Estudante clandestino, pensamento ilegal

Era um dia qualquer. Há dois anos um novo governo havia sido eleito e trazia reformas populares. Para ela parecia um bom momento político no país. Acordou, cumpriu com sua rotina. Pela tarde, leu as notícias e ouviu rumores de instabilidade. Sabia que o mês de março, naquele ano, tinha sido conturbado. Não alimentava crenças de mudanças que rumassem pro lado contrário. No entanto, mal imaginava que na noite do dia 1° de abril a história política do país começaria a viver, por 21 anos, uma ditadura militar.

Ela está viva na memória. E foi nas ruas que viu a história contar a barbárie. Em algumas noites, se organizava. Nas tardes, protestava. Esteve algumas vezes enclausurada pela repressão. Presenciou a covardia humana em salas de confessar o pecado dos militares. Lá, a tortura não sentia vergonha. Mas ela resistiu e venceu. A juventude brasileira provou à própria história, a força que sua organização tem. Ela, de fato, pode transformar uma sociedade. No país inteiro estudantes se organizaram em coletivos e partidos para redemocratizar a política brasileira.

Nas décadas de 60 a 80, a América do Sul viveu sob conflitos de regimes militares. No dia 1° de abril de 1964, o Brasil sofreu um golpe que instaurou um regime ditatorial e durante 21 anos impôs sobre a população brasileira uma política de não representatividade. A maior peculiaridade da ditadura no Brasil foi ela ter sido civil-militar, isto é, ter tido o apoio de uma parcela da população para que se instaurasse. Essa parcela era representada pela elite brasileira que, em alguns momentos, ainda manifesta – mesmo que timidamente – a vontade da volta do regime militar.

Tanto no movimento estudantil quanto em movimentos de rua, ainda hoje, a direita acusa a participação de partidos políticos em passeatas e despolitiza o debate ao apontar militância partidária nas universidades. Isso é resquício da ditadura militar. A ex-militante estudantil Ligia Maria Chiarelli, conhecida como Biloca, lembra que o regime proibia organização partidária. Os partidos existiam, mas eram clandestinos. Para evitar confrontos com a repressão e, com isso, tortura e prisões, “os partidos clandestinos não filiavam militantes, não recrutavam – como diziam na época -, pois era um risco pra quem recrutava e pra quem estava sendo recrutado. Era um momento, ainda, de grande repressão e havia muitos militantes fora do país, exilados”, afirma Biloca.

No Brasil, a discussão sobre a ditadura militar começou a surgir de maneira mais presente em 2012, quando foi criada a Comissão Nacional da Verdade, com mandato para investigar violações dos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988.

Em 2014, o debate ressurgiu fortemente, pois “o fato de ter os 50 anos do Golpe, por ser um ano simbólico, deu visibilidade a essa discussão”, afirma Renato Della Vecchia, professor de Ciência Política da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e sócio fundador do Instituto Mário Alves (IMA). O IMA, localizado em Pelotas, é um Instituto de estudos políticos que mantém, desde 2001, um trabalho sem fins lucrativos voltado aos movimentos sociais e políticos e a temáticas combativas. Além disso, desde 2011 é responsável por um projeto que tem como um dos objetivos a veiculação de entrevistas feitas com ex-militantes do movimento estudantil gaúcho nas décadas de 70 e 80.

De um reencontro de ex-militantes surgiu o interesse pelo resgate da memória histórica do país e da história dessas pessoas que, juntas, lutaram no Rio Grande do Sul pela mudança no Brasil.

As viagens feitas ultrapassavam a estrada. Particularmente, conheci mais detalhadamente a crise com o regime militar, as angústias do movimento estudantil e a luta política corajosa de muitxs brasileirxs. Para Renato, era necessário “em algum momento fazer esse resgate. Buscar minimamente organizar em alguns depoimentos que pudessem dar conta da visão geral do que foi esse período e qual a importância que o movimento estudantil teve no contexto da redemocratização do país”. O tema é também tese de doutorado de Della Vecchia, que mapeou organizações e militantes do Estado, retomando detalhadamente a história para registrá-la.

Entrevista piloto no Instituto Mário Alves (IMA). Foto: Eliane Rubim.

Para a filósofa e escritora Eliane Rubim, também coordenadora do projeto, “é importante entender como se dava essa organização entre os jovens e o que os levava a estar, de alguma maneira, confrontando a realidade que estava posta”. Além disso, ela faz uma reflexão sobre as mudanças reais que tivemos após a redemocratização, como o movimento estudantil passou a se organizar e qual o sentido e lutas passou a ter após a queda do regime militar. “O capitalismo foi se infiltrando e se apoderando desses espaços de juventude para transformar esses guetos, que poderiam ser guetos de revolta, virar guetos de alienação e acomodação”.

Em 1980, o Partido dos Trabalhadores foi fundado. Além dele, outros partidos como o Partido Comunista Brasileiro, conhecido como Partidão, e o PCdoB eram as organizações institucionais mais presentes na vida de estudantes na época da ditadura militar. O PT teve forte representação, sendo o norte de diversos coletivos. Acreditavam que com a redemocratização era preciso um partido de massas e revolucionário. No entanto, a política brasileira mais uma vez surpreendeu àquelxs que viam sempre no horizonte a transformação social com ideais de esquerda.

As reviravoltas políticas no Brasil nos provaram que houve forte organização de combate à censura e à repressão. No entanto, as decisões políticas advindas da população não mantiveram o caráter progressista do movimento contra a ditadura. Após a redemocratização,  a primeira eleição presidencial colocou um ex-membro da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que apoiou os militares na ditadura, no poder. Posteriormente, um representante de um partido (PSDB) contrário às visões progressistas foi eleito.

Passados 14 anos da redemocratização, o Partido dos Trabalhadores enfim se apoderou da presidência. E desde então tem caminhado com a correnteza. O PT foi um partido de importante atuação ao lado da juventude no combate ao regime ditatorial, mas suas políticas têm sido repressoras nos últimos anos. A política de pacificação nas favelas mantém um caráter repressor e de higienização social. Além da repressão e perseguição policial a manifestantes em todos os Estados brasileiros. Ressignificou-se democracia colocando como parâmetro o passado e escondendo as favelas.

Num dos relatos contados, o entrevistado – na época estudante de agronomia na UFRGS – lembra o dia em que começou a questionar a situação política no país. O estudante estava na rua, em Porto Alegre, escutando rádio com um amigo, quando a polícia os parou e os levou à delegacia para ter certeza de que não eram comunistas. Ao passar por corredores, já indo embora, avistou pessoas acorrentadas. A dúvida daquela cena lhe fez perceber o regime militar e o fez caminhar para combatê-lo.

Poucxs dxs entrevistadxs relataram momentos em que foram torturadxs. Muitxs contam sobre repressão policial em atos de rua ou quando havia policiais infiltrados em reuniões e xs levavam presxs. Um dos últimos relatos foi marcante e o entrevistado pediu para que parássemos as gravações, pois nunca conseguiu falar sobre o momento que desencadeou sua militância.

Na sala da sede da Confederação dos trabalhadores da Alimentação de Porto Alegre, a equipe estava toda posicionada. Cada pessoa em uma cadeira, em silêncio, atenta às falas dxs entrevistadxs que por lá passaram naquele final de semana quente. Os equipamentos posicionados só foram retirados no dia em que nos despedimos da capital. Na tarde de sábado, estávamos à espera daquele que havia militado na organização estudantil “Unidade” em Pelotas. Após algumas perguntas e uma conversa tranquila e descontraída, chegou a vez da pergunta que sempre desvendava um fato íntimo. A cadeira do entrevistado ficava encostada na parede branca e, com a iluminação, acreditávamos aquele espaço ser o melhor para o vídeo. A entrevistadora, Daniele Rehling, sentou à sua frente, fora da visão da filmadora. E, lhe perguntou:

– Qual foi o momento que desencadeou teu interesse pela militância? – Calmamente, ele respondeu:

– Comecei minha militância em 75 quando a minha casa foi invadida e o meu irmão, preso. – As palavras foram ficando mais distantes umas das outras. A fala pausada e triste avisava que havia dor na memória. – No dia, a polícia entrou…

E então se fez silêncio. Ao fundo do áudio é possível ouvir o Renato: “corta!”.

– Eu não consigo falar sobre isso – avisou o entrevistado e, nós, em silêncio, atônitxs, confusxs.

– Quer uma água? – pergunta Renato.

– Não, eu só não consigo falar sobre isso. Nunca consegui falar sobre isso. – E pediu para que cortássemos do vídeo essa parte. Ele rapidamente deixou escapar algumas lágrimas e, por fim, relatou: – mas, enfim, pra vocês saberem, meus pais apanharam.

E a gravação foi cortada. Era compreensível, precisávamos pausar e recomeçar.

A história não foi pausada para um recomeço. Para redemocratizar a política brasileira muitas pessoas morreram, foram torturadas, se arriscaram, se exilaram.

Numa das páginas de Galeano ele põe a si e a quem lê o questionamento: “escrever tem sentido?”. E, adiante, supõe: “talvez escrever não seja mais que uma tentativa de pôr a salvo, em tempos de infâmia, as vozes que darão testemunho de que aqui estivemos e assim fomos”. O resgate da memória do movimento estudantil gaúcho é a tentativa de pôr a salvo a lembrança da ditadura para que não se repita. Mas também para lembrar quem nos salvou de um regime que a América Latina assistiu de perto em todos os seus cantos. O sul do continente foi subordinado do norte, que financiou a tortura. Nós estamos, historicamente, resistindo à dominação imperialista incansável, porém, combatível.

Diversos resgates foram feitos. Alguns amplos, em que envolviam organizações e partidos políticos. Outros, mais pessoais. Alguns, específicos. Biloca começou a se organizar no combate à ditadura alguns anos após seu ingresso no curso de Arquitetura na UFRGS. Para ela era difícil imaginar a dimensão do que estava acontecendo no Brasil. “E eu me perguntava: pô, mas como que pode um ser humano infringir dor a outro de propósito?, mas aos poucos fomos entendendo que aquilo era real”. No dia de sua entrevista, estávamos em Pelotas, no Instituto Mário Alves, na sala do segundo andar. Neste dia, eu a entrevistei. Interessada nas questões de gênero no movimento estudantil, lhe perguntei como era sua atuação enquanto mulher naquele período.

– A discriminação era sutil e os próprios camaradas não percebiam isso. Os mais antigos é que percebiam que tinham que parar pra que eu falasse. Me dar o direito da fala – e logo retoma uma situação específica: lembro de um episódio de quando eu estava na diretoria do DCE e me irritava profundamente com o atraso dos meus camaradas. Outras entidades do Rio Grande do Sul chegavam e as reuniões só começavam quando eles estavam presentes. Até que em um momento eu percebi que eu mesma podia iniciar a reunião. E foi o que fiz.

O empoderamento da mulher nos espaços é um processo de consciência de classe. As mulheres tiveram um papel extremamente significante no combate à ditadura. Organizadas no Movimento Feminino pela Anistia (MFA), fundado em 1975, um ano após a posse do general Geisel na presidência, foram as primeiras a reivindicar anistia às vítimas da repressão. Posteriormente, movimentos sociais e o movimento estudantil se somaram e reivindicaram ao lado do MFA.

O DCE da UFRGS, no ano de 1978, tinha três principais pautas de luta. Além da reivindicação à anistia, havia a reorganização da União Nacional dos Estudantes (UNE) que acabou acontecendo em 1979. A outra pauta era uma campanha em defesa da Amazônia. Nas décadas de 70 e 80, o movimento verde tinha bastante espaço entre a juventude militante. As pautas não se modificavam muito nas outras universidades do Estado. A organização política também era semelhante. Os representantes do DCE eram nomeados por um Conselho de Diretórios e era proibido, por lei, ter eleições diretas, o que dificultava a participação da esquerda na entidade mais representativa das universidades. Segundo relatos das entrevistas, era possível observar claramente a esquerda e a direita no movimento estudantil. Por mais difícil que possa ser acreditar, havia uma juventude organizada que defendia o regime militar. No entanto, nem mesmo isso conseguiu barrar as lutas e a redemocratização.

Folheando “Dias e noites de amor e de guerra”, encontramos histórias políticas de combate a regimes militares nas diversas linhas que percorrem o sul da América. Galeano retoma histórias de amigos chilenos, paraguaios, equatorianos, argentinos, uruguaios, brasileiros. Numa dessas, ele lembra de uma noite em que estava no bar Luna, no Rio de Janeiro, em 1975, com um amigo chamado Eric. Alguém chega e conta que o Vlado havia sido assassinado. Algum tempo depois, ainda triste, Eric conta a Galeano o que dirá mais tarde ao seu filho recém-nascido sobre a ditadura. “- Dentro de vinte anos – diz – vou contar para ele as coisas de agora. Vou falar para ele dos amigos mortos e presos e de como era dura a vida nos nossos países, e quero que ele me olhe nos olhos e não acredite e me diga que estou mentindo”.  A negação em acreditar o que foi a barbárie da ditadura, no entanto, nem sempre se materializa em forma de compaixão. Por vezes ela se manifesta ao pedir a volta da ditadura.

Os canhotos de ideias, como diria Galeano, levantaram seus punhos, seus princípios, se recusaram calar e não deram sequer um passo atrás. Por entre as veias da América Latina há coragem e histórias para serem contadas a ouvidos capazes de ver e sentir. É daquelas histórias que parecem nem ser verdade, contada só por quem viu. Eu não vi. Ouvi relatos detalhados o suficiente para perceber que esse tipo de história ninguém gostaria de inventar como uma verdade. Aconteceu. Prefiro lembrar do lado de quem resistiu e combateu. Que não esqueçamos as torturas causadoras de feridas na alma e dolorosas para sempre. Não esqueçamos a censura repressora de vozes e sonhos de juventude. Mas, principalmente, não esqueçamos a bravura de quem avisou que amanhã seria outro dia. E foi.  

 

* o uso do “x” em algumas palavras é utilizado como um gênero neutro com a intenção de tornar a linguagem inclusiva.

Estudante clandestino, pensamento ilegal, pelo viés de Maiara Marinho.

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