A ocupação da Palestina continua cercada por dúvidas e falta de informação. Ainda há fortes tentativas de se resumir o conflito entre Israel e Palestina como uma questão de ‘civilizações incompatíveis’, como se o assunto pudesse ser resumido a um problema de convivência entre povos, num arranjo em que os palestinos certamente são apresentados, em geral, como terroristas em potencial. Se, de um lado, sabe-se muito do cotidiano dos israelenses em momentos críticos de conflito, de outro, não se sabe nada do cotidiano que palestinos têm de viver sob a mira das forças e das políticas do Estado de Israel.
Para mostrar como é a vida sob ocupação israelense, os diretores Emad Burnat e Guy Davidi fizeram o filme ‘5 Câmeras Quebradas’, indicado ao Oscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem em 2013. Emad vive em Bil’in, um vilarejo de 1.800 habitantes a 12km de Ramallah, capital da Palestina. Emad era o único habitante de Bil’in com uma câmera e era constantemente chamado para filmar festas no vilarejo. A partir daí, Emad percebeu que poderia filmar mais do que isso e, então, começou a usar a câmera para registrar o cotidiano de intimidação pelas Forças de Defesa de Israel e de precariedade estrutural imposta pela ocupação. A construção de uma cerca, em 2005, que impediria o trânsito livre da população de Bil’in suscitou protestos semanais dos moradores, que se tornaram símbolo mundial de protesto não-violento, atraindo a atenção de ativistas de vários países e tornado-se um exemplo para toda a Palestina.
O enredo do filme se baseia nas histórias que circundam as cinco câmeras de Emad que foram quebradas pelas represálias das forças israelenses contra os protestos em Bil’in. O filme foi exibido na Câmara Municipal de Vereadores de Santa Maria durante um evento organizado pelo Comitê Santa-mariense de Solidariedade ao Povo Palestino. A cidade foi a primeira parada de Emad no Brasil numa série de exibições e debates que cruzarão o país.
A revista o Viés participou do evento e conversou com Emad Burnat. Leia a entrevista abaixo.
Você defende com muita convicção a alternativa pacifista, por tentar chegar às conquistas de uma maneira que não atinja os outros violentamente. A gente queria que você falasse do cotidiano dessa escolha, como é passar por momentos injustos e violentos como aqueles retratados no seu filme? Como é conviver com essas violências e seguir pacífico?
Emad Burnat (EB): Não é fácil viver e lutar só a luta pacífica porque, quando o exército usa só a violência contra o povo palestino, contra a manifestação, tem gente que morre, tem gente que vai presa. Mas a luta dos palestinos sempre foi popular e pacífica porque não temos exército, não temos armas. A luta e a resistência sempre foram pacíficas ou populares. Quando começou a luta na minha cidade, em Bil’In, na Cisjordânia, vivemos num lugar que está controlado pelo exército israelense e, aí, para lutar contra o israelense, contra o muro, contra o exército, sempre lutamos a luta pacífica. Eu acho que há um problema sobre a questão palestina sobre violência e luta pacífica, resistência, porque aparece mais na mídia global a história da violência. Mas, na verdade, a resistência sempre foi pacífica e popular. A luta na minha cidade começou em 2005, contra o muro, contra o colonialismo e tudo foi pacífico, com gente da cidade que não tem armas, que não tem nada, com mãos vazias. Nós pensamos sempre, a cada dia e a cada semana, como nós vamos fazer a manifestação na cidade na outra semana: como vai ser o jeito da manifestação, a ideia da manifestação [a população de Bil’In mantém, desde janeiro de 2005, protestos semanais contra o muro israelense construído nas terras da cidade]. Foi um motivo bom para trazer mais foco para a cidade na mídia global, sempre tem também gente que veio de fora, bastante gente, a cada dia e a cada semana aumenta mais o número de pessoas para participar da luta da cidade. Mas, quando a situação está complicada, quando o exército israelense mata alguém, o seu amigo morre, seu filho ou seu irmão, ou quando qualquer um da cidade vai preso ou toma um tiro, a gente fica preocupado e bravo, [se pergunta] porque o exército usa a violência contra nós? Mas o sentimento é de querer fazer mais, de lutar a luta pacífica porque, quando a gente fica bravo, quer fazer uma coisa brava.
Eu acho muito importante documentar nossa vida, contar nossas histórias para o mundo inteiro porque a realidade não vai sair nunca [na mídia]. Se não fizermos nada, ninguém vai saber nossa história, nossa realidade e nossa luta.
Tem uma frase do filme que fala “é preciso força para transformar a raiva em algo positivo”. Como é que essa experiência de viver sob ameaça do Estado israelense, como se transforma essa raiva, essa vontade de querer resistir, como é que se transforma isso em um filme?
(EB): Cada um tem várias maneiras para transformar sua ideia, qual é o jeito que vai dar melhor para ele lutar – e eu escolhi a minha maneira, escolhi o filme documentário porque eu sabia que a câmera sempre foi uma testemunha muito importante. Eu queria apresentar a nossa história, a nossa questão palestina para mais gente no mundo. Eu não tinha certeza de que iria chegar a tanta gente no mundo, mas o filme fez grande sucesso. Eu achei essa maneira muito importante, eu escolhi uma maneira boa; tem gente que escolhe outras maneiras, escolhe escrever ou escolhe armas para lutar ou escolhe a luta pacífica – mas, como falei, os Estados Unidos, os sionistas e Israel dominam a mídia global. Quando Israel domina a mídia global, aqui no Brasil ou nos Estados Unidos ou na Europa, é difícil descobrir o que está acontecendo lá na Palestina, a história verdadeira, a realidade. Eu acho que o filme explica isso, explica a história para as pessoas. Eu acho muito importante documentar nossa vida, contar nossas histórias para o mundo inteiro porque a realidade não vai sair nunca [na mídia]. Se não fizermos nada, ninguém vai saber nossa história, nossa realidade e nossa luta; por que tem guerra lá, tem gente perguntando “por que tem sempre guerra lá, por que sempre tem conflito”? O porquê, ninguém sabe o porquê, mas tem que procurar sempre a realidade.
Eu queria te perguntar sobre essa questão de ver pessoas muito próximas a você sofrendo essa violência, em determinados momentos você ter que se segurar e não intervir diretamente. Como foi lidar com isso?
(EB): Tem vários momentos que aconteceram comigo: quando pegaram meu irmão e meu pai e minha mãe foram tentar soltar ele, eu pensei: “se vou me meter, eles vão me prender”, então eu vou continuar filmando, eu estava filmando por um motivo e essas filmagens, bastante gente no mundo vai ver essas imagens depois. Foi muito importante eu decidir. Na hora, não é fácil quando está acontecendo uma coisa sobre a família. A câmera e o documentário foram muito colados comigo, porque tinha uma relação muito forte entre a câmera e o que estava acontecendo na cidade. Eu estava onde a câmera queria naquela época e eu era o único que filmava tudo na aldeia. Foi muito importante continuar filmando.
Como foi a recepção do filme na Palestina e nas comunidades perto de Bil’In?
(EB): Na Palestina, houve uma recepção muito boa, apresentei o filme em várias salas na Palestina e em várias cidades e fui recebido muito bem. A gente na Palestina tem uma mesma experiência, para eles não há nova história para saber, mas há sentimentos, eles sentem quando tem uma coisa nova, uma coisa de família, eles sentem por dentro.
E durante as exibições pelo mundo, como os palestinos que não estão na Palestina têm recebido o filme?
(EB): O sentimento é o mesmo, o sentimento dos outros palestinos é o mesmo sentimento.
Como foi a recepção do filme em Israel?
(EB): O filme passou nos cinemas de lá, mas não foi tratado que nem aqui no Brasil ou nos Estados Unidos. Tem poucos comentários sobre isso lá em Israel mas poucos comentaram contra o filme.
Quando estou filmando e chegam os soldados, às vezes eles quebram a câmera, às vezes eles te levam preso, às vezes eles te dão um tiro, é sempre difícil e complicado antes do filme.
Bem no final do filme você fala que vai continuar filmando sempre e queria saber se isso é ainda corriqueiro na sua vida? E sobre o processo do filme, como foi o processo de construção do documentário?
(EB): Comecei no ano de 2005 por vários motivos: no começo ia gente de outros lugares fazer filmagens e como eu era a única pessoa que tinha câmera lá – eu estava sempre filmando dia e noite – e eles sempre pediam a minha ajuda com imagens para o documentário deles. Aí, naquela época a ideia veio de um amigo meu, que falou “é tu que tem que fazer esse filme, porque tu vive aqui, eles não têm o sentimento e a experiência, tu daria isso e eles não”. Eu comecei naquela época, 2005, a construir a história. Para mim foi muito difícil filmar e ter família e a minha vida, mas eu queria continuar a filmar e trabalhar no filme. Eu fui trabalhando no filme, construindo a história, o foco estava sempre na luta e na vida por dentro. Cinco anos depois, eu estava procurando gente para acabar o filme e a produção do filme, e o Guy [Guy Davidi, que divide os créditos da direção do documentário], um ativista que ia sempre para participar [das manifestações], eu falei com ele para ele me ajudar, mas ele chegou na última parte. Agora continuo filmando e tenho uma nova ideia de outro filme, com a mesma história continuando. Enquanto eu estou aqui viajando, o meu filho de 14 anos já começou a filmar. Ele também filma e produz no computador uns filmes curtos. A história continua, eu vou continuar a mesma história, construindo a segunda parte do filme. Eu chamei esse cara israelense para ajudar no filme, a minha ideia era para mostrar o filme para os israelenses também. Ver o jeito que eles pensam sobre nós porque eles vão sempre com os olhos fechados, não querem saber nada de nós. É muito difícil de mudar o pensamento deles.
Antes do filme, como tu reagia ao avanço do Estado de Israel na Palestina?
(EB): Eu moro ainda na cidade, sou parte dos palestinos e a minha responsabilidade é de lutar por qualquer direito, fazer alguma coisa sobre a questão palestina e é muito complicado quando tu está participando numa manifestação, sempre foi difícil para nós ou para mim, porque, quando estou filmando e chegam os soldados, às vezes eles quebram a câmera, às vezes eles te levam preso, às vezes eles te dão um tiro, é sempre difícil e complicado antes do filme.
Você fala no filme que cada filho seu viveu uma fase diferente da história da Palestina, e agora que o conflito ainda não acabou, como você percebe a situação atual?
(EB): A situação não mudou nada, mas eu queria contar para os meus filhos que cada um nasceu e viveu em uma época diferente. Eu queria mostrar um pouco sobre a vida deles e sobre a nossa vida quando eles nasceram. A vida em geral não mudou nada, mas agora que meus filhos ficaram grandes eu fico preocupado.
Quando você pensa nos seus filhos, o que você espera do futuro para eles?
(EB): Eu quero que o futuro deles seja melhor, não quero que eles vivam a mesma experiência que eu vivi, que eu passei. Eles também têm que escolher a maneira deles, como eles vão viver, como é que eles vão lutar. Não tem como mudar a vida. A nossa questão como palestinos não tem como mudar, tem que continuar a lutar. E meus filhos vão escolher a maneira deles, vão escolher a vida deles. Se eles vão ficar lá, vão lutar, ou vão fazer outra coisa. Tem bastante gente que não vai participar na luta, mas eles sofrem. Todos os palestinos sofrem. Se tu vai lutar, ou não vai lutar, vai sofrer.
Não tem nada a ver com religiões. O conflito é sobre a terra, controlar a terra.
A melhor solução seria um Estado ou dois Estados?
(EB): Eu acho isso conversa de político, que estão conversando faz tempo sobre a solução de um Estado ou dois Estados. Para mim, eu quero solução, eu quero liberdade no meu país. Eu não acho que dá para morar no mesmo Estado, num país junto. Já aconteceu muita coisa. E eles não vão aceitar também. Os israelenses não vão aceitar um Estado para todos. E eles não vão dar um Estado para os palestinos. O sonho deles é o Estado israelense maior.
Qual a importância da sua terra para sua vida e pra sua comunidade? E como é estar perdendo isso?
(EB): Todos os palestinos têm uma relação muito forte com a terra deles. Eu não vivo da terra. Não tem como viver da terra porque não tem terra suficiente para cada um. A metade da terra já se foi. E tem o problema da água também. Quando tem terra, se tu tem terra suficiente para plantar e para viver, não tem água. Porque o exército e o governo israelenses controlam também a água, a nossa água. Não tem água o suficiente em vários lugares da Cisjordânia. Não tem água para viver em casa, como vai ter água para plantar? A nossa terra nós cuidamos, plantamos. Gostamos de tratar a nossa terra, as nossas árvores.
O conflito é sobre terra, mas muitos dizem que é sobre religião e não tem nada para se fazer. O que você acha?
(EB): Não tem nada a ver com religiões. O conflito é sobre a terra, controlar a terra. É muito simples. Imagina alguém pegar a tua casa, as tuas terras? Falar para ti que tu não tem nada aqui, que “sai daqui”? Tu vai ficar aqui, vai lutar ou vai fazer o quê? É mesma coisa.
Eu queria entender melhor a relação geográfica do muro para a cidade e para vocês.
(EB): O muro entre Israel e a Cisjordânia está já acabado, mas, quando construíram a cerca, era mais para dentro da cidade [de Bil’In]. O motivo era pegar a terra, a nossa terra. [Agora] eles tiraram a cerca e mudaram o lugar, está mais perto da colônia [israelsense], nos devolveram um pouco da terra da cidade. A mesma situação acontece na Cisjordânia em todos os lugares. Tem outros lugares que não saíram para lutar, não fizeram manifestações, o muro ficou no lugar mas o motivo do porquê deles fazerem o muro não é para serem protegidos, é para conseguirem mais terra, nossas terras, para entrarem mais e levarem mais terra, para construir mais colônias. Confiscaram 50% da nossa terra [da Cisjordânia], em Bil’In, 55%. O muro engoliu metade da cidade.
Eu queria saber se, entre as pessoas da sua aldeia e da colônia israelense depois do muro, existe algum tipo de relação?
(EB): Não tem nenhum tipo, porque o muro está nos separando da colônia, não dá pra entrar ou sair, nem para eles. Antigamente nós podíamos entrar, passar para o outro lado quando era a cerca. E sobre as colônias, a gente percebia, eles nem sabiam conversar em hebraico, eles chegavam da Rússia e de outros lugares.
Como é que você entra e sai da Cisjordânia?
(EB): É, é complicado sair de lá, o aeroporto de Tel Aviv não é longe da minha cidade, dá 30 minutos. Mas eu não posso sair pelo aeroporto, tenho que sair pela Jordânia. Para entrar e sair tenho que pegar uma ponte entre a Jordânia e a Palestina e quem manda lá são os israelenses. Mesmo sendo outros países. E está sempre lotado de gente, a única saída que temos é barrada e temos que atravessar.
Como o filme chegou ao Oscar e como você chegou ao Oscar?
(EB): A primeira vez que apresentei ele foi na Holanda e as pessoas gostaram do filme, gostaram da história, depois eu apresentei o filme no Sundance [festival de cinema nos Estados Unidos] e foi a mesma coisa. Teve gente que veio para comprar o filme, para apresentar o filme nos Estados Unidos, na Europa. Foi muito importante. Para apresentar o filme no Oscar, tem que apresentar em muitos países e tem que apresentar no cinema dos EUA. O processo não é fácil, esse processo de apresentar em cinema, em festivais. Daí eles gostaram do filme e ele foi indicado para o Oscar.
Emad Burnat: ‘A câmera sempre foi uma testemunha muito importante’, pelo viés de Bruna Homrich, Gianlluca Simi, João Victor Moura, Laíssa Sardiglia, Leonardo Cortes e Nathália Costa