Pouco mais de dois meses depois do desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa, congressistas do bloco governista mexicano requentaram uma medida em discussão no Congresso que prevê a criação de uma “Lei Geral de Mobilidade” para o país. O artigo constitucional teria como foco tornar ainda maior o direito à mobilidade, semelhante na Constituição mexicana ao “direito de ir e vir” brasileiro. Mas a medida é vista com maus olhos pela oposição e pelos grupos de esquerda organizados do país. Isso porque a lei que deveria garantir mobilidade universal aos cidadãos mexicanos poderia se transformar em uma maneira de impedir que grandes manifestações públicas ocorram.
Em consonância com o que ocorreu no Brasil, as grandes redes de TV e os partidos políticos no poder tem defendido manifestações pacíficas e condenado “infiltrados” – aqui os black blocs, lá os “encapuzados”. No entanto, contra as expectativas essa tentativa de diferenciar e dividir os manifestantes não tem impedido o crescimento do movimento de protesto iniciado após o desaparecimento de 43 estudantes de Ayotzinapa (entenda o caso abaixo). A manobra por dentro do legislativo, porém, pode dar condições de aumentar a repressão contra o movimento, segundo opositores ao governo.
Antes de aprovada, a alteração precisa passar ainda pelo Senado do país, onde existe uma confortável vantagem numérica do governo sobre a oposição. Durante a sessão da Câmara dos Deputados que aprovou as polêmicas alterações nos artigos 11 e 73 da Constituição Mexicana, nenhum deputado dos partidos da base aliada do presidente Enrique Pieña Nieto se pronunciou, apenas votou a favor da medida. A contagem final foi de 292 votos pela alteração, 100 contra e 1 abstenção.
“Los 43 de Ayotzinapa” – Entenda o caso
Desde 26 de setembro 43 estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, instituição de nível semelhante ao magistério para formação de professores, continuam desaparecidos. Todos foram vistos pela última vez durante uma mobilização contra o desmonte das escolas normalistas rurais mexicanas na cidade de Iguala, no estado de Guerrero, sul do país. Na ocasião protestavam contra uma medida do governo que dificultava a contratação dos professores formados nas escolas rurais no sistema público de educação do país. Desde aquele dia, milhares de protestos ocorreram, especialmente depois de confirmada a participação da polícia de Iguala, de gangues do narcotráfico e mesmo do prefeito da cidade no desaparecimento dos estudantes.
Desde lá, mais de 55 cadáveres e mais de 50 fossas já foram encontradas na mesma região em que os jovens desapareceram, segundo o periódico local Proceso, mas não houve confirmação de que algum deles pertencesse ao grupo de Ayotzinapa. A região de Guerrero é marcada por disputas entre grandes cartéis de drogas, entre eles o grupo conhecido como “Guerreros Unidos”, do qual três irmãos da ex-primeira-dama da cidade de Iguala María de los Ángeles Pineda Villa faziam parte. A versão mais aceita do desaparecimento dos jovens envolve o descontentamento do ex-prefeito de Iguala, José Luis Abarca, com a possibilidade dos jovens organizarem um ato durante evento promovido por sua esposa. O ex-prefeito, agora preso, teria articulado o desaparecimento dos jovens, que foram levados pela polícia e entregues ao cartel de seus cunhados, o Guerreros Unidos. Daí, provavelmente os jovens foram executados, tiveram seus corpos carbonizados e seus restos mortais jogados em um rio da região, ainda que oficialmente eles ainda sejam dados como desaparecidos. A presença de outras fossas e outros cadáveres demonstra que a ação do cartel não é novidade naquela parte do país.
Os protestos, que tiveram início a partir do choque e da barbárie do ocorrido, logo passaram a ser mais gerais, questionando os poderes instituídos e paralelos do país. Em meados de novembro, as suspeitas chegaram a atingir até mesmo a primeira-dama presidencial, Angélica Rivera. A ex-atriz de novelas dizia ser sua uma propriedade que, segundo os contratos encontrados por uma reportagem do portal local Aristegui Noticias, pertencia à uma grande empreiteira mexicana, ganhadora de dezenas de licitações públicas desde que Pieña Nieto, atual presidente, era governador do estado de México.
Os protestos tem parado o país e tem tornado a vida das autoridades muito mais complicada. Recentemente, Murilo Karam, procurador-geral do México, usou a frase “Ya me cansé” (já me cansei) para encerrar uma coletiva de imprensa sobre o caso de Ayotzinapa. A frase logo virou a hashtag #YaMeCansé e passou a ser utilizada pelos manifestantes num sentido inverso ao original, caracterizando o cansaço dos manifestantes com a situação em que se encontra o país. No marco de 204 anos do início da revolução mexicana, passado no último 20 de novembro, a população do México se reencontra com a efervescência política das grandes manifestações e coloca em xeque boa parte dos grandes donos do país, sejam eles empresários, políticos ou narcotraficantes.
Congressistas mexicanos buscam brecha na lei para impedir manifestações públicas, pelo viés de João Victor Moura
(com informações de Desinformémonos, Revista Proceso, Regeneración e Aristegui Noticias)
Foto: Montecruz Photo