As dicotomias essenciais entre Cuba e EUA ainda persistirão

Flickr/kevin dooley
Flickr/Kevin Dooley

 

Ontem, quarta-feira (17), os presidentes de Cuba e dos Estados Unidos, Raúl Castro e Barack Obama respectivamente, deram declarações simultâneas a sinalizar o reestabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países, cortadas desde o período entre 1959 e 1961, quando o movimento liderado por Fidel Castro tirou Fulgencio Batista do poder, cujo governo era apoiado pelos Estados Unidos num típico cenário de Guerra Fria.

As conversações que levaram ao episódio histórico de ontem começaram há cerca de um ano no Canadá e no Vaticano, com o envolvimento pessoal do Papa Francisco. O assunto predominante desde ontem é o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos contra Cuba, o que se estima ter custado à ilha R$2.98 trilhões desde a sua implementação, em 1961. O embargo proíbe que qualquer troca comercial seja feita entre empresas estadunidenses e cubanas, limita o envio de dinheiro entre indivíduos dos dois países assim como dificulta a entrada de cidadãos dos EUA em Cuba. Obama não tem poder de acabar com o embargo, pois só o Congresso pode fazê-lo, onde se espera que o Partido Republicano oponha-se fortemente à proposta.

São, no entanto, as subjacentes dicotomias essenciais que me parecem ser a grande questão. De pronto, é preciso enfatizar que não se trata de enaltecer nem de vilanizar nenhum dos lados, mesmo porque, afora as questões políticas de Estado, há muito mais do que dois lados – ou melhor, dois extremos. A questão está na aparência da evolução baseada em dois pontos. Em primeiro lugar, parecem-se manter latentes as dicotomias que levaram a esta situação. Em segundo lugar, indago-me sobre quais serão as consequências culturais dessa aproximação.

Cuba e Estados Unidos estão separados por uma estreitíssima faixa de mar, mas estão em lados opostos de uma cisão fundamental do mundo entre dois pólos concorrentes e completamente incompatíveis: o comunismo, do lado cubano, e o capitalismo, do lado estadunidense. Essas divisões monolíticas do mundo na verdade dizem pouco sobre o mundo como de fato é, mas dizem muito sobre como se lo imagina. Isto é, dividi-lo entre capitalismo e comunismo não é uma divisão natural ou lógica. Essa divisão tem representado projetos de mundo que, muitas vezes, pouco têm a ver com as ideologias que os fundaram, mas que se baseiam em diferenças ou divergências históricas que são elevadas ao grau de essências, a resumir toda e qualquer coisa. É como tentar dividir o mundo entre o bem e o mal: simplesmente não funciona. E não funciona principalmente porque não há, nessa dicotomia, espaço para a crítica. Aqui, de fato, preciso dizer que preferi o posicionamento do presidente cubano àquele do presidente dos EUA. Enquanto Castro propunha que os dois países aprendessem a conviver ‘civilizadamente’ com suas diferenças, Obama se referia altivamente a categorias absolutamente vazias, como ‘democracia’ e ‘direitos humanos’. Aqui está a aparência da evolução: sim, os dois países voltarão a ter relações diplomáticas, haverá trocas comerciais, turistas circularão entre os dois países; no entanto, parece que ainda é cedo para se dizer se essa reaproximação será positiva a longo prazo, pois se mantêm incólumes essas essencializações. Se Castro teoricamente quer que Cuba e Estados Unidos aprendam a viver com suas diferenças de forma a, inclusive, aprenderem que suas estruturas políticas e econômicas não implicam povos incompatíveis, Obama parece estar apegado ao fato implícito de que os Estados Unidos continuam a ver-se como o melhor exemplo das categorias que dizem defender. De novo, não estou a defender as falhas que existem em Cuba, mas estou a apontar a incrível hipocrisia dos Estados Unidos em declararem as condições ou os intuitos da reaproximação como se eles mesmos não tivessem sérios problemas com ‘democracia’ e ‘direitos humanos’. Não é preciso se esforçar muito: basta que se vejam os recentes relatórios sobre torturas da CIA, os casos dos assassinatos gratuitos de jovens negros pela polícia e o já-tradicional apoio incondicional dos EUA a Israel.

Ao mesmo tempo, deve-se perceber que não se trata meramente de uma questão de ‘convivência’. Dizer que os dois países são simplesmente diferentes e basear todas as relações estabelecidas entre eles no equilíbrio dessas diferenças tampouco faz algo para se superarem as dicotomias. De qualquer forma, parece-me que o primeiro passo seja, de fato, o diálogo entre os países – digo-o, porém, sem qualquer romantismo de que ‘é só conversar que se resolvem os problemas’. Enfim, se essas dicotomias essenciais não forem gradualmente superadas – o que inclui também a superação de ideia de ‘convívio com as diferenças’ -, nada mudará estruturalmente, havendo a possibilidade de Cuba ser simplesmente engolida pelo capitalismo estadunidense, sempre muito bem disfarçado de ‘liberdade’ ou quaisquer outras palavras intrinsecamente positivas que não dizem nada sobre o lado que fala, mas simplesmente definem a inevitável negatividade do lado de ‘lá’.

Ademais, a questão que mais me intriga agora tem a ver com o fato de que haverá mais pessoas viajando para e de Cuba. O problema aqui é o mito de que a viagem tem o poder de colocar pessoas de ‘culturas distantes’ em contato e de que isso tenha um resultado automaticamente positivo. Primeiramente, há a questão sobre quem viajará para Cuba e quem viajará de lá para os Estados Unidos, por exemplo. Haver a possibilidade de trânsito entre os dois países não quer dizer que, agora, todo mundo vai visitar um ou outro. Além dos recursos necessários para a viagem, ainda permanecerão por muito tempo as condições impostas pelas representações prévias sobre os dois países: a que impera sobre os Estados Unidos de um lado e, de outro, a que impera sobre Cuba e tudo aquilo que se tem associado com cada um deles. Ou seja, enquanto o primeiro é visto, de longe, mormente como a ‘terra da liberdade onde tudo funciona e todos têm as mesmas oportunidades’, o outro, Cuba, continuará sendo ‘o Outro’ dos Estados Unidos, a misteriosa ilha da impiedosa e paupérrima ‘ditadura’ comuno-castrista. Não importa, portanto, se as relações entre os dois países tornarão o contato entre seus povos mais fácil porque não se desconstroem paradigmas assim tão rápida e pontualmente.

Nesse sentido, acredito que se precise prestar atenção às narrativas conscientes e inconscientes que serão produzidas pelos próximos anos tanto por cubanos que viajem ao exterior quanto de estrangeiros que vão à ilha. Se o reestabelecimento das relações entre Cuba e os Estados Unidos for feito, como já disse, com base na mera conciliação de categorias aparentemente incompatíveis, corre-se o risco de que ideias hegemônicas sobre ambos os países simplesmente se fortaleçam. Em outras palavras, a minha intenção aqui não é negar o avanço que será se o embargo for removido e coisas como remédios, por exemplo, cheguem a Cuba mais facilmente. Meu ponto é outro: é tentar ressaltar que se necessita cautela. Essa reaproximação é, de fato, um momento histórico e abre-se uma gama de possibilidades a partir daí, mas ainda é cedo para que se a condene ou se a comemore. O primeiro passo foi dado, mas o principal ainda está por vir.

AS DICOTOMIAS ESSENCIAS ENTRE CUBA E EUA AINDA PERSISTIRÃO, pelo viés de Gianlluca Simi

gianllucasimi@revistaovies.com

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