A contrapelo das comemorações nacionais espanholas, que no dia 12 de outubro insistem em exaltar a chegada de Cristóvão Colombo às Américas, os povos originários Latino Americanos decidiram disputar o significado desta data histórica, a denominando como o “Dia da Resistência Indígena”. Ficou demarcado assim o brado secular de luta. É a data que simboliza cinco séculos de sangue, massacres e muita dor, que representa o último dia de liberdade, mas também o primeiro dia de uma constante e brava resistência ao processo colonizador que continua vivo e avançando velozmente sobre seus territórios e comunidades.
Em 2014, uma data próxima ao 12 de outubro trouxe similar significado para os mais de 180 povos indígenas brasileiros. Apenas 14 dias depois, em 26 de outbro, foi reeleita presidente do país, a candidata Dilma Rousseff, do PT. É bem verdade que em manifestação contrária a sua reeleição, boa parte da burguesia brasileira tornou pública uma verdadeira e lamentável onda fascista, em especial contra as classes pobres do Nordeste, onde a votação pró Dilma teve números consideráveis. Porém, esta destilação gratuita de ódio sempre esteve longe de representar um possível antagonismo de classe entre o governo de Dilma e as oligarquias nacionais. De bem perto, outra parcela, tão ou mais fascista, e muito mais organizada e perigosa, representada pelos senhores e senhoras do agronegócio, certamente recebeu a notícia com um largo e zeloso sorriso nos lábios. Para os povos indígenas a onda de fascismo e terror apenas recomeça, e, como tudo indica, com ainda mais força do que nos 4 anos anteriores.
Mesmo com o alto malabarismo retórico praticado pelos petistas de base, que insistem até hoje em maquiar as relações criminosas de seu governo com os magnatas do latifúndio, suas evidências são irrefutáveis e vem de longa data. A doação generosa do Governo Federal ao agronegócio, no plano agrícola de 2014/2015, quantificada em mais de R$ 156 bilhões, é um bom exemplo dessa parceria. Já em relação aos povos indígenas, os maiores afetados com a expansão deste modelo genocida de exploração, as manifestações do Governo Federal foram demonstradas na forma da paralização dos procedimentos de demarcação de seus territórios, avanços contra sues direitos constitucionais e a criminalização sistemática de suas lideranças.
Uma série de fatos ajuda a explicitar de que lado se coloca o Governo Federal na disputa agrária entre indígenas e grandes fazendeiros. No início de 2014, Lula, tido entre os petistas como o símbolo de um PT popular e classista, apareceu publicamente ao lado de Blairo Maggi, em um plano escabroso de intensificar as produções de soja transgênica em Cuba. Maggi, orgulhoso, relatava na época como o agronegócio transformou as terras, que denominava imprestáveis, do Brasil Central, em áreas férteis e produtivas. Esquecia ele de mencionar, é claro, que este “avanço” se deu ao custo da vida de centenas de indígenas e da expulsão de povos inteiros de seus territórios ancestrais. A notícia, vale ressaltar, não é advinda nem de jornais da direita nem de panfletos esquerdistas, mas sim do próprio Instituto Lula, e pode ser conferida aqui.
Praticamente um ano depois, em 5 de janeiro de 2015, mais uma grande demonstração dessa aliança. Dessa vez, porém, o golpe é ainda mais descarado, com a nomeação escandalosa de Kátia Abreu como ministra da Agricultura, em um ato solene de desrespeito e deboche público não só com os povos indígenas, mas com todos e todas que tombaram ou que continuam arriscando suas vidas em defesa da luta pela democratização e socialização da terra no Brasil.
Para muito além de correlação de forças, o brado ruralista encontra abrigo junto ao caráter anti-indígena do Governo Petista
Kátia Abreu proferiu todo o seu ardiloso rancor contra os povos indígenas logo após tomar posse. Em um discurso odioso, panfletário e completamente desprovido de verdade histórica, demonstrou o inevitável: que pretende transformar o Ministério da Agricultura em uma extensão do sindicalismo rural criminoso que praticou por toda sua vida. Chegou a dizer, em plena posição de ministra, que a problemática que envolve hoje a demarcação de terras indígenas, se dá porque os indígenas “saíram da floresta e passaram a descer para as áreas de produção”. Pois bem, mesmo que por meio de um brutal assassinato à história do Brasil, a ministra nada mais fez do que se postar como porta voz das posições anti-indígenas e desleais assumidas pelo próprio Governo.
Ainda mais trágica foi a vitória de Eduardo Cunha (PMDB), base aliada do Governo, para o cargo de presidente da Câmara dos Deputados. Tão logo assumiu o mandato, Cunha tratou de desenterrar a comissão especial da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere da União para o Legislativo a competência na demarcação de terras indígenas e possibilita a revisão das demarcações.
No ano passado, com total cumplicidade do Governo Federal, a bancada ruralista, por meio de sucessivos golpes, tentou a todo custo aprovar a PEC 215, inclusive impedindo, via forte guarnição policial, a entrada de representantes indígenas no congresso. O ato proibitivo foi seguido pela prisão arbitrária de 5 lideranças indígenas que manifestavam seu descontentamento em relação ao ataque aberto a seus direitos constitucionais. Graças aos rituais e a força espiritual dos diversos rezadores indígenas, uma grande chuva caiu sobre Brasília. A água foi tanta que transbordou, adentrando o congresso e danificando os circuitos internos. A luz caiu e a votação não pode prosseguir. Era o ultimo dia letivo de 2014.
Pode-se até argumentar que a PEC 215 é uma ação advinda do Poder Legislativo e que cabe exclusivamente ao Congresso, onde se encontra a forte bancada ruralista, a sua aprovação. Porém, a paralisação dos procedimentos demarcatórios é, sem dúvida, uma determinação Federal. E é justamente esta medida que fortalece o posicionamento e as ações dos representantes do agronegócio, em relação a necessidade da alteração do texto constitucional que garante os direitos indígenas.
Porém, se a PEC 215 é uma medida tecida no interior do Congresso, dependendo apenas de aprovação de porcentagem de membros do Senado e da Câmara de Deputados para se efetivar, outro terrível instrumento de desmonte dos direitos indígenas, a Portaria 303, advém diretamente do Poder Executivo, mais precisamente da Advocacia Geral da União (AGU), deflagrando assim o caráter agressivo e participativo do Governo nos ataques aos direitos dos povos originários. A medida é um instrumento que pretende reabrir e rever procedimentos de demarcação de terras indígenas já finalizados. O cenário ficou ainda pior e mais complexo quando, no final do ano passado, decisões advindas da segunda turma do STF – Supremo Tribunal Federal – indicaram a revisão de áreas já demarcadas nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
O esquema agora claramente esta sendo tecido entre as três esferas de poder. Por determinação Federal as demarcações de terras indígenas seguem paralisadas. Enquanto isso, a bancada ruralista e instituições do Governo Federal incidem sobre o poder Judiciário. O resultado são ações políticas e jurídicas que colocam em prática tanto a PEC 215 quanto a Portaria 303 da AGU, garantindo assim as pretensões ruralistas mesmo que estes instrumentos ainda não tenham sido implementados.
Para piorar, o direito constitucional ao território não é o único a estar sendo atacado pelo Governo Dilma. Está em curso, desde o ano passado, um processo de terceirização/privatização do sistema de saúde indígena, através da criação, via poder Executivo, do Instituto Nacional de Saúde Indígena – INSI –, empresa de direito privado que pode ser financiado por empresas ligadas ao agronegócio (Cargil, Bunge, Singenta, Monsanto, New Holland, Massey Ferguson, BRF, JBS-Friboi), à mineração (Vale, Alcoa, Alunorte, CBMM, Namisa, Samarco), empreiteiras (Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Correa, Queiroz Galvão, Grupo OAS…), à geração de energia elétrica (Suez, CPFL, General Electric, Eletrobrás, Eletronorte), e à indústria farmacêutica e cosméticos (Avon, Natura, Boehringer Ingelheim, Pfizer, Eli Lilly & Co., Novo Nordisk A/S, Novartis, Teuto, Neoquímica).
Apesar da posição geral dos povos indígenas pela não aprovação do Instituto, e da manifestação do Ministério Público Federal (leia aqui), sabe-se que a proposta foi encaminhada à Casa Civil. A assessoria jurídica da Casa Civil, que assessora juridicamente a presidenta, fez alguns ajustes de forma e não de conteúdo, e aguardou apenas a reeleição para dar o encaminhamento final a implementação.
Frente a este triste contexto de disputa institucional entre projetos de direita, fica claro que, ao menos para os povos indígenas, o processo eleitoral apenas definiu qual foi o inimigo a ocupar o trono. Tanto Aécio Neves (PSDB) quanto Dilma Rousseff representam, junto ao ruralismo, a mesma mão amiga. Apertam a mão dos mesmos senhores, de forma bastante similar. Dão a estes senhores, sem nenhum sinal de remorso, o pouco que ainda sobrou dos seculares esbulhos acometidos contra os povos indígenas. Estes senhores, donos ilegais das terras por meio do roubo, da violência, do estupro e do genocídio, são nada mais nada menos que os inimigos mais terríveis dos povos originários, bem como também os são para os pequenos do campo e da floresta. Para os povos indígenas a reeleição de Dilma Rousseff, sua traição aos pequenos e sua subserviência ao ruralismo, decretou mais uma vez, entre tantas, o último dia de suas liberdades, e o primeiro dia de sua resistência.
Governo Dilma: cada vez mais radical no ataque aos direitos indígenas, pelo viés de GAPIN.