Sr. e Sra. Walter Franz e Sr. e Sra. Prof. Aurélio Amaral têm o prazer de convidar V. S. e digníssima família para a cerimônia de benção nupcial de seus filhos Marília e Hugo Aurélio a realizar-se às 17:30 horas do dia 1º de abril de mil novecentos e sessenta e quatro, na Igreja Matriz de São Pedro do Sul.
O NAMORO
No final da década de 50, para sair de Passo Fundo e chegar a São Pedro do Sul, era necessário fazer uma viagem de mais de 13 horas. A primeira etapa, de 12 horas, era feita a bordo de um trem, que deixava seus passageiros em Santa Maria, para que dali o viajante pegasse um ônibus e fizesse o resto do trajeto em um ônibus que desviaria de buraco em buraco na estrada de chão que levaria à cidadezinha a aproximadamente 40 km da Boca do Monte.
Esse foi o percurso feito pelo jovem Hugo Aurélio quando foi hospedar-se na casa de seu tio paulo para preparar-se para o vestibular de Medicina em Santa Maria. É fácil imaginá-lo descendo do ônibus no centro de São Pedro, sendo recepcionado pelo tio, mas com a cabeça na família que ficara para trás na estação de Passo Fundo e na vida que planejara para si em Santa Maria. Mas antes disso, havia o período de estudos na cidadezinha de seu tio. O “sobrinho do Seu Paulo”, como passou a ser conhecido, era frequentemente visto na praça e no cinema e, como costuma acontecer quando chega um alguém novo em uma cidade muito pequena, logo chamou a atenção dos demais jovens do lugar. Entre elas estava Marília, filha do médico da cidade, com quem se casaria depois de cinco anos de namoro, no 1º de abril de 1964, dia do Golpe Militar.
O namoro que começou na praça de São Pedro do Sul mudou-se de cidade. Tanto Hugo quando Marília mudaram-se para Santa Maria, para continuarem seus estudos. Ele, morando em uma república estudantil, conseguira entrar no curso de Medicina. Ela, que dividia um apartamento com amigas, estudava o magistério. Enquanto tocavam suas vidas de estudante, passaram a juntar dinheiro para o casamento. Marília dava aulas para séries iniciais. “Naquela época, valorizavam os professores, pagavam bem. Até mexiam que quem casava com professora estava bem de vida, era ‘xupim’. Sabe aquele passarinho verde que coloca seus ovos no ninho de outros pássaros? Eu era xupim.” relembra Hugo.
Além de ter sido um dos fundadores do primeiro cursinho pré-vestibular da cidade, criado por alunos da Medicina para os vestibulandos do curso, ele também dava aulas de Ciências Naturais nos colégios Santa Maria e Manuel Ribas. Para que pudesse lecionar mesmo não tendo ainda completado os 21 anos, a maioridade da época, foi necessário que seu pai fosse a um cartório emancipá-lo. Enquanto estudante, Hugo também assumia a clientela de alguns médicos já estabelecidos, quando estes tiravam férias. A prática, que hoje é considerada ilegal, era bastante comum na época.
Além de trabalharem muito, para economizar mais um pouco de dinheiro, o casal costumava almoçar em uma das quatro ou cinco casas da Juventude Católica de Santa Maria, instituição que existiu até 1968 e que oferecia hospedagem e alimentação para estudantes, com o objetivo de difundir os ensinamentos religiosos da igreja no meio estudantil. Entre os organizadores da JUC, como era conhecida, estava o padre Romar Pagliarin, um progressista convicto, também natural de São Pedro do Sul, como Marília, e que fora professor dela na disciplina de Filosofia. “O padre Pagliarin era um sujeito muito avançado para a época. Tinha ido a Roma, era jovem e professor de Filosofia. Tinha uma visão sociológica muito boa. Sempre que a gente ia almoçar na JUC, havia discussões políticas. Ele era o nosso Leonardo Boff. Um cara inteligente, com quem dava pra conversar”, lembra Hugo. Logo, foi uma decisão natural para o casal convidar Pagliarin para realizar a cerimônia de casamento.
O CASAMENTO
Quando casaram, Hugo tinha 23 anos e Marília, 22; um filho tão cedo não estava em seus planos, logo a data do casamento não foi escolhida em vão. Naquela época, com a falta de métodos contraceptivos, a maneira mais fácil de evitar a gravidez era através do método da tabelinha e o dia 1º de abril caía no período não-fértil de Marília.
Na noite do dia 31, véspera do casamento, alguns convidados já haviam chegado e estavam reunidos na ampla sala da casa dos pais de Marília, quando o pai de Hugo entrou contando a novidade que acabara de escutar no rádio: “Vocês não sabem o que aconteceu. Estourou uma revolução!”.
Naquele dia, o general Mourão Filho, um dos articuladores do Golpe Militar, deslocou suas tropas da cidade mineira de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro, com o objetivo de desempossar o presidente João Goulart. A atitude, considerada precipitada até mesmo pelos demais militares, desencadeou uma mobilização das Forças Armadas que levou Jango a se refugiar no Rio Grande do Sul, no dia seguinte, e deixar vaga a cadeira da presidência.
O casal de noivos surpreendeu-se ao saber da notícia, mas não chegou a prestar muita atenção. “Já estava tudo pronto e, naquele momento, a grande loucura da nossa vida era o casamento e não o golpe. Só fomos entender o que tinha realmente acontecido tempos depois”, diz Hugo.
Alguns parentes de Marília vindos de Pelotas para a cerimônia resolveram voltar naquele mesmo dia, com medo que estourasse alguma revolta popular na fábrica da família. Foi a primeira baixa da festa. Os demais foram dormir cedo, visto que a cidade só tinha iluminação elétrica até a 1h da manhã, quando o gerador parava de funcionar. O dia seguinte ficaria marcado na história do casal e na do Brasil.
No dia 1º, chegando perto do horário do casamento, um atraso começou a incomodar a todos – e não era da noiva. O padre Romar Pagliarin, que viajaria de Santa Maria para São Pedro apenas para rezar a cerimônia de união, não aparecera. Ao saber do golpe, Romar escondera-se, na certeza de que seria procurado pelas forças militares, e ele tinha razão, tanto que, pouco tempo depois, seria preso por seu envolvimento com movimentos de esquerda.
Na falta de alguém para rezar a missa, procuraram o padre local, de quem Hugo e Marília não lembram o nome. O padre, ressentido por ter sido preterido a favor de um padre comunista, negara-se a realizar a cerimônia. Então Flávio, o irmão de Marília, resolveu buscar pessoalmente o vigário e trazê-lo, nem que fosse à força, e conseguiu. “O tal do padre veio com uma cara e fez um sermão todo anticomunista, chato, chato!”, lembra Marília.
Depois da cerimônia religiosa, foram todos para a festa, realizada no Clube do Comércio da cidade. O decorador da festa, o mais renomado de Santa Maria na época, dispusera uma mesa principal para os noivos, seus pais e os padrinhos, outras mesas para os convidados e um bufê central de salgados. Sobrou muita comida da festa, visto que, dos 120 convidados, muitos não puderam comparecer, pois no dia as forças militares haviam fechado os postos de gasolina por todo o país para evitar uma mobilização popular. “Acho que deve ter faltado umas cinquenta pessoas”, estima Hugo. A festa transcorreu sem maiores sustos e os convidados começaram a se retirar. Porém, para surpresa de todos, havia barreiras policiais por todas as estradas. Todos, inclusive os recém-casados, foram revistados na volta para casa.
“Eu tinha um colega que foi ao casamento e, quando chegou aqui em Santa Maria, já estava preso, porque era envolvido com a esquerda”, recorda Hugo. Outro amigo, por sua vez, com medo de que as Forças Armadas utilizassem os aviões do Clube do Aviador, do qual era sócio, ao chegar à cidade, rumou ao clube e retirou peças de todos os aviões para impedi-los de alçar vôo.
Hugo e Marília não tiveram a lua-de-mel dos sonhos. Haviam reservado um hotel em Gramado, para passar alguns dias, porém, com o fechamento dos postos e as barreiras policiais, não tiveram alternativa que não realizar suas núpcias no apartamento 52C do Edifício Taperinha, onde passaram a morar.
VIDA DE CASADOS
A vida logo após o casamento não foi glamorosa. Hugo ainda tinha um ano de faculdade pela frente e o casal continuou almoçando todos os dias no Restaurante Universitário. Quando cansavam do ambiente, iam a um restaurantezinho modesto que servia pratos-feitos.
Foram montando a casa e, até hoje, lembram direitinho da primeira geladeira que compraram. Dividiam as tarefas domésticas: ela cozinhava e ele limpava o banheiro. Dois anos depois do casamento, veio a primeira filha, Márcia, hoje professora de Comunicação Social da UFSM. O parto foi um pouco difícil, o que levou o casal a decidir pela cesariana para a outra filha que viria, Luciana, que trabalha como advogada em Porto alegre.
“Minha filha nasceu pelas minhas mãos. Nós morávamos em Panambi e naquela época não tinha celular nem nada. Então nós marcamos uma data pra cesariana com um anestesista. Ele fez a anestesia e eu, a cirurgia. Minha filha nasceu pelas minhas próprias mãos”, orgulha-se ele. “É, ele teve a chance de se livrar de mim”, diz Marília, rindo.
Hugo ascendeu na carreira. Foi o primeiro diretor do Hospital Universitário, quando este foi transferido para o campus. A ditadura fazia-se sentir. Em todo o país, os reitores das universidades tinham “conselheiros” militares, que zelavam pelo cumprimento das ordens superiores dentro das instituições. Certa vez, o Reitor entrou na sala de Hugo e pediu para ele demitir um médico recém-contratado suspeito de envolvimento com a esquerda. Hugo disse que só o demitiria se o Reitor lhe desse uma ordem assinada, o que ele não fez. Logo, Hugo não demitiu o médico novo, que, inclusive, viria a se tornar o próximo diretor do HUSM.
Marília cursou Letras depois que suas filhas cresceram e diz nunca ter recebido interferência do governo militar em seu trabalho. A ditadura, porém, seguiria até 1985, quando o Colégio Eleitoral elegeria Tancredo Neves como Presidente da República. Tancredo faleceria antes de assumir e o seu vice, José Sarney, assumiria até 1989, ano das primeiras eleições diretas após a redemocratização. Até chegar esse momento, a ditadura já teria mudado a vida de muita gente, como a do padre Romar Pagliarin, que após ser libertado da prisão, largou a batina, casou-se, teve um filho e mudou-se para Minas Gerais, onde seguiu a vida dando aulas de Filosofia.
Hugo e Marília riem ao relembrar de tudo o que aconteceu em seu casamento. Os dois concordam que a viagem de núpcias para Gramado, por exemplo, não fez falta. Hoje eles andam pelo mundo todo, fazendo uma lua-de-mel por ano. Seu apartamento é decorado com lembranças dos países que visitaram: bonequinhos de sereias da Dinamarca e trolls da Escandinávia, ícones da Igreja Ortodoxa Russa, facas marroquinas, turcas, uruguaias, uma pele de rena da Lapônia, entre outras coisas. Para o ano que vem, quando completa 70 anos, Hugo planeja uma viagem para a Antártica, para visitar a base brasileira que lá existe. Marília, porém, não quer de jeito nenhum e esse parece ser o principal impasse do casal, hoje em dia.
“O que eu acho importante dizer é que a vida a dois tu vais construindo dia a dia. Consolidando aqui, consolidando lá, aparando uma aresta. Um perdoando o outro em algumas coisas que saem erradas. O que interessa é isso, o final. Um final alegre, um final bom. Nós estamos muito bem, nossas filhas estão bem, nossos três netos também. Falando nisso, meu neto já anda de mãos dadas com uma menina aí, uma guriazinha muito boa. Tô vendo que, daqui a um tempo, vou estar dormindo com ‘a bisavó’”, diz Hugo.
“Ai, não fala isso! Que horror!”, retruca Marília.
A realizar-se no dia 1º de abril de 1964, pelo viés de Felipe Severo
Texto baseado no texto original, publicado na revista o Viés impressa, exemplar único, de 2010.