As frequentes manobras de opinião pública protagonizadas pelos principais conglomerados de comunicação social do país demonstram o quão complexo e difícil é o futuro que se reserva aos brasileiros. As primeiras décadas do século XXI foram marcadas principalmente pela ascensão de Lula à presidência da República, pela criação e manutenção de políticas sociais que atingiram índices históricos – talvez nunca antes pensados como possíveis! – acompanhados de um crescimento econômico estável até a reeleição de Dilma, pela crise institucional da democracia e pelo enfraquecimento da economia a reboque da crise internacional. Quando nos debruçamos sobre um estudo mais apurado a respeito dos critérios de noticiabilidade dos grandes veículos percebemos, principalmente nas editorias de política e nas páginas de opinião, que tais critérios são por vezes muito mais subjetivos e pouco esclarecedores do que o contrário.
Basta citar alguns exemplos para perceber que a guerra da informação, o jogo de cena da “verdade” e da “credibilidade” esconde uma disputa direta por eleitores. Eleitores são classificáveis basicamente por níveis de escolaridade, patrimônio e acesso a serviços e a bens de consumo. A função social dos veículos de comunicação de massa supõe determinada idoneidade e imparcialidade para garantir seu papel primordial: a fiscalização dos assuntos decisivos da esfera pública para a manutenção da democracia. Porém, o que se percebe de forma evidente é uma certa coalizão de interesses dos grandes empresários com os interesses de determinados partidos políticos e das maiores e mais lucrativas empresas de comunicação. Um alinhamento estável de ideias na cosmologia do dinheiro, do poder e da disputa pelo controle.
Ora, se a apuração de fatos torna-se seletiva, logo, a probabilidade dos meios representarem uma disfunção social é uma hipótese a ser considerada. O que fica cada vez mais evidente, no entanto, é o sentido de tal direcionamento por parte dos meios, , que sugere que poderíamos separar em duas partes o todo dos grupos de eleitores do Brasil, mas que na verdade é uma batalha mais acirrada pela construção e fortalecimento de novas agendas – que poderíamos chamar inputs[1] – com a inócua intenção de arregimentar aqueles eleitores moderno-cordiais[2], passíveis de ser cooptáveis por um direcionamento estratégico da opinião pública. A questão é saber lapidar o tempo enquanto escorre a areia na ampulheta, a construção do ato do dia 15/03 é um ato primeiramente político, e o fermento usado para inflar a massa, atrair o maior número possível de indecisos é o pretexto do espetáculo, transformar tudo em uma festa televisionada durante todo um domingo em uma práxis muito mais circensis que outra coisa.
É fácil trocar as bolas quando se pressupõe uma falsa impressão de credibilidade junto a milhares de pessoas. Verdadeira ilusão de ótica. Vejam o que fez a VEJA na véspera da última eleição, em milhares de lares, escritórios, consultórios de medicina e odontologia, serviços públicos, empresas privadas e até mesmo pendurada no pescoço de alguns eleitores nas filas das cabines de votação. Em 2014, os cientistas políticos brasileiros cogitaram firmemente uma vitória de Marina Silva no segundo turno em cima de Dilma, na primeira semana de setembro, colocando-a a frente de Aécio Neves. No entanto, o segundo turno foi diferente e sem grandes surpresas: repetiu-se a histórica polarização, que fortalece a ideia de partir em duas partes todo o eleitorado, e Aécio chegou à reta final com grandes chances de êxito na eleição mais disputada da terceira República.
Mas, afinal, o que tem a mídia a ver com isso? Enquanto jogo é jogado, a estratégia mais decisiva para aqueles que querem virá-lo é justamente alterar as suas regras. Como se altera as regras do jogo? Bom, se pensarmos sobre isto, veremos que os caminhos apontam para o viés da reforma ou da revolução. Faz parte da disfunção social da grade mídia relegar pejorativamente todos os assuntos relacionados à política, reduzindo assim o custo da decisão para aqueles que legislam e executam poderem agir mais tranquila e sorrateiramente.
Com a redação da carta magna de 1988, diversos especialistas em desenho constitucional apontaram para o que chamaram de “combinação explosiva”. Este assunto é suficientemente específico da área da ciência política, que não me sinto tão à vontade e nem tenho autonomia suficiente para argumentar com a mesma naturalidade que falo sobre comunicação social, no entanto, preciso abordar brevemente alumas questões. Segundo os especialistas, a “combinação explosiva” passa basicamente pelo funcionamento simultâneo de três opções decididas na constituinte que definiram a forma de governo como o presidencialismo, o sistema eleitoral por representação proporcional e o sistema partidário através do multipartidarismo.
Esta combinação de fatores é basicamente o que transforma a política em um campo de disputa de coalizões na tentativa de governabilidade. Troca-se apoio parlamentar por cargos e funções. Quando não se pode confirmar alianças com trocas diretas, se oferece propina, lava-se dinheiro, superfaturam-se obras públicas, encontra-se uma maneira de amalgamar todos os interesses. Grosso modo, é assim que se reduz a política macro-estruturalmente.
No entanto, nas dimensões micro-estruturais, aquelas mais próximas dos atores sociais, dos cidadãos e eleitores na vida cotidiana, este viés pejorativo é facilmente direcionado e trabalha de forma eficiente para dar novo corpo e significado a agendas políticas, tentando vinculá-las aos políticos e partidos que de alguma forma oferecem maior retorno financeiro aos veículos de comunicação, seja por aliança ideológica ou vínculo econômico, mesmo que reduzido.
Analisemos exemplos práticos. Os limites editoriais de cada veículo representam, também, um interesse político, de forma idêntica aos interesses políticos daqueles que legislam através de projetos de lei ou que tem poder de veto ou sanção. Ou seja, profissionais da comunicação e a própria comunicação social é uma ferramenta tão política quando a própria política.
Citei a edição da revista VEJA que circulou no dia 31 de outubro de 2014. Cito agora os casos da privataria tucana do metrô de São Paulo, que teve critério, peso e apelo diferente do caso, por exemplo, do Mensalão. Cito a CPI do HSBC, as investigações sobre a origem da cocaína apreendida no episódio envolvendo um helicóptero e um aeroporto construído com dinheiro público em uma propriedade particular. Cito a cobertura dos “panelaços” nos bairros de classe média alta após o pronunciamento da Presidente no Dia Internacional da Mulher. Não vou nem comentar sobre os “cidadãos de bem” que gritaram “vaca” do alto de suas sacadas neste dia. Sugiro uma análise comparativa na cobertura de manifestações sociais que receberam as dezenas e às vezes centenas de milhares de pessoas que reivindicavam o passe livre no transporte público.
“Vandalismo” e “baderna” também não faltaram naqueles dias de bloqueio de estradas durante a manifestação dos caminhoneiros no Rio Grande do Sul. A cobertura jornalística, nestes dois casos, expôs todo seu maniqueísmo tendencioso reforçando a possibilidade de dividir o todo do eleitorado entre aqueles que estão do lado do bem e aqueles que estão do lado do mal. Enquanto milhares cobravam providências devido a crise no abastecimento de água em São Paulo, o que saiu na imprensaforam atos isolados que reuniram quatro ou seis militares reformados.
Reflitam sobre como a polícia militar aparece nestes casos, violenta e desmedida para a direita e para a esquerda, mas com a ressalva de que quando massacra militantes de esquerda sumariamente tem razão e respaldo. Lembrem como foi o aumento do preço do tomate antes da suba da gasolina em termos de manchetes. Depois disso pensem em como a grande mídia há algum tempo silencia em relação à Marcha das Vadias, mas sempre baixa um editorial requentado na primeira quinzena de março.
Compare como os veículos silenciam em relação à Marcha da Maconha, mas têm a capacidade de escrever um editorial sobre o assunto, não relacionando os benefícios terapêuticos ou sintomáticos da decisão, mas observando os pontos pejorativos como “perdemos o controle”, “os jovens estão fissurados”, “quantas vidas perdemos para o narcotráfico” (narco o quê?), “quanto isto poderia render em impostos”. A cada manchete publicada na editoria de polícia que aponta um acerto de contas entre traficantes por território, um inocente morre como bandido. Se a notícia afirmar que houve conflito entre policiais e traficantes, mais de um inocente morre.
O buraco é mais embaixo. Pensemos a mídia como um vasto e ermo latifúndio. Seis capitanias hereditárias distribuídas pelo território, que representam as maiores fortunas de pessoas físicas no Brasil. A questão agrária é uma demanda importante, e não quero correr o risco de mal comparar a urgência das duas questões. No entanto, é preciso observar que a reforma agrária nunca saiu do papel e cada vez perde mais força, quando o Congresso flexibiliza questões em relação ao meio ambiente e às terras indígenas, sempre favorecendo o lado em que estão os grandes produtores.
Quando falaremos da democratização dos meios de comunicação? Quando discutiremos comunicação pública e concessões? Estes assuntos jamais avançaram via reforma, pois são sumariamente arquivados, revistos em comissões, manobrados para lá e para cá sem se chegar a lugar algum. Via revolução, bom, também não quero falar de revolução e soar piegas ou clichê. Não há mais jeito. O tempo difícil e complexo que se reserva aos brasileiros, como mencionei anteriormente, é o tempo onde é cada vez mais complicado interpretar.
Infelizmente, continuamos a assistir os profissionais da comunicação exercendo diariamente a disfunção social travestida de informação e com selo de “qualidade”, manobrando os eleitores de lá para cá e de cá para lá, sempre colaborando para despolitizar e repolitizar os debates quando necessário. Ao seu próprio tempo. Não se assustem quando ultraconservadores representarem também os interesses das esquerdas, com alguns atalhos diferentes pelo caminho. Não se assustem com o surgimento de um Berlusconi brasileiro.
Mas, por favor, e finalmente, este texto é um pedido para não confundir as palavras “oportuno” com “oportunismo”. Vai um tempo, um rapper brasileiro diz pro povo ficar atento: fique atento, quando uma pessoa lhe oferece o caminho mais curto, fique atento!
[1] Ver Wrigh Mills.
[2] Ver Sérgio Buarque de Holanda.
A (dis)função social da mídia e a disputa por agendas políticas, pelo Viés do colunista Calvin Furtado