A menor máscara do mundo foi aos quilombos e agora está na película do cinema. “Nas Margens do Riso: Quilombos de Alegra e Luta” é um primoroso fato na vida de um palhaço: ir a um lugar onde nem todos conheciam um palhaço, personagem mundialmente popular, ao vivo. Mas quem espera o riso às margens das estripulias do ator Daniel Lucas atrás de sua pequena máscara vermelha, é advertido já nas primeiras cenas. O riso e a brincadeira não conhecem geografias. Quando o humor encontra os seres, o que se vê na tela é a procriação de outros e mais outros e mais outras palhaças e palhaços. Alguns não conheciam palhaços. Mas conhecem muito bem o humor.
O filme, com 36 minutos de duração, é um documentário gravado entre setembro e novembro de 2014 registrando as vivências do Teatro VagaMundo num passeio rural por nove comunidades quilombolas gaúchas, na região da Costa Doce, sul do estado. A cada localidade, antes informada ao espectador através de legendas, um megafone anuncia ainda com a tela escura a chegada do espetáculo circense “Banana com Canela”. O público em cada apresentação, no gramado em frente ao centro comunitário, sob o teto do pequeno clube, no pátio depois da tempestade, varia entre vinte e oitenta sorrisos abertos e vergonhas de tanto rir. Além do espetáculo sobre uma lona circularmente colorida onde o palhaço Rabito, a alma cômica de Daniel, enrola e desenrola situações simples e cômicas entre o público, oficinas foram ministradas pelo ator aos moradores. Negros, atuais residentes das terras herdadas por direito na descendência que mantêm dos escravos.
Com a riqueza da história – levar um palhaço aos locais onde descendentes de escravos trabalham e vivem – algumas cenas parecem terminar antes do tempo. A imagem de abertura, quando somos dirigidos por diferentes tipos de estradas, nos rincões verdes do sul do Rio Grande do Sul, ao encontro com os primeiros sorrisos negros, merecia uma eternidade. A trilha bem escolhida contribui para o início de boas sensações que estão por vir. Com cenas exemplares, como a da moradora que avista o palhaço e dá meia volta pela estrada, o filme prende a atenção. Sendo as personagens os próprios moradores, o cenário e a fotografia receberam a melhor diligência, cruzando histórias entre mesas de café, cozinhas com fogão a lenha, estradas de terra, centros comunitários e portas abertas de casas com horizonte. As viagens fizeram parte do projeto “Palhaço Rabito celebra o encontro com as comunidades quilombolas do RS”, financiado pela Secretaria da Cultura através de edital de apoio à cultura.
Nas Margens do Riso – Quilombos de Alegria e Luta (TEASER) from Pedro Krum on Vimeo.
“Com licença do Curiandamba, com licença do Curiacuca, com licença do Sinhô Moço, com licença do Dono de Terra”. O abre-alas invoca um mergulho. Muito bem amparado pela produção fílmica, que acompanhou o cotidiano – mesmo que sacudido pela grande novidade – das famílias que se empenharam em construir cenários e plateias nos confins do Rio Grande. Um narrador nos acompanha explicando para onde estamos indo e quem vamos encontrar. É neste momento de reconhecimento, por parte do público espectador do filme, dos palhaços quilombolas que vão aparecendo cena a cena, que o documentário decreta sua missiva. Sem precisar ser dita ou exposta em texto. Entre pessoas que sérias contam seu passado, quando “preto comia laranja do chão e não podia colher da árvore”, entre histórias de vida contempladas por muitos dali, às vezes sufocados pela naturalidade dos preconceitos diários, surgem mulheres e homens que fazem de Rabito mais um. É quando a passagem “quilombos de alegria e luta”, do título, se explica em imagem. Quantas vezes a vida ordena aplicarmos nosso lado cômico? É isso que Rabito quer dizer sem falar. Libertar-se para o riso e para fazer rir. O espetáculo, em momento algum, mostra o Rabito sozinho em cena.
Comentado no programa Ruído, da revista o Viés, “Nas Margens do Riso” teve sua estreia na segunda-feira, 16 de março, no Auditório da Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria, a CESMA, e o público não deixou cadeiras vazias na primeira exibição. Se você quiser contatar a equipe, acesse a página do Teatro VagaMundo. O filme, com direção de Pedro Krum, deve percorrer alguns festivais pelo país, e conta com roteiro de Atílio Alencar e Daniel Lucas, edição de Pedro Krum e Daniel Lucas, e coordenação de produção de Gabriela Amado. O plano posterior às exibições em festivais é maior. Voltar às comunidades quilombolas com o filme. Desta vez, com uma tela, um projetor, e uma sessão de cinema especial entre a grande equipe.
O palhaço pede licença aos donos da terra, pelo viés de Bibiano Girard.