A cena raramente muda: Terêncio Horto, escritor de nariz avantajado e queixo protuberante, está sentado em frente a sua máquina de escrever. Na árvore genealógica da família, estamos falando do filho de Teresa com Hortêncio, lembrados em uma das memórias de Horto: “quando papai morreu, mamãe começou a vender cerveja e brigadeiro pelas ruas de São Paulo. Ficamos milionários, claro”. O primeiro filho de Terêncio chama-se Che Guevara Horto, caso rápido com uma colega de faculdade. Vinte e cinco anos depois, nasce Margaret Thatcher Horto, com cinco quilos e trezentos gramas – a minidama de ferro da família. Todos os nomes citados, por sua vez, têm como único pai o artista plástico e desenhista André Dahmer, carioca, 40 anos.
Lançado em outubro de 2014, Vida e obra de Terêncio Horto compila algumas das tiras do popular personagem de Dahmer que se autointitula “poeta das multidões”. E, de fato, são apenas uma parte delas – o cartunista já disse que entregou cerca de 250 quadrinhos de um total de 600 para sua editora, o que sugere o lançamento de um segundo volume em breve.
O título do livro não poderia descrever melhor sua intenção. Por um lado, “vida e obra” alude às grandes biografias do mundo das artes, universo tão satirizado por Dahmer. Em uma das tiras, por exemplo, Horto relembra o dia em que tomou ácido na Praia de Ferradurinha e enxergou Jesus Cristo distribuindo cerveja, ao invés de vinho, no que este resmungou: “malditas biografias não autorizadas!”. Ora, Vida e obra trata exatamente de uma biografia legítima, afinal, é escrita pelo próprio Terêncio.
De outro lado, o “vida e obra” pode ser tomado em seu sentido literal, já que é um livro de memórias em que Dahmer – o ‘verdadeiro’ escritor – constroi minuciosamente a vida de um personagem. O desenhista já declarou que Horto é um dos seus personagens mais ricos e humanizados. Nesse caso, é evidente a valorização que o autor dá ao texto, uma vez que as tiras se apoiam principalmente nas palavras tecladas por Terêncio – e não no cenário e feições do escritor-personagem, que são basicamente as mesmas ao longo dos quadros.
Por se tratar justamente de um livro que versa sobre a vida, os temas são dos mais variados. Não poderia faltar a internet, meio que alavancou a visibilidade de Dahmer. Contemporâneo de outros autores de quadrinho como Allan Sieber, Arnaldo Branco e Rafael Coutinho, André começou a publicar no início dos anos 2000 em um blog (hoje, o site oficial é esse). Com a repercussão das tiras, foi chamado para trabalhar em jornais, mas sem deixar de lado seu trabalho na internet. Natural, então, que esse seja um de seus temas mais frequentes: se no começo Dahmer fazia piada sobre fotolog, Orkut e blogueiros, o alvo de hoje, inevitavelmente, é a rede de Mark Zuckerberg (nas palavras de Terêncio: “Outra fria noite de domingo. Sorte que as pessoas ainda podem contar com o calor humano… através do Facebook”). Mesmo as leviandades mais inocentes passam incólumes – “por que vocês não compartilham links divertidos e fotos de gatinhos no inferno?”.
E se as redes sociais são um alvo privilegiado, o comportamento dos fatídicos comentaristas de portal obviamente não seria perdoado (“o homem é o único animal que comenta na internet”, sentencia Horto, encerrando o assunto). É válido lembrar a postura firme do quadrinista no documentário O Riso dos Outros (2012, direção de Pedro Arantes), onde declara que se o humor precisa fazer uma vítima, que se faça a certa: “por que bater nos negros ou nas mulheres, que já apanharam bastante?”. Em tempos de conservadorismo escancarado nas redes sociais (e refletido fora delas), Dahmer aponta para a graça do cidadão de bem que promove a paz através da violência, para citar um exemplo nas inúmeras contradições do discurso de direita.
Antes que acusem o autor de pessimista ou mau humorado, é notório que outro dos assuntos preferidos de Dahmer é o nada glamouroso mundo artístico. Talvez seja uma herança de seus tempos de faculdade, já que ele é formado em Desenho Industrial, embora garanta que a partir do terceiro semestre se decepcionara com o curso. Saiu de lá tendo como referência um único professor – “ele me ensinou que é preciso abandonar o mestre, acabar com o culto do faixa preta”, disse, em entrevista. A desconstrução do romântico elitismo nas artes começou por ali e se estendeu às tiras, onde frequentemente vemos Dahmer/Terêncio rindo de si mesmo (o que não é raro, já que a série “Mini Dahmer” contava a juventude do autor permeada por distúrbio de atenção e hiperatividade).
Ao final da leitura, a curiosidade que resta é justamente entender o quanto de Dahmer há em Terêncio, e vice-versa. Algo que o próprio autor já respondeu, quando disse que Horto é uma espécie de homenagem ao seu amigo e também escritor Terêncio Porto. Seria correto, então, questionarmos o quanto há de Horto em Porto? Possivelmente não. Se tantos leitores identificam-se com quadrinhos que ironizam a morte, o pessimismo e a solidão, talvez a pergunta devesse ser, afinal, o quanto de Terêncio Horto há em nós mesmos.
Poeta de uma multidão solitária, pelo viés de Dairan Paul.