Chega o começo do ano e a história é quase sempre a mesma em Santa Maria: os empresários do transporte reclamam do preço da tarifa, a mídia local começa a justificar o aumento, a prefeitura faz o cálculo da tarifa e chega ao mesmo resultado dos empresários (“a passagem precisa subir”), o Conselho Municipal de Transporte (CMT) aprova o cálculo – e, por consequência, o aumento na tarifa -, e o prefeito, por sua vez, posa de compreensível concedendo poucos centavos abaixo do pedido inicial feito pelos empresários, justificado pela mídia, calculado pela prefeitura e aceito pelo CMT. Assim ocorreu em 2012, 2014 e, ao que tudo indica, ocorrerá em 2015. Abaixo listamos 10 motivos muito simples para ser contra esse aumento na tarifa de ônibus.
(AVISO: a revista o Viés já tratou de questões como direito à mobilidade urbana, já cobriu as manifestações ocorridas na cidade e teríamos muitos outros motivos para dizer não a mais um aumento. Esse artigo, no entanto, pretende usar principalmente elementos econômicos e as incongruências da própria planilha, questões pouco tratadas e debatidas na cidade)
1 – Se seguisse inflação dos últimos dez anos tarifa estaria em R$2,57
Há dez anos, em janeiro de 2005, a tarifa do transporte público em Santa Maria custava R$1,50. Dez anos depois, a inflação acumulada no período foi de 71,34%, segundo dados do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, o IPCA de janeiro de 2015 (última atualização disponível). De acordo com o índice, a tarifa chegaria, em janeiro de 2015, aos R$2,57 – 3 centavos abaixo do valor atual da tarifa, reajustado no mesmo período do ano passado. Veja abaixo como ficaria ano a ano o preço da tarifa segundo a inflação no período e o valor real praticado na cidade.
2 – Passagem a 2,95 representa maior aumento em dez anos
Os dados também mostram que, com a tarifa em R$2,95, não só seria o maior aumento em números absolutos (nunca houve aumento acima de R$0,25 de uma só vez, o maior foi de R$1,10 para R$1,35, em 2003), como também o maior aumento proporcional da tarifa nos últimos dez anos. Ou seja, além do fato de que o aumento da passagem nunca chegou ao patamar de R$0,35 de uma só vez, esse aumento pode representar o maior reajuste proporcional da última década. Até aqui o maior reajuste proporcional ficou em 12,5%, quando a passagem passou de R$1,60 para R$1,80, em 2006. Agora, com a passagem em R$2,95, o aumento proporcional seria de 13,4%.
3 – Diesel aumenta participação no preço da tarifa, mas subiu abaixo da inflação nos últimos dez anos
Segundo dados do Anuário 2013-2014 da Associação Nacional das Empresas de Transportadores Urbanos (NTU), a proporção do gasto com combustível passou de 10,3% em 1998 para mais de 25% em 2008. Mas, de lá para cá, o patamar seguiu praticamente estacionado nessa proporção, variando de 22% a 30% dos custos – isso porque o óleo diesel, diferentemente da tarifa, subiu abaixo da inflação nos últimos dez anos. Dados da Agência Nacional de Petróleo (disponíveis aqui), que regula o setor de combustíveis no país, apontam que o óleo diesel custava em média R$1,69 em janeiro de 2005. Hoje, o mesmo litro é vendido na média de R$2,60. Isso representa um aumento de 53,8%, abaixo do acumulado da inflação no mesmo período (71,34%, segundo o IPCA).
4 – Trabalhadores tiveram reajuste acima da inflação, mas salários desvalorizam
Nos últimos oito anos o salário dos trabalhadores no setor de transporte subiu acima da inflação. Os acordos assinados entre o Sindicato dos Trabalhadores e Condutores de Veículos Rodoviários de Santa Maria e Região (Sitracover), sindicato que representa a categoria na região, e a Associação dos Transportadores Urbanos (ATU), em julho de 2007 (dado mais antigo disponível no site do Sitracover), informam que um motorista ganhava R$1240,00 entre salário e ticket alimentação. Sete anos e meio depois, o piso salarial, mais o ticket alimentação, de um motorista antes do aumento é de R$2060,00. Se apenas repusesse a inflação, os vencimentos estariam abaixo disso, em R$1909,30.
No entanto, a categoria não deve ter muito que comemorar. Diferente de parte considerável dos trabalhadores, os funcionários do transporte em Santa Maria tiveram um aumento real pouco expressivo – o aumento real é a diferença entre o reajuste necessário para abater a inflação e aquilo que o trabalhador realmente recebeu de aumento, quer dizer, se o aumento de salário for de 5%, mas a inflação for de 4%, o aumento real é de 1%. Nos últimos sete anos e meio o Brasil esteve por diversas vezes entre os países com maior aumento real de salário de todo o mundo. Ou seja, foram diversos os setores e diversas as categorias que passaram a ganhar melhores salários na prática, já descontada a inflação no mesmo período, e em patamares bem superiores aos reajustes dos trabalhadores do transporte em Santa Maria.
Segundo o Relatório Global sobre Salários 2012-2013 da Organização Internacional do Trabalho (disponível aqui), os aumentos reais no Brasil chegaram a 3,8% em 2010 e 4,1% em 2012. Com aumentos nessa faixa, a média brasileira, o salário (mais benefícios) de um motorista seria de R$2225,49 um ano atrás (em janeiro de 2014, último dado disponível do percentual de aumento real no relatório). Em acordo coletivo assinado há uma semana entre Sitracover e ATU, o salário mais benefícios do motorista passam a ser de R$2242,00 com o aumento da tarifa. Isso significa que os motoristas ganharão somente agora um salário de R$18,00 a mais do que ganhariam durante todo o ano de 2014, caso fossem valorizados no mesmo nível da média nacional.
Os funcionários do transporte também viram seus salários serem desvalorizados com relação ao salário mínimo. Em julho de 2007 um motorista ganhava R$1240,00, entre salário e ticket alimentação. Na mesma data o salário mínimo no país era de R$380,00. Sete anos e meio depois, o piso salarial acrescido do ticket alimentação de um motorista é de R$2060,00, enquanto o salário mínimo passou para R$724,00. Assim, os vencimentos de um motorista, que correspondiam a 2,7 salários mínimos passaram a ser de 2,35 salários mínimos. Apesar de parecer pequena, a diferença é considerável no final do mês: se os vencimentos atuais de um motorista tivessem crescido na mesma proporção do salário mínimo, o valor seria de R$2362,50, R$120,00 a mais do que o acordado entre Sitracover e ATU na semana passada.
5 – Licitação do transporte, prevista desde 1988, não tem data para sair do papel
Apesar de explorarem um serviço público, os empresários do transporte em Santa Maria nunca passaram por um processo licitatório para tal fim. O transporte urbano, assim como todas as concessões públicas a entes privados, deve passar por uma licitação – um processo mais transparente (pelo menos em teoria). É isso que prevê desde 1988 a Constituição Federal. No entanto, se utilizando do fato da cidade nunca ter tido um Plano Diretor de Mobilidade Urbana, prefeito após prefeito preferiu manter – e até renovar – a licença dada aos transportadores para explorarem o serviço na cidade. O Plano finalmente saiu do papel no ano passado. Porém, outra justificativa surgiu: a implementação do sistema BRT (Bus Rapid Transit), um projeto ligado ao governo federal e com verbas do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). O secretário municipal de mobilidade urbana, Miguel Passini, foi enfático alguns dias atrás em um veículo da mídia local: enquanto o BRT não sair não existe pressa para licitar o transporte. Claro, quem se importa com um atraso de quase trinta anos?
6 – Na capital vida útil de pneu é quase o dobro que em Santa Maria
Segundo a 3ª edição do “Manual do Cálculo da Tarifa de Ônibus de Porto Alegre” (em .pdf aqui), feito pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), empresa ligada à prefeitura da capital e que é responsável pela mobilidade urbana da cidade, um pneu é capaz de circular 228.046 km, considerando duas recapagens. Essas são as mesmas condições descritas pelo cálculo da tarifa em Santa Maria, porém o índice usado no cálculo aqui é de que o pneu teria 120.000 km de vida útil, pouco mais da metade. E esse valor já foi até menor na cidade. No ano passado, a vida útil calculada na planilha foi de apenas 90.000 km.
7 – Seguro da frota calculado em 2015 é doze vezes maior que valor de 2014
Um dos valores com alteração mais significativa na comparação entre as planilhas de custos do transporte em 2014 e 2015 é o chamado “Seguro de Responsabilidade Civil da Frota Total”. Em 2014, o valor era de R$24.261,86. Já em 2015 o valor assinalado é de R$296.042,76, mais de doze vezes superior. Segundo as notas explicativas que acompanham a planilha desse ano, o seguro “RCF”, como é chamado no texto, se baseia em “proposta de seguro RCF da BR Corretora de Seguros”. Ou seja, segundo as notas explicativas da própria prefeitura esse valor figura como proposta, e não como contrato firmado. Ainda que represente valor pequeno no resultado final, o número assusta pela diferença entre planilhas, com apenas um ano de distância entre elas.
8 – Nota explicativa fala em economia no índice usado para calcular lubrificante, mas o valor mais que quadriplica de um ano para outro
Em nota explicativa que acompanha o cálculo, assinada pelo Secretário Municipal de Mobilidade Urbana, Miguel Passini, há uma série de índices que são justificados, como o coeficiente do combustível e do lubrificante, por exemplo. No caso dos lubrificantes, diz a nota: “índices obtidos junto a Planilha de Custos de Porto Alegre, aferida e julgada pelo TCE-RS em 2014, que indica economia para os usuários do transporte público de Santa Maria”.
A realidade, porém, não mostra economia. Em 2014, o índice usado era de 0,0060. Agora, o índice é de 0,0222. No cálculo final da tarifa, os lubrificantes, que respondiam em 2014 por 0,2665% do valor da tarifa, passaram a ter 1,0216% em 2015.
É curioso notar ainda que dois índices – o de lubrificantes e o de combustíveis – se adaptaram ao valor proposto em Porto Alegre. Já a autonomia dos pneus, por exemplo, não mereceu ser também indicada como “economia para os usuários do transporte”.
9 – Índice de Passageiros por quilômetro cai, mas ainda é bem superior à média nacional
O Índice de Passageiros por quilômetro é um dado obtido através da planilha. A partir do cálculo de passageiros (com e sem desconto), junto da rodagem e do tamanho da frota é que se chega a quilometragem percorrida, ao percurso médio mensal e, finalmente, ao Índice de Passageiros por quilômetro (IPK). É esse índice que, no final do cálculo, divide o custo total (já considerando tributos) e fornece o valor da tarifa correspondente (assim, se o custo total for 4 e o IPK for 2 o valor da tarifa seria de R$2,00). O IPK demonstra há anos estar em queda em todo o Brasil e também em Santa Maria (de 2014 para 2015 o índice caiu de 1,982 para 1,949 segundo a planilha da prefeitura). No entanto, o IPK de Santa Maria é bem acima da média das grandes cidades brasileiras. Segundo dados da NTU, o IPK médio das cidades de Belo Horizonte, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo era de 1,63 em outubro de 2013. Em Santa Maria o IPK da planilha de 2015 é bem superior, de 1,94. Como mostra o gráfico, desde abril de 1998 a média nacional calculada pela NTU está abaixo desse valor.
10 – Ou seja…
Mesmo concedendo aumentos salariais abaixo da média nacional, mesmo sem ter visto o diesel subir acima do acumulado da inflação nos últimos dez anos, mesmo tendo aumentado a passagem por diversas vezes acima da inflação e mesmo estando em situação melhor do que muitos transportadores no país, o cálculo da tarifa em Santa Maria é sempre para cima. E, do jeito que as coisas caminham, não há horizonte de melhorias por dentro do atual sistema. Só uma mudança geral pode tornar o transporte público não uma catraca, mas um direito.
Mais aumento eu não aguento!
Notas sobre o transporte público – 10 motivos para ser contra o aumento da tarifa em Santa Maria, pelo viés de João Victor Moura