Entre a ausência e a violência

foto: Tiago Miotto
Rua Vitória, a principal via do loteamento Cipriano da Rocha, à noite. Foto: Tiago Miotto.

Naquela noite quente de sexta-feira, 16 de janeiro, um pequeno grupo de moradores se reunira em uma das casas do Loteamento Cipriano da Rocha, no extremo oeste de Santa Maria (RS). Eles haviam jantado e bebiam cerveja enquanto combinavam um bailinho de carnaval dedicado às crianças da comunidade; eram quase onze da noite quando os moradores do loteamento ouviram os gritos vindos de uma das esquinas da Rua Vitória, a principal da vila. O grupo caminhou até o local – a cerca de uma quadra e meia da casa na qual estavam – onde parecia haver um tumulto.

No momento em que chegaram, contam, havia duas viaturas da Brigada Militar trancando a rua, ao redor de um jovem algemado, ao chão e sem consciência. À volta dos carros, mais ou menos cinquenta pessoas, entre adultos e crianças, observavam o que acontecia. Quando os policiais agrediram duas senhoras e uma moça – mãe, sogra e irmã do jovem detido – os moradores responderam verbalmente, pedindo que a agressão parasse. A partir daí começou a confusão. “As pessoas não se revoltaram pela prisão, mas pela agressão à família do rapaz. A população só começou a reagir com palavras quando bateram nas mulheres”, contou, à revista o Viés, uma das moradoras que presenciou a cena. Ao término do tumulto, várias pessoas haviam sido agredidas, e pelo menos três delas tiveram que buscar atendimento médico.

Moradores contam que, sob gritos de “vocês estão defendendo marginal”, os policiais começaram a distribuir agressões aleatoriamente nas pessoas que observavam o que se passava. A essa altura, outra viatura – do Batalhão de Operações Especiais (BOE) – já havia chegado e se somado ao tumulto.

A partir de então, os policiais teriam se tornado ainda mais agressivos, conforme relatam os moradores da comunidade. Há ainda o relato de que armas de fogo foram apontadas para a multidão.

Policial Ferido

Conforme os moradores envolvidos na ocorrência trataram de ressaltar com ênfase e diversas vezes, em primeiro lugar, apenas acompanhavam a prisão do rapaz, sem interferir. Apenas após a agressão às três mulheres, segundo as pessoas ouvidas pela redação do Viés, que a população teria se manifestado, repudiando a ação da polícia exclusivamente de maneira verbal.

Conforme o major Cleberson Bastianello e o capitão Frank Hernani Schweinitz, do BOE, o batalhão especial chegou ao local apenas após a solicitação de um apoio operacional, um reforço às primeiras duas viaturas da Brigada Militar, que já estavam no local. Chegando lá, a situação era, segundo as palavras do major, bastante “hostil”, e já havia um tumulto iniciado pelo “clamor público”. Contudo, nesse cenário de tensão, as agressões físicas também teriam ocorrido por parte dos civis ali presentes, sendo que um soldado teve sua mão quebrada na ocasião e segue afastado do serviço.

Segundo os oficiais do BOE, o soldado ferido registrou ocorrência e os responsáveis devem ser apurados, em processo que passa, agora, às mãos da Polícia Civil. Já no que toca à investigação de possíveis excessos por parte dos militares, esse é um processo que apenas quem poderia responder seria o comando da Brigada Militar, e não o BOE. Da parte dos civis, os moradores afirmam que algumas pessoas registraram ocorrência a respeito das agressões sofridas, informação que o major Bastianello e o capitão Hernani questionam, já que afirmam não terem visualizado nada no sistema de informações da polícia.

Legenda
Schweinitz e Bastianello, do Batalhão de Operações Especiais. Foto: Gregório Mascarenhas.

Cidadão Ferido

No sábado seguinte ao tumulto, A.*, morador do loteamento, participaria de um curso de segurança da empresa de telefonia em que trabalha. No curso, teria que subir em postes e praticar outras atividades ligadas ao seu trabalho. Em função das agressões, não pôde comparecer. Ele sofreu diversas escoriações no corpo e no rosto, e seus olhos mal abriam no dia seguinte. “Levantei os braços para cima e disse ‘eu só estou olhando’. Ele me disse ‘isso aqui não é teatro, vagabundo’, e me agrediu muito. E ainda me chamou de vagabundo, sendo que só na mesma empresa já trabalho há mais de cinco anos”. Na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), onde foi junto com vizinhos e vizinhas buscar atendimento, conta que reencontrou os policiais e foi alvo de deboches.

Nem todas as pessoas agredidas pela polícia no tumulto do dia 16 registraram ocorrência, por medo de perseguição e represálias. O próprio A. conta que, depois de voltarem da UPA, foram seguidos por alguns instantes por uma viatura que passou por suas casas, devagar, com todas as luzes apagadas. Além disso, os moradores afirmam que, depois do ocorrido, a polícia tem passado com  mais frequência nas ruas da comunidade, e que se sentem intimidados.

imagem, cedida por um morador (que, por segurança, prefere não ter seu nome identificado), registra os ferimentos sofridos em seu rosto em função das agressões policiais

“Nem animal deveria ser tratado daquele jeito”

Algumas horas antes, ainda naquela sexta-feira, no Parque Pinheiro Machado, bairro vizinho ao Cipriano da Rocha, trocas de tiros foram presenciadas em um conflito envolvendo menores de idade. A polícia, após o ocorrido, foi ao loteamento para procurar os envolvidos na ocorrência. Depois de capturar um dos jovens que participaram do tiroteio, os policiais teriam invadido uma casa e capturado outro rapaz sob a mesma alegação.

A confusão teria começado quando o segundo jovem detido já estava no chão, algemado, e sua sogra debruçou-se sobre ele para ver se estava consciente. A mulher teria sido agredida e chegou a desmaiar, o que despertou a indignação da vizinhança.  “A população começou a se aglomerar, porque viram a atitude dos policiais com as mulheres que estavam ali e com o rapaz que já estava até detido. Eles estavam batendo no rapaz. As pessoas começaram a olhar, e eles apontando arma, falando pra ninguém chegar perto. Revoltaram-se não por terem prendido o rapaz, mas pela forma e atitude que eles agiram com a mãe, com a sogra do rapaz, que acabou desmaiando. Bateram em outras mulheres também, na mãe do guri, na irmã do guri. Por isso que a população se revoltou, porque não é forma de abordagem policial. Ninguém é bicho pra ser abordado daquela forma. Nem animal deveria ser tratado daquele jeito”.

No dia em que a reportagem do Viés conversou com os moradores do loteamento, o rapaz que desmaiou por causa das agressões sofridas já estava de volta à sua casa: fora preso por engano e não tinha participado do tiroteio no Pinheiro Machado.

Para uma das moradoras entrevistadas e que também foi agredida, a atitude da polícia, ao invés de controlar o tumulto, tornou-o ainda maior, e as agressões provocaram surpresa e indignação. “Eu entrei  em choque, porque a gente não espera, né. A gente não espera isso de uma autoridade. Desacato da minha parte não houve, porque se fosse desacato eles me levariam presa, dá cadeia. Ninguém foi preso por desacato. Eu e meu cunhado fomos agredidos por estar ali olhando. Eles não queriam que ninguém estivesse ali olhando a covardia deles, entendeu? Então saíram espancando, batendo mesmo. A população em nenhum momento agrediu ninguém. Eles estavam todos com arma, não tinha nem como chegar perto. Se tivessem agredido o policial também, ele teria levado a pessoa presa. Por que ele não levou se agrediram ele? Eles poderiam botar respeito, mandar embora, mas se aglomeraram e fizeram mais tumulto ainda”.

Questionados sobre o porquê de um soldado alegar ter sido ferido em serviço por um civil e, em contrapartida, ninguém ter sido detido em flagrante pelo ato (que inclusive caracteriza um crime), os policiais do BOE afirmam que agiram sob uma premissa de “custo e benefício”, na qual a situação ficaria ainda mais delicada se mais pessoas fossem presas. “Sim, se tu consegue identificar (o correto seria prender), mas existe aquele binômio razoabilidade e proporcionalidade, e em alguns momentos a gente precisa reavaliar. Deveria ter sido buscado o responsável, só que pelo horário, luminosidade, circunstâncias, eu acabaria machucando mais pessoas”, alega o capitão Hernani.

Outro aspecto do tumulto que indignou os moradores foi terem sido acusados de estarem defendendo ou tentando resgatar da prisão o rapaz que desmaiou, além de sofrerem preconceito. “Eles julgaram a população como vagabundos, isso e aquilo, mas a maioria aqui é trabalhador. Aqui a gente sempre procura nosso direito, sempre pelo certo. Não teria nem como a gente acobertar o guri, porque ele já tava algemado, sendo agredido algemado. E com arma, quem é que vai chegar perto? A população viu tudo de longe e só se aglomerou, só começou a reagir com palavras, perguntando se aquilo era normal, quando foram as mulheres agredidas, mãe, sogra e irmã. Daí sim, porque o rapaz tava desmaiado e a família queria saber o porquê daquilo ali”.

Em julho de 2013, manifestação no loteamento Cipriano da Rocha pedia, entre outras coisas, o término da construção da creche da comunidade. foto: Tiago Miotto

Do Estado, só as forças policiais

Ao contrário do que costuma pensar boa parte da população do centro da cidade – em grande medida por conta de um certo jornalismo que só vai às periferias (ou fala sobre elas) quando o assunto é a criminalidade –, na maior parte do tempo, o Loteamento Cipriano da Rocha é uma vizinhança tranquila. Quando o Viés foi até lá, no final da tarde de uma quinta-feira, crianças brincavam livremente nas ruas e famílias tomavam mate e conversavam em frente às casas.

Concebido dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e destinado a famílias de baixa renda e em condições de vulnerabilidade social, o loteamento Cipriano da Rocha é hoje residência de 543 famílias, formando uma população composta por muitas crianças e mulheres chefes de família, em grande parte negras e negros.

Ainda que o loteamento tenha quase sete anos, os problemas de infraestrutura seguem os mesmos desde a construção das casas: ausência de regularização fundiária – que é um enorme problema na vida dos moradores, impedindo-os de ter um endereço formal –, a pouca regularidade dos ônibus que vão até lá e a inexistência de qualquer espaço público de lazer. “Estamos aqui há sete anos. Não pagamos imposto aqui da casa, não temos documentos, não podemos fazer nada. Mas se nós chamamos, eles não vêm aqui. Quantos loteamentos já tem aí, tão todos acabando de pagar? E aqui não tem nem documento”, reclama um dos moradores entrevistados. Além da insegurança, ele também conta que, quando teve que fazer uma conta em um banco para receber o pagamento de seu emprego, esperou 60 dias até conseguir o cartão, pois a ausência de endereço formal inviabiliza o trabalho dos Correios.

A creche da vila, também oriunda dos recursos do PAC, é um símbolo do descaso ou da incompetência do Estado com essa parte da cidade. Não está pronta até hoje. Com a construção iniciada em 2011 e interrompida em 2013, o espaço que deveria atender a 250 crianças voltou aos noticiários locais em janeiro de 2015 porque a licitação da obra de conclusão do prédio – que tem somente as paredes e parte do telhado concluídas – foi declarada deserta, ou seja, nenhuma empresa se interessou em seguir a construção. Por enquanto, boa parte dos moradores levam os filhos a uma instituição no bairro Tancredo Neves, mas as vagas se esgotam rapidamente. Uma moradora contou-nos que precisou deixar o filho na casa de sua mãe, em outro bairro, pois as vagas na escola mais próxima tinham acabado e ela tampouco poderia pagar passagens de ônibus diariamente para a criança ir e voltar.

Nesse ponto, no que toca a omissão e o descaso, as reivindicações dos moradores encontram eco até mesmo nos oficiais do BOE, que reconhecem a situação delicada dos moradores da região. “O Estado só sobe lá fardado”, aponta o capitão Hernani.

Das autoridades, só as promessas

Nei d’Ogum, morador do Cipriano da Rocha e  membro da comunidade de terreiro Ilê Axé Ossanha Agué, localizado no loteamento, conta que no ano passado foi realizada uma reunião com autoridades locais para tratar dos problemas da comunidade. “Seis meses atrás, a associação comunitária chamou a Prefeitura e a Câmara de Vereadores. Vieram todos os vereadores, Secretaria de Educação, Secretaria de Saúde e Secretaria de Habitação, e foi toda a comunidade em peso. Foi uma reunião muito grande, em que falamos todos os problemas que temos, dos mínimos aos maiores: do ônibus, do correio, da estrutura e da regularização das casas, das rachaduras, dos problemas de instalação elétrica, as bocas de lobo entupidas”.

As soluções começariam em 60 dias, mas, 180 dias depois, nenhuma providência podia ser notada. “Da mesma forma, dois anos atrás outra reunião assim ocorreu. Há um descaso, e pensamos que isso influencia a comunidade: ninguém se importa com a gente, não tendo ônibus com regularidade, não tendo lazer, não tendo nada, a gente fica com a auto-estima muito baixa, e cada vez fica pior. Faz sete anos que vou e volto da T. Neves a pé”.

“Felizmente não acabou em morte, mas poderia ter acontecido. Somos uma comunidade pobre, com famílias de baixa renda, que estavam em vulnerabilidade social ou em áreas de risco, composta por muitas mulheres chefes de famílias e negros e negras. Tivemos já nos dois últimos anos duas mortes, de um jovem e de uma jovem negra na comunidade. Os crimes foram relacionados ao tráfico, e sim, de fato, estavam. Mas são vidas interrompidas devido a uma estrutura conjuntural que empurra pra isto. Sem ônibus, sem creche, sem lazer, sem emprego, sem nada” Nei d’Ogum

Enquanto o tumulto ainda ocorria, uma postagem no Facebook que denunciava as agressões teve grande repercussão, envolvendo muitas pessoas que perguntavam sobre a situação discutiam e esperavam por notícias.

foto: Tiago Miotto
Rua Vitória, no loteamento Cipriano da Rocha. Foto: Tiago Miotto.

E o preconceito

Durante a Semana da Consciência Negra de 2014, o Terreiro Ilê Axé Ossanha Agué, em conjunto com outras organizações, realizou em Santa Maria a Marcha contra o genocídio da juventude e do povo negro, protestando contra o altíssimo índice de homicídios de jovens no Brasil, dentre os quais 77% das vítimas são jovens negros, e muitos deles assassinados pela polícia em crimes quase nunca esclarecidos.

Para Nei d’Ogum, a situação ocorrida no loteamento Cipriano da Rocha na noite do dia 16 de janeiro também tem relação com o chamado “racismo institucional”, ou seja, o racismo que faz parte das estruturas do Estado, naturalizado, e se reflete nas ações e práticas das instituições – como a polícia – em comunidades periféricas e com grande população negra, como o loteamento Cipriano da Rocha.

Em novembro de 2013, contam os moradores, durante uma ação de reintegração de posse, o Batalhão de Operações Especiais fechou a Cipriano da Rocha: ninguém poderia entrar ou sair do loteamento. Muita gente que não tinha qualquer relação com o ocorrido perdeu o dia de serviço.

Acabou carnaval

Os entrevistados citados no começo da reportagem – aqueles que combinavam o bailinho e tomavam cerveja em uma das casas da vila – fizeram questão de pontuar que são trabalhadores honestos e que as pessoas de lá também se divertem como em qualquer outra parte da cidade; não são “vagabundos”, conforme a definição dos policiais. “O único conflito aqui, quando nos reunimos, é por qual tipo de música vamos ouvir. Os mais novos querem funk e os mais velhos, bandinha”, brincou uma moradora.

Contudo, infelizmente, o bailinho de carnaval que era planejado na noite do dia 16 de janeiro acabou sendo cancelado. A atividade, que traria algum divertimento para as crianças do local, precisaria da autorização da prefeitura e de acompanhamento da Brigada Militar. Depois das agressões e do pânico daquela noite, os moradores desistiram da ideia. “Como é que tu vai contar com a polícia numa hora dessas?”, questiona uma de nossas entrevistadas. “Quando as crianças verem a polícia, vão sair correndo, porque elas têm medo da polícia agora. E se tu correu é porque tu deve. É assim que eles pensam”.

 

Entre a ausência e a violência, pelo viés de Gregório Mascarenhas, Nathalia Drey Costa e Tiago Miotto, com colaboração de Rafael Balbueno

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