A ordem social atual anda especialmente alvoroçada e necessitada de justiceiros, de heróis de plantão, de bastiões da virtude e da moral. Sujeitos que, em nome de certos valores, buscam mudar alguma coisa para que o fundamental, de fato, não mude. Deus, Pátria, Família, Propriedade, Tradição, Liberdade, Igualdade e Identidade são apenas alguns dos muitos ídolos que usam a fim de afirmar seus interesses pequenos e particulares sobre o grosso da coletividade. Tais personagens encontram no maniqueísmo o aliado estratégico para fazer valer os seus vis intentos.
O maniqueísmo é como uma carta na manga. A ele o justiceiro recorre em momentos de crise e de agitação. A personificação do bem – que é como gosta de se mostrar – trafega na nebulosidade dos fatos. Em seu movimento acusatório, o mero discurso tem peso de comprovação. Se o maniqueísta diz que é, então é… mesmo que seja incapaz de demonstrar, minimamente, a sua tese. Aqui, a narrativa prescritiva funda o ser. E o fragmento da realidade é igualado ao todo.
Reflitamos, pois, nas consequências nefastas dessa posição: quantas pessoas o maniqueísmo matou até hoje? Quantas mandou para a forca e a fogueira? Quantas torturou no fundo de uma cela suja? Quantas julgou e condenou sem apelo e sem defesa? Quantas oprimiu ao longo da história, seja por palavras, ameaças, chantagem, discriminações, ações? Quantas foram as pessoas que tiveram o destino comprometido, maculado, brutalizado ou agredido em decorrência de juízos superficiais e de formas simplíssimas de avaliar as condutas humanas?
O maniqueísta é o sujeito que está sempre com o dedo em riste, seja para apontar o “caminho correto”, seja para condenar o comportamento que não se adequa ao que considera “o ideal”. Não é difícil identificá-lo, possui algumas marcas distintivas. Trata-se do indivíduo que cresce quando está a mostrar os defeitos alheios. É assim que oculta seus paradoxos e realiza seu objetivo precípuo: olhar para o outro de cima e condená-lo.
Esse é o motivo de sua arrogantemente presumida coerência. O maniqueísta é uma cascavel que gosta de se apresentar como a corporificação da Lógica, a súmula do Bom Senso e a materialização da Virtude. Tudo, no entanto, não passa de fantoches usados para atazanar o próximo: a Justiça, a Certeza, a Razão, como prerrogativas de sua personalidade elevada, a quem todos devem reconhecer e querer se aproximar; e o Erro, a Dúvida, a Desrazão, como polos opostos que concentram a indesejável sordidez que precisamos evitar.
(É claro que os conteúdos desses termos são secundários, pois se adaptam ao contexto e ao interesse que lhe dá sustentação. O que importa é a aura de sacralidade que sua forma assume no discurso do maniqueísta).
Poucas coisas, no entanto, são tão grosseiras e ridículas quanto a presunção e a pose da suprema coerência, da completa harmonia, da perfeita adequação do sujeito consigo mesmo. Poucas coisas mascaram tanto a pobreza de espírito e a estupidez.
O maniqueísta considera como prerrogativa sua o tema que lhe interessa, definido no mais das vezes em termos de aparência, de abstrações, de elementos externos, imediatos. A aparência, diga-se, é a substância fundamental do seu fetiche, seja no plano material ou no simbólico. Ele a cultiva em suas múltiplas formas e nela se sustenta. Tudo transita em sua órbita. É isso, afinal, que precisa ser afirmado de si e negado no outro. É o relativo que precisa ser absolutizado. É o ponto de partida e o ponto de chegada. Não chega a causar espanto que, desse ponto de vista, tudo seja óbvio, claro, evidente por si mesmo. E, de fato, tudo o é, da perspectiva do maniqueísta.
Há que se reconhecer as suas capacidades espúrias: a rapidez com que julga os acontecimentos que lhe interessam é uma delas. Aqui se mostra o alto teor de oportunismo impregnado em seu comportamento. Ninguém como o maniqueísta é capaz de enquadrar um número tão grande de pessoas em categorias ético-morais arquitetadas de modo tão simplório. Ninguém como ele pratica a demonização do outro com tanta criatividade. E por conferir tanta luz sagrada àquilo que prega e tanta obscuridade àquilo que despreza, obstrui já de antemão qualquer possibilidade de que se conteste suas afirmações obtusas (quem discorda do maniqueísta está praticamente a cometer um crime de lesa-majestade). Nenhuma bizarrice pode ser aceita a não ser a sua bizarrice, estipulada como norma. Trata-se, na realidade, da luta pela afirmação do monopólio da bizarrice.
Por esse motivo, não se espante se acaso vir um maniqueísta impedir alguém de dar sua opinião sobre um assunto qualquer ou se observá-lo interditar sumariamente um debate ou discussão. Porque ele é uma figura que não tem escrúpulos quando se trata de sequestrar discursos e impor sua visão de mundo. É com tais propósitos que busca roubar a fala alheia, não permitir que o outro se expresse. É uma espécie de “carteirada ideológica” que gosta de praticar, semelhante ao famoso “você sabe com quem está falando?”.
A única verdade, entretanto, é que o maniqueísta é o grande empata-fodas da nossa sociedade. Vive de tentar controlar o prazer alheio. Sabe que o desejo está no centro da constituição do ser. É sobre essa instância que recai o seu ímpeto manipulatório, o seu joguinho medíocre: organizar, dirigir, formar a sensibilidade do outro, a fim de que este lhe sirva e satisfaça os seus mais caprichosos desejos.
Não é raro, por isso, que o maniqueísmo se converta em formas muito acintosas de perversidade. Sua maneira de julgar as coisas (o caráter humano, etc.) “em si”, desvinculadas de qualquer relação com o grande número de elementos com os quais mantêm ligação, costuma produzir sofrimentos acerbos.
A arma suprema que o maniqueísta gosta de manipular é a lei. Todo maniqueísta, de fato, adora a lei e a ela recorre portando ternos e gravatas, rótulos pré-fabricados e livros sagrados. A lei é o seu fetiche inconfessado, o apoio incontornável, o ponto arquimediano de íntimas obscenidades. O meio, enfim, para condenar e crucificar a pessoa para qual sua repulsa se dirige. A lei é o fundamento e a referência para a construção e a carga semântica de todas as palavras que usa para elaborar o seu código valorativo superficial e binário.
É por isso que o maniqueísta se mostra tão apaixonado pela norma, idolatra a norma, tanto a que deseja negar (considerada absurda, injusta), quanto a que pretende afirmar (tomada como sensata, justa). Aqui, revela-se o que de fato é: um perfeito escravo da escravização pela norma. Combate, assim, o fetiche alheio com o seu fetiche alternativo.
E não é por outra razão que o maniqueísta é o grande responsável pela burocratização das relações humanas. Tudo tem que seguir uma norma, uma regra, uma lei, um acordo (definido sempre nos seus termos, é claro). Seu ideal de relação social é o contrato, sendo este assegurado por uma instância superior, apartada dos contratantes. Para afirmá-lo, o maniqueísta trabalha com categorias antitéticas e estáticas, que lhe servem para criar tabus, quebrar a personalidade do interlocutor e organizar os discursos de uma forma que o seu maniqueísmo aprove: a vítima é sempre vítima; o agressor é sempre agressor. (Ele se esquece, assim, de modo sorrateiro, que, como nos mostra a história, frequentemente o agressor se torna vítima, e a vítima, agressor…).
Infelizmente, como todo desgraçado que gosta de manipular, o maniqueísta sempre encontra alguém que gosta e consente em ser manipulado (e que depois se transformará em outro desgraçado manipulador). Por todo esse grau nauseabundo de mesquinhez, o maniqueísta torna especialmente perigosas as relações sociais mais comezinhas. Manter-se alerta contra a lei, o contrato e a punição, estar atento para a burocratização das relações humanas e a implementação de certos tipos de normatização moralista são meios de evitar o contágio com o que há de mais nocivo nesse tipo de criatura bestial e infame.
A dialética perversa do maniqueísmo, pelo viés de Jacinto Pinto de Jesus*.
*Jacinto é seminarista, coroinha e pseudônimo.