais preparada da História, e não pode ocupar espaço sociais, então ocupam as praças. Porque estamos a falar de um sistema democrático espanhol com uma corrupção enorme, que produz na população um sentimento de desafeto. E portanto esta geração nova, em que muitos tem formação acadêmica, mestrado, doutorado, que são capazes de entender o mundo, encontra-se numa situação em que não tem espaço no seu país. Estão desempregados, e tampouco podem ocupar espaços políticos. Porque a vida dos políticos na Espanha prolongou-se por muito tempo, e portanto não deixam entrar as próximas gerações. Por isso também se vai às praças.
Depois é fundamental pensar que na Espanha se produziram nos últimos dez anos fatos muito importantes: o atentado que se pratica nos comboios de Atocha (Ángel refere-se aos atentados contra a rede ferroviária de Madri, em março de 2004) tem um impacto enorme em toda a população. Inclusive no sentido de juntar gente que nunca se juntou antes. Digamos que há um primeiro impacto em que as pessoas voltam a se juntar, a conversar, porque o governo que estava naquele momento no poder mentiu à população que os atentados seriam responsabilidade do ETA (Euskadi Ta Askatasuna, ou Pátria Basca e Liberdade no idioma basco, organização separatista que atuou até 2011 na região do País Basco). Então as pessoas saem às ruas para manifestar-se contra este governo que estava mentindo, e há desde esse ano, 2004, um fenômeno em que as pessoas voltam a ocupar o espaço público. De alguma maneira, isso culmina no 15-M.
Portanto o 15-M é um movimento de explosão, basicamente de gente muito preparada e relacionada com os movimentos sociais. Ocupam as praças e se recuperam algumas características de movimentos populares das décadas anteriores, como as assembleias, o reconhecimento do outro. Portanto desaparece a discussão como violência verbal e surge um novo tipo de conceito de relação, uma capacidade de decidir horizontalmente. Desaparecem as hierarquias. E o que acontece é que o poder na Espanha sente muito perigo com as ocupações nas praças, embora inicialmente lhe pareça como algo de gente jovem…
: Como se fosse uma simples aventura.
ARG: …sim, e portanto se permite que aconteçam. Além dos mais, as praças são ocupadas com materiais descartados, se constrói com papelão, uma espécie de reutilização do que sobra. Então o poder olha para aquilo muito estranhado. Na verdade, mesmo a sociedade olha aquilo muito estranhada no começo. E o que se produz a seguir é uma chegada enorme de gente, especialmente em Madrid e Barcelona. E o poder sente medo disso. Porque na Espanha tivemos uma ocupação muito importante há anos, com trabalhadores de empresas telefônicas. Ficaram meses e meses ocupando uma artéria principal da cidade de Madrid.
Então o poder tem muito medo hoje de quem ocupa a rua, de quem fica muito tempo na rua. Então buscaram uma maneira de reconduzir este movimento, e na minha opinião há muita pressão para que este movimento se converta em algo aceitável, manobrável, reconduzível pelo poder, que seria um partido político. Finalmente conseguiram. Há uma tese, não sei se correta ou não, que diz que o Podemos é um movimento alentado por estruturas midiáticas relacionadas com o Partido Socialista Obrero Espanhol, que quer acabar com o que resta na Espanha do Partido Comunista. Portanto, o Podemos ocuparia um espaço próximo na esquerda do PSOE, e talvez poderia buscar coligações políticas sem a aparição dos comunistas, que sempre funcionaram como o “demônio” do sistema democrático espanhol. O poder não quer saber de comunistas. Então houve muita pressão para converter o 15-M finalmente em um partido político. Na verdade, o 15-M sai em diversos partidos políticos, e o que tem mais sucesso é o Podemos. Mas sai em diferentes estruturas.
O Podemos enfrenta o discurso clássico dos partidos que estão afastados da realidade social, e incorporam-se a ele pessoas muito envolvidas com a realidade social, que fazem com que o discurso dos partidos clássicos soe muito velho, muito irreal, artificial. E há este discurso novo que cada vez mais ocupa espaços midiáticos e sociais.
: Segundo você percebe, o 15-M seria uma expressão da crise da representação democrática? Se puder falar mais sobre esta tese do Podemos como a submissão do 15-M às regras do jogo, seria interessante.
ARG: O que acontece é que quando aparece o Podemos, o que ele primeiro nos oferece é um manejo diferente do discurso público. Uma inovação de linguagem, com um funcionamento muito peculiar, porque funciona não como um discurso tenso, mas com espécie de slogans. A estratégia é introduzir pequenas sequencias de palavras na cidadania. Por exemplo, a palavra casta, recuperada do léxico italiano para enfrentar a desigualdade da enorme população frente aos privilegiados, que seriam a casta. Há uma utilização muito inteligente da linguagem que surpreende socialmente. Há um componente bastante forte de trotskystas no Podemos, portanto da esquerda anti-capitalista, que é minoritária mas vem se reestruturando nos últimos anos. E há uma presença muito significativa de ex-comunistas, o núcelo duro é formado por universitários que procedem de estruturas comunistas ou de movimentos sociais, mas vão se integrando outras sensibilidades.
Portanto depois dos primeiros meses em que recebemos este novo discurso e uma certa inteligência na estratégia comunicativa, encontramos o primeiro documento sério do Podemos, que é um documento econômico de que ficaram encarregados dois economistas de tradição social-democrata. Um deles foi conselheiro de Salvador Allende no Chile e de Clinton nos Estados Unidos, muito educado na tradição da economia sueca. O outro é um antigo militante do Partido Socialista Obrero Espanhol. Então o que há neste momento é um discurso muito fragmentado. Economicamente parece que está mais ou menos claro o que parece querer o Podemos, que é basicamente uma estratégia econômica social-democrata, o que seria voltar à situação do PSOE em 1982, quando tomou o poder, e àquelas políticas socialistas europeias dos anos 80. Mas polticamente o projeto ainda está sem articular, porque há muitas tendências internas, e o que parecia um movimento inicialmente horizontal começa a se verticalizar.
Porque fundamentalmente a operação que o poder fez foi obrigar o Podemos a se apresentar como um partido político, e portanto, a ser um objeto de ataque dos meios de comunicação, de tal maneira que a campanha contra eles nos últimos meses foi muito dura. Porque estão encontrando pequenos casos de corrupção entre os líderes, e a mídia está tornando isso grandes casos, escândalos. É uma situação estranha, porque em dois ou três meses, o Podemos, que era um partido novo, converteu-se num partido quase velho. Parece um partido como os outros. E de fato, na Andaluzia, no território sul da Espanha, onde eles aguardavam atingir uma quantidade de votos bastante alta, não conseguiram o que imaginavam a princípio. Porque a campanha do poder foi muito dura.
: O advento do Podemos causa uma excitação política, com ecos inclusive no Brasil. Para você, a experiência do Podemos como partido representa a possibilidade de renovação do que significa hoje um partido político?
ARG: Acho que há uma operação claramente midiática e política, e que a ideia foi criar um partido instrumental, onde se pudesse juntar diferentes tendências políticas. O núcleo duro do Podemos é formado por diferentes tendências que tem claro que é preciso criar este partido instrumental, para tentar tomar o poder e modificar algumas da questões básicas que estão no sistema eleitoral espanhol. Outra coisa é que há integrantes com visões diferentes dentro do Podemos, que às vezes se sentem muito incomodados com estas táticas, com esta instrumentalidade do partido. Agora, nós teremos no próximo mês eleições nas câmaras municipais, e as forças de esquerda estão criando esta estrutura, ou super-estrutura no caso do Podemos, de um partido instrumental. Portanto, taticamente precisamos somar forças à esquerda para tentar tomar o poder. Eu acho que é basicamente isso. Acontece é que se cai em alguns erros clássicos, digamos, como a aparição de pequena figuras que são as que conseguem votos, porque afinal ainda se vota em pessoas. Então há algumas limitações que provocam certos problemas. Mas eu acho que é essa a ideia, de um partido instrumental com um léxico novo. Há círculos, há uma estrutura mais ou menos horizontal, pelo menos mais horizontal que em outros espaços. E modificaram bastante o discurso dos outros partidos. Conseguiram abrir a sociedade para certos espaços que estavam fora da primeira linha política. Neste sentido, abrem um espaço de deliberação democrática, de discussão e ação pública. De fato criam uma estrutura diferente que chamaríamos de plataforma das marchas por dignidade, uma plataforma na qual o Podemos não está como elemento central, mas sim nos sindicatos pequenos, nas organizações civis alternativas. Portanto temos um efeito na esquerda mais extrema, que também vê a hipótese de se instrumentalizar, de criar plataformas que saiam de determinado contexto para ajudar a abrir o espaço democrático.
: Vivemos no Brasil hoje uma situação que poderíamos resumir, grosso modo, numa polarização entre o PT, partido eleito para o quarto mandato federal consecutivo, e por outro lado uma direita assumidamente neoliberal, que tem no PSDB, ainda, sua sigla mais forte nas disputas eleitorais. Desde há alguns anos, se busca uma espécie de terceira via nesta disputa, e em alguns casos recentes se reivindica mesmo uma conexão com fenômenos como o Podemos. Tu acha que há contexto para se replicar, salvo as particularidades continentais, a experiência do Podemos?
ARG: Eu acho que isso abre expectativas para se entender o efeito das organizações políticas, abre espaço para pessoas que até agora não queriam saber dos partidos clássicos. E isso é um elemento fundamental, vem a redescobrir algo que já sabíamos, que o ser humano é um ser basicamente político. E de repente encontramos as pessoas que estavam nos movimentos sociais, ocupando os espaços políticos, porque já tinham um discurso político e agora são capazes de divulgá-lo. Neste momento o que está muito claro para mim, é que o Podemos enfrenta o discurso clássico dos partidos que estão afastados da realidade social, e incorporam-se a ele pessoas muito envolvidas com a realidade social, que fazem com que o discurso dos partidos clássicos soe muito velho, muito irreal, artificial. E há este discurso novo que cada vez mais ocupa espaços midiáticos e sociais.
Nas sociedades que tem sistemas mais ou menos democráticos há muita gente capaz de dizer e fazer outras coisas muito diferentes do que se estava fazendo. O que me parece mais revelador do Podemos, sem ser um defensor estrito do que estão a fazer, é essa capacidade de ter incorporado muita gente ao discurso e à participação política. Portanto há gente que está no Podemos que vem da academia, do trabalho nos hospitais, que de repente quer participar. Há um certo entusiasmo político e participativo que de repente está colocando as pessoas normais nos espaço políticos, nos espaços de deliberação. O que faltava na Espanha, de alguma maneira, era isso. Levar a gente às praças, onde se mantiveram por quase dois anos e meio, e continuar discutindo nas praças sobre os problemas comuns, era algo que não se tinha feito desde a transição democrática. Digamos que se recupera a consciência cívica, de participar das coisas pequenas, como o funcionamento da água, mas também das coisas grandes, como solucionar o problema da moradia. Este cenário, que vem em parte do 15-M e do Podemos, tem uma enorme atração para as pessoas que se encontram num espaço onde podem pensar e participar.
Só depois de muito tempo estamos sabendo do que ocorreu nas ditaduras latino-americanas, e ainda custa muito para avançarmos no direito internacional em relação ao que ocorre na África, na América, na Ásia. Porque basicamente recuperar os corpos destas vítimas é especificar quem são: militantes socialistas, comunistas, e isso é tudo o que o poder não quer. Se finalmente podemos julgar um ditador, se podemos julgar os carrascos, e cobrar responsabilidade aos que assassinam, é porque a pesquisa da memória nos permite isso. A memória permite fortalecer a sociedade democraticamente. E o poder tem muito medo de encarar o passado.
: Finalizando, a tua linha de pesquisa é centrada na memória do período da ditadura franquista em Espanha. No Brasil, a gente vive um processo recente desta busca pela memória e pela verdade sobre os crimes cometidos durante a ditadura militar. Ao mesmo tempo, temos assistido ao reaparecimento de certos focos de direita que não sentem pudor em clamar por intervenção militar no sistema político. Você atribuiria estas atitudes a uma falta de maturidade democrática? Que valor tem estes trabalhos de resgate da memória, como o que você desempenha na Espanha?
ARG: Creio que ajudam a desenvolver a consciência cívica. Não ter uma memória cívica sobre os crimes cometidos contra a humanidade nestes períodos, sobre os assassinatos e torturas, as violações dos direitos humanos, é não ter noção do que se pode ou não fazer, dos limites dos governos. Os governos não tem o direito a ultrapassar certos limites, creio que esta é a grande realização das pesquisas que estão sendo feitas a respeito dos passados traumáticos. Portanto, o que está a acontecer mesmo na Turquia, numa situação muito complicada, tanto durante a ditadura quanto no regime democrático muito limitado, é um fenômeno geral. A recuperação da memória do que foram os crimes contra a humanidade produzidos sob os regimes ditatoriais, que não respeitavam os direitos humanos. Uma das grandes realizações destas pesquisas históricas é o surgimento do conceito de direitos humanos, desde o pós-guerra, desde os julgamentos de Nuremberg. Ainda assim tardam muito tempo para entrar em vigor, só depois de muito tempo estamos sabendo do que ocorreu nas ditaduras latino-americanas, e ainda custa muito para avançarmos no direito internacional em relação ao que ocorre na África, na América, na Ásia. Porque basicamente recuperar os corpos destas vítimas é especificar quem são: militantes socialistas, comunistas, e isso é tudo o que o poder não quer. Eu creio que a pesquisa em memória, sobretudo se a fazemos em perspectiva comparada, nos permite compreender que muitas vezes estas mecânicas repressivas são muito semelhantes. Hoje pela manhã falávamos sobre as semelhanças entre o que ocorreu no Brasil e na Espanha. As mecânicas repressivas, as violações dos direitos humanos, funcionam da mesma maneira. E a maneira de ocultar isso, o esquecimento que se produz sobre isso, é também basicamente o mesmo. A sociedade tem a obrigação de recuperar os seus mortos ao patrimônio coletivo, e também de investigar quem eram estas pessoas que tentaram defender um mundo mais justo, e o fizeram com a palavra, com propostas políticas, e tiveram como resposta a violência. Portanto, eu acho que neste momento um dos grandes meios de evitar que estas coisas tornem a acontecer é a recuperação da memória, porque a memória nos devolve os assassinados, comunistas, socialistas, anarquistas. E disso o poder tem muito medo. Que na Espanha tenha desaparecido a figura da justiça universal, é sinal de que o governo tem receio da igualdade social. Se finalmente podemos julgar um ditador, se podemos julgar os carrascos, e cobrar responsabilidade aos que assassinam, é porque a pesquisa da memória nos permite isso. A memória permite fortalecer a sociedade democraticamente. E o poder tem muito medo de encarar o passado.
Ditaduras de ontem, democracias do amanhã: uma entrevista com Ángel Rodriguez Gallardo, pelo viés de Atílio Alencar
Me gusta mucho El trabajo de historiador émérite claro, con mucha précision scientifica sobre la persecucion franquista en Galicia .haber encontrado un profesor que se intéresa a esta mémoria fue y es un obsequio,una Luz en mi vida.