Um teto todo seu, de Virginia Woolf, me foi indicado por um amigo, na época eu ainda desconhecia a face ensaísta de Virgínia Woolf. O livro foi difícil de encontrar, acabou chegando emprestado e depois o ganhei. Quando terminei de lê-lo, foi preciso ainda uma semana para conseguir dar uma forma escrita aos meus pensamentos sobre ele. Tive de esperar que o livro se depositasse em mim, assentando com o pó de café que se adiciona à água, e se mexe esperando que ambos se unam. No entanto, há pó demais e água de menos.
Há tanto na Virginia que se apresenta neste livro. Como historiadora, encantou-me as perguntas que ela ousa fazer sobre a vida das mulheres do período elisabethano. Em 1928, data da publicação de Um teto todo seu, ainda não se falava de uma história das mulheres, e Virginia soube intuir as perguntas certas a serem feitas sobre elas. Perguntas que a própria história só muito recentemente começou a fazer. É certo, porém, que suas questões pretendiam responder outra que, em sua época, atormentava as mulheres que ousavam clamar por igualdade: por que, afinal, não houve um Shakespeare mulher? Era isso o que afirmavam os homens intelectualizados de sua época, quando afirmavam que as mulheres não podiam aspirar reconhecimento literário, pois jamais teriam o talento masculino. Jamais tiveram e jamais poderiam ter o talento de um Shakespeare.
Então, Virginia vai tecendo com delicadeza e imaginação as respostas possíveis, pois, em 1928, olhar para trás esperando ver a vida das mulheres era como encarar um corredor escuro. À medida que vai rastreando as pioneiras, Virginia vai apontando as coincidências que as ligavam. Não tiveram filhos. Eram solteiras. Tiveram maridos ou famílias condescendentes e compreensivos. Aos homens bastava ter dinheiro para almejar a literatura. Pouco se fala dos filhos dos gênios literários, mas também poucos balizariam suas obras com a criação de seus filhos. Às mulheres, porém, dinheiro era somente um ponto a superar. Era preciso superar as obrigações de ser mulher.
Dessa forma, acredita Virginia, não é apenas o teto que falta ao pleno desenvolvimento do talento literário das mulheres. Falta, para ela, romper com o que, em sua época, era considerado o destino biológico de todas. Algumas mulheres conseguiram, outras, a maioria, foi sufocada por ele. Não é à toa que seu breve conto sobre a irmã de Shakespeare – que tinha o mesmo talento que ele, que segue uma trajetória parecida, indo à Londres em busca de espaço e reconhecimento – acaba quando esta engravida e resolve se suicidar. Da mesma forma, quando Virgínia imagina porque há poucas doações para os colleges femininos na Inglaterra, a resposta vem em torno do número de filhos da mãe da hipotética professora com quem conversa.
“Ao pensarmos em todas aquelas mulheres trabalhando ano após ano e sentindo dificuldade em reunir duas mil libras, irrompemos numa explosão de escárnio diante da repreensível pobreza do nosso sexo. O que estavam fazendo nossas mães que não tiveram nenhuma riqueza para nos legar? Empoando o nariz? Olhando as vitrines das lojas? Exibindo-se ao sol de Monte Carlo? Havia algumas fotografias sobre a lareira. A mãe de Mary – se é que aquele era o seu retrato – talvez tivesse sido uma esbanjadora em suas horas vagas (teve treze filhos de um pastor da Igreja), mas, se assim foi, a vida alegre e dissoluta lhe havia deixado muito poucos traços de seus prazeres no rosto. Era uma pessoa comum: uma senhora idosa com um xale pregueado preso por um grande camafeu […]. Agora, se ela tivesse entrado para o mundo dos negócios, se tivesse se tornado fabricante de seda artificial ou magnata da Bolsa de Valores; se tivesse deixado duzentas ou trezentas mil libras para Fernham, poderíamos ter nos sentado à vontade esta noite e talvez o assunto de nossa conversa tivesse sido arqueologia, botânica, antropologia, física, a natureza do átomo, matemática, astronomia, a relatividade ou geografia. […] Só que se a Sra. Seton e outra igual a ela tivessem entrado no mundo dos negócios aos quinze anos de idade, não teria havido – e esse era o ponto fraco da argumentação – Mary alguma. […] Pois fazer doações para uma faculdade exigiria a completa eliminação das famílias. Fazer fortuna e ter treze filhos… nenhum ser humano suportaria isso. Examinaremos os fatos, dissemos. Primeiro são nove meses antes de o bebê nascer. Então o bebê nasce. Há então três ou quatro meses gastos na amamentação do bebê. Depois que o bebê é amamentado, há sem dúvida cinco anos gastos em brincadeiras com o bebê. Ao que parece, não se pode deixar as crianças soltas pelas ruas.
A ironia de Virginia inicia com a imagem, tão corrente nos detratores femininos de sua época, que apontavam a vaidade, a superficialidade e a inclinação ao prazer como grande obstáculo a qualquer talento feminino. Somente as mulheres, diziam, podem ser culpadas de suas próprias desgraças. Mas, lembra Virginia ao fim de sua digressão, de que adiantaria ganhar dinheiro para constituir colleges se as leis proibiam as mulheres de possuir algum dinheiro de seu, este devia sempre pertencer e ser gerido por algum pai, marido ou irmão. Por outro lado, presa a sua época, a autora sequer ensaia questionar os papéis de gênero tão colados ao comportamento das pessoas.
É por isso, obviamente, que Virginia não faz nenhuma apologia sobre não se ter filhos para poder escrever, mas ela consegue ver aí um limite, entre tantos, que aumentavam os obstáculos à mulher que quisesse se dedicar à literatura como uma carreira, como um ofício. Caso o superasse, viriam outros que vão além do quarto com chave, das 500 libras e do silêncio – coisas que Virginia considera fundamentais. O principal deles: o olhar dos homens.
Nesse ponto, a ironia da escritora é de uma agudeza extraordinária. Ao mesmo tempo em que critica o ressentimento das mulheres na escritura de seus livros. Ao mesmo tempo em que transcreve um longo trecho indignado com a própria sorte de Charlotte Brönte. Ela passa páginas e páginas falando dos livros escritos por homens com o único objetivo de diminuir a capacidade das mulheres. Aí, ela nunca usa a palavra ressentimento. Tampouco usa o termo literatura para designar tais livros.
Para falar a verdade, não sei se a palavra ressentimento tem o som mais adequado aqui. Acho que ressentimento pode até produzir ótima literatura. Até o ódio pode produzir boa literatura. Reclamações é que não produzem boa literatura, especialmente, por não permitirem que o autor se desloque entre os personagens. Além disso, penso, é preciso entender o que movimenta os personagens contra quem se dirige esse ressentimento. E entender significa concordar com eles no momento em que se escreve. Se não se consegue fazer isso, com ou sem ressentimento, não há literatura.
Há ressentimento no ensaio de Virginia e até reclamação, mas isso não o torna menor ou menos literário. Poderia ser um romance e ainda seria espetacular, mesmo que, a autora admite, ela tenha escrito certas partes com tanto ódio que a caneta quase rasgou o papel.
Ainda assim, com todos esses limites, ainda se foi possível produzir – falando apenas da Inglaterra de Virginia Woolf – uma Jane Austen, uma Mary Wollstonecraft e sua filha Mary Shelley, três irmãs Brönte, uma Aphra Bent, uma George Eliot, etc.
Quando se fala mal do feminismo, das cruzadas anti-racistas e anti-homofóbicas, por vezes, as pessoas esquecem que há uma dor, uma inconformidade, um ressentimento sim, em se receber ódio de graça. Ódio por ser apenas quem você é, por ser quem você não escolheu ser. Quando meus alunos e eu viajamos por outras eras, sempre louvo a nossa e suas possibilidades. Nossas conquistas em termos de tolerância – essa mesma que, em alguns dias, nos parece tão pífia –, nossa felicidade e nossa liberdade e o quanto não devemos abrir mão de nenhuma delas.
É certo que superar as dores de viver não é fácil, nem mesmo para os homens. Quantos fenecem sem conseguir realizar tudo o que podem de seu imenso potencial, por condições várias como a pobreza, o descaso, o abandono. Sem falar nos que cruzam essas fronteiras cada vez mais fluidas entre o feminino e o masculino e são, constantemente, destituídas e roubadas como pessoas do imenso potencial que poderiam desenvolver em prol do mundo. O que quero dizer é que a distribuição das chances de superação dos limites ainda é desigual. Eu adoraria dizer que não é, mas é. Eu gostaria muito de repetir que as pessoas são exatamente como as vejo, valendo por seu caráter mais que por qualquer coisa, mas não é.
Resta um gosto de utopia ao fim do livro de Virginia. Mas, utopias são estradas a serem trilhadas e, como não acredito nem na sorte nem no impossível, aprecio o andar sobre terrenos incultos. Olhem o quanto já caminhamos de Virginia até aqui, e nós mal começamos a andar.
“Um teto para escrever, uma escrita para ser”, pelo viés de Nikelen Witter*.
*Nikelen é Historiadora, pesquisadora do Departamento de História do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA).