No dia 20 de novembro, dia nacional da Consciência Negra, os três jovens MC’s do grupo de rap,“Com Base”, da zona norte da cidade, aproveitavam o intervalo entre duas apresentações para descansar e fazer um lanche no shopping Santa Maria. O trio foi surpreendido pela abordagem dos seguranças do estabelecimento, que resultou em agressões – em função das quais um dos MC’s chegou a desmaiar – e na prisão temporária de um deles, menor de idade, na Delegacia de Pronto Atendimento por cerca de três horas. Segundo o relato dos jovens e de pessoas que presenciaram a cena (entre elas, um de nossos repórteres), a abordagem dos seguranças e o tratamento recebido pela Polícia foram marcadas pelo preconceito e pelo uso de violência desnecessária e desproporcional.
Depois de se apresentarem em uma atividade ligada ao dia da Consciência Negra na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), os MC’s aguardavam o horário em que se apresentariam na Kizomba, incluída na programação da 26ª Semana Municipal da Consciência Negra. “Esse horário que a gente foi lanchar era meio que o intervalo para a gente não voltar lá para onde a gente mora, que ia demorar mais tempo”, conta Pedro Ennes, um dos integrantes do grupo que sofreu a abordagem.
A confusão no shopping
Segundo Pedro, Jean Oliveira e Polho Santos, que é menor de idade, eles já eram observados pelos seguranças desde o momento em que entraram no shopping localizado no calçadão. Indiferentes à movimentação dos seguranças, seguiram até a praça de alimentação, localizada no terceiro andar do prédio, pediram e pagaram seu lanche e dirigiram-se às mesas, carregando a placa que identificava seus pedidos. A confusão toda teria começado quando Pedro “domou” uma cadeira – ou seja, conforme a gíria, equilibrou-se apenas nas duas pernas traseiras da cadeira em que estava sentado.
O grupo foi abordado por um segurança, que teria advertido Pedro de forma grosseira que era proibido “domar” as cadeiras do shopping. “‘É proibido domar a cadeira, seu merda’, chegou assim falando pra nós. Aí perguntamos onde estava escrito, por quê, e ele apontou o dedo na cara da gente, ‘tu cala essa tua boca’. Quem é ele pra me mandar calar a boca?”, relata Jean.
“Ele tava reprimindo nós, eles tinham o direito deles de falar, de xingar nós, de falar o que é certo e o que é errado, e nós não tínhamos o direito de contestar eles, de falar nada. Quando a gente falava alguma coisa, eles apontavam o dedo na nossa cara e esculachavam a gente”, complementa Polho.
Para os três, a “domada” da cadeira foi apenas um pretexto para uma abordagem baseada sobretudo no preconceito contra sua aparência e estilo. “Eu tava lá de chinelo, bermuda e regata, umas roupas velhas, tá ligado? E eles discriminaram o cara, por achar que o cara não tinha dinheiro para estar ali lanchando. O Pedro tava com uma camisa larga, uma bermuda larga no estilo do rap, o Jean também, eu era o único que tava no estilo mendigo, e eles acharam que não era o lugar adequado pra nós e chegaram nessa arrogância”, afirma Polho.
A discussão seguiu em tom elevado até que, repentinamente, um segurança se sobressaiu e aplicou um golpe de estrangulamento em Polho Santos, mesmo com ele sentado e sem chances de se defender. Conforme as testemunhas e amigos que estavam em mesas próximas, nenhum dos jovens sequer ameaçou agredir os seguranças, terceirizados pelo shopping para a Vigillare, mesma empresa envolvida na agressão de um jovem skatista no campus da UFSM.
Após desferir o golpe oriundo do Jiu-Jitsu e conhecido como “mata-leão”, os outros dois rapazes se levantaram, e iniciou-se o tumulto. O segurança só soltou o pescoço do jovem quando ele estava no chão, inconsciente, enquanto outros três desferiram socos e golpes de cassetetes nos outros jovens. Jean Oliveira conta que também foi estrangulado, mesmo alegando ter passado por cirurgia recente no pescoço. A maioria dos que estavam na praça de alimentação saíram correndo daquele andar. Muitos chegaram a descer pela escada rolante que subia, na pressa para se afastar da confusão.
“Eles [os seguranças] falaram pra gente parar de ‘embalar’ a cadeira para não quebrar, e eles quebraram uma mesa e outra cadeira”, observa Jean. Polho completa: “Derrubaram o celular de uma moça, comida de outra mesa… um monte de coisas”.
Duas mulheres gritavam exaustivamente para que os seguranças cessassem a violência. Após alguns minutos de gritos e correria e frente às manifestações das pessoas que estavam no local, os guardas pararam as agressões, à espera da Brigada Militar. Na chegada, os policiais revistaram as mochilas e bolsos do trio, antes de encaminhá-los à delegacia.
Nos vídeos reunidos acima, capturados via celular por uma garota que testemunhou o ocorrido, é possível perceber a indignação de pessoas que presenciaram as agressões.
“A gente estava certo e saiu por errado”
Os três MC’s são enfáticos ao afirmar que apenas reagiram em legítima defesa às agressões dos seguranças. No final da confusão, os jovens estavam com várias escoliações no rosto e no peito. Pedro teve a camiseta rasgada. Impedidos pelos seguranças de descer e ir embora, resolveram esperar a chegada da polícia para dar a sua versão do acontecido.
“Eles falaram que iam chamar a polícia e nós ainda falamos ‘pode chamar que a gente tá certo’. Quando a polícia chegou foi meio estranho, porque a polícia chegou e começou a revistar as nossas mochilas, o bolso de um guri que estava com a gente, e isso não podia, não deveria ter acontecido, porque a gente apanhou, a gente não bateu em ninguém, a gente tava ali só para relaxar. O máximo que a gente fez foi se defender, porque não ia apanhar quieto”, afirmam.
Na saída do shopping, os jovens contam que foram instruídos pelos policiais a não interromperem o depoimento dos seguranças, pois seriam ouvidos depois. Conduzidos à Delegacia de Pronto Atendimento localizada na rua dos Andradas, no centro da cidade, aguardaram o depoimento dos seguranças e foram levados para realizar o exame de corpo de delito.
Quando acharam que poderiam dar a sua versão dos fatos, após o depoimento que os acusava, foram surpreendidos pela notícia de que só seriam ouvidos em juízo e que deveriam assinar um Termo Circunstanciado, em que se comprometiam a resolver a questão na Justiça, para poderem deixar a delegacia.
Indignados, recusaram-se a assinar o termo por não concordarem com a ocorrência registrada contra eles, pois consideravam-se vítimas e não agressores. “Não permitiram que a gente fizesse um boletim de ocorrência. Eles [policiais] falaram: ‘já foi feito um boletim do que aconteceu, a polícia deu a versão e vocês não podem dar’. A gente tentou debater, como que a gente não podia dar nossa versão? Aí os escrivães falaram que a gente não poderia e que se a gente insistisse seria desacato, e aí ficamos quietos. A lei é sempre pro lado mais forte…”, relata Pedro.
O jovem questiona a versão admitida pela polícia. “A escrivã falou que o que tinha no papel não era depoimento dos caras, era o que a polícia delatou. Mas como a polícia ia falar um negócio, se ela nem tava lá no momento? Ela chegou bem depois, e quem falou? A gente foi chegar para falar e os seguranças tomaram a voz dizendo que a gente bateu neles, sendo que eles nem machucados estavam. No máximo um estava com a boca cortada, enquanto eu estava com as costas doendo e com a camiseta toda rasgada”.
Pedro e Jean assinaram a contragosto o papel que os chamava de baderneiros, para que pudessem sair da delegacia. Polho ainda ficou preso durante três horas – o tempo que sua mãe, que mora no bairro Chácara das Flores, levou para ir até a delegacia e liberá-lo, por ser menor de idade – e voltou para casa com um boletim de ocorrência. Nele, consta a notificação para se apresentar na Vara Regional da Infância e da Juventude.
Mas Polho foi o único a sair da delegacia com um B. O.: tanto Pedro como Jean, maiores de idade, saíram sem nenhuma cópia da acusação formal do ocorrido e, confusos, tentam compreender por que passaram de vítimas a agressores.
Em função do grande tempo perdido, os MC’s acabaram perdendo o horário da apresentação na Praça Saldanha Marinho alusiva ao Dia da Consciência Negra, na noite de quinta-feira.
(In)justiça criminal
Para Gabriel Porto Dutra, advogado do Sindicato dos Municípios de Cachoeirinha e militante dos movimentos sociais, há diversos pontos nesse caso que devem ser analisados. Primeiramente, duas ocorrências deveriam ter sido feitas no intuito de ouvir todas as partes – já que tanto os MC’s como os seguranças se declaram vítimas. Da mesma forma, Jean, Polho e Pedro devem estar acompanhados pelo menos de um defensor público, se estão sendo acusados de algo. Por fim, o procedimento legal indica que cada um dos envolvidos deve ter a sua cópia do Boletim de Ocorrência.
A respeito da orientação que os jovens afirmam ter recebido para que não interrompessem o depoimento dos seguranças, Gabriel reitera: “O depoimento não deve ser interrompido, mesmo, mas todos deveriam ter sido ouvidos – friso, novamente, na condição de vítimas. Mas a atitude é a tentativa de criminalização do lado mais vulnerável. Embora o direito penal tenha um discurso oficial bonito, baseado em princípios de legalidade, igualdade, humanidade, a realidade é completamente diferente. O sistema de (in)justiça criminal não faz mais do que selecionar e violentar, agindo quase sempre fora da lei. E tudo começa nas delegacias, em que há coação psicológica e torturas”.
A agressão cometida pelos seguranças não foi sequer levada em consideração na delegacia. Segundo Gabriel, a profissão de segurança privada é regulamentada por uma portaria do Departamento de Polícia Federal. Conforme o Manual do Vigilante, material homologado pela Polícia Federal e que regulamenta e consolida as normas aplicadas sobre segurança privada, “o vigilante ou outra pessoa que vier a fazer uso de força de maneira ilegal ou abusiva poderá responder criminalmente pelos crimes tipificados no Código Penal Brasileiro ou no Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03)”. O Manual ainda afirma que o uso abusivo de poder se caracteriza pela disparidade entre o nível da força utilizada pelo vigilante e o nível de resistência oferecida.
Além da agressão, os três MC’s do grupo Com Base ainda foram revistados quando a polícia chegou, contrariando o princípio da presunção da inocência segundo o qual todos seriam inocentes até que se prove o contrário. “Na hora em que houve o acontecido, eles foram revistar minha mochila e nela tinha umas canetas que são as que eu uso para fazer as minhas artes, que eu uso para fazer os stickers [adesivos], os artesanatos, umas agulhas de crochê que eu uso pra fazer dreads, e eles começaram a falar: ‘o que é isso daqui, pixador? O que tu faz com isso daqui?’”, conta Polho.
A falta de transparência e a desinformação impedem que os dois maiores de idade, Jean e Pedro, saibam de que, exatamente, estão sendo acusados. A revista o Viés entrou em contato com a Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) e com a Delegacia Regional de Polícia de Santa Maria para saber sobre a ocorrência registrada contra os jovens, mas não obteve informações: só seria possível acessá-las mediante pesquisa pelo número da ocorrência.
Rap, skate, periferia: preconceito e racismo
Os três também apontam que o preconceito de que foram vítimas do início ao fim do acontecimento é recorrente e relacionam a situação ocorrida na quinta-feira com racismo. Jean Oliveira, que é negro, afirma que já havia sido coagido no mesmo shopping em outra ocasião, por estar carregando um skate – ainda que no subsolo do estabelecimento, como lembram os MC’s, exista uma loja de skate, peças e artigos especializados, em função da qual mais pessoas circulam com skates pelo shopping.
Na tarde do sábado (22), durante a Marcha contra o genocídio da juventude e do povo negro, que buscava chamar atenção para o fato de que a maioria das vítimas de homicídios no Brasil são jovens negros do sexo masculino, foi realizado um protesto em frente ao Santa Maria Shopping, em repúdio à situação vivida pelos MC’s. Falas denunciando a situação de preconceito foram feitas em um megafone, e palavras de ordem contra o racismo foram cantadas, antes que os manifestantes seguissem sua marcha até a Praça dos Bombeiros, onde o grupo Com Base se apresentou.
O problema relatado por Jean, Polho e Pedro relaciona-se com estigmas de cor e classe social. Diz de quem pode ou não frequentar determinados lugares, e de como se deve comportar neles. É no interior dessas disputas que nascem manifestações como os “rolezinhos”, por exemplo, reivindicando a ocupação e circulação em espaços privados (como os shoppings) por pessoas da periferia das cidades. Em Santa Maria, um shopping – o Royal Plaza Shopping – já adotou uma política explícita de “triagem” de jovens menores de 18 anos, como prevenção contra possíveis rolezinhos.
Para além disso, o caso dos MC’s revela também o enraizamento do racismo, aliado ao preconceito contra jovens periféricos, no sistema judiciário brasileiro. Jean resume a sensação de injustiça sentida e vivenciada, com a inversão de vítima para agressor, por ele e seus companheiros: “a gente tava certo e ainda saiu por errado. A justiça é porca, né, ela não apoia os jovens”.
Pedro completa: “para eles, a gente é vagabundo, que não faz nada e anda com estilo marginal. Na verdade, eles nem sabem o que a gente faz. A gente escreve muita coisa para tentar tirar vários das drogas, do mundo do crime, para renovar sonhos de muitos que se perderam, várias coisas que a gente faz para o bem, não é nada para o mal. Isso é o rap, a poesia do marginal mesmo. Se é para dizer que a gente é marginal, a palavra marginal é o bem e eles não sabem. Marginal são aqueles que não concordam com o sistema”.
Para saber a versão do Santa Maria Shopping sobre o ocorrido e perguntar sobre as diretrizes que orientam a atuação dos seguranças particulares no recinto, a revista o Viés tentou contato com a administração do estabelecimento, mas ninguém quis se manifestar sobre o ocorrido.
Agressão e preconceito em shopping de Santa Maria, pelo viés de Lenon de Paula e Tiago Miotto*.
*Contribuiu para a reportagem Dairan Paul.
Parabéns por registrarem esta situação, galera. Revoltante para dizer o mínimo.
Santa Maria cidade cultura…será!?
Seguranças mal preparados que usam e mancham o nome e reputação da artes marciais ,aprendem alguns golpes e se acham que
Podem fazer de tudo…naõ curto o tipo de musica que esses rapazes cantam ,mas e dai respeito…e acho que eles tem toda razão de estar e indignados.tem que fazer barulho mesmo!
Boa coisa, não tavão fazendo!
Ñ q eles estariam certos a domarem a cadeira Tiago, mas isso ñ dá o direito dos seguranças tratarem eles como foram tratados, e sabemos q se fossem brancos e se estivessem “bem apresentados”, no estilo q a sociedade axa padrão, jamais eles fariam isso…o q revolta é saber q sofreram preconceito desde ao entrarem no shopping só por causa de seus estilos,mas o q revolta mais é saber q com esses seguranças nada vai acontecer,pq a justiça q deveria bani-los vai apoia-los e ainda vai axar isso certo!!Outra, os play-bois tmb ñ fazem BOA COISA,mas a diferença é q com eles nd acontece e ainda são bem victos pela sociedade!!!
Me responda esta então: Se fosse um branquinho com roupa da moda, que ficasse brincando com a cadeira, ele seria interpelado deste jeito? Não, né? Nada muda o fato. Já vi boyzinho enchendo o saco no shopping e segurança dando risada. Cai na real! Cor de pele define seu destino aqui no Brasil.
boa coisa esses seus pensamentos não são!
Por que sentaram no shopping para comer e bater papo com os amigos? Queria ver se teriam sido abordados dessa forma se fossem brancos. Que mania que o povo tem de culpabilizar as vítimas, AFF.
Se sentasse na moral e ficasse de boa não tomaria esculacho. O tratamento seria o mesmo com um branquinho com cara de rico? Obvio que não. Os seguranças chegaram com marra porque pensaram ”ah mais um favelado sem ter onde cair morto, é um zé ninguém” totalmente despreparados e com muito preconceito com os rapazes. POREM, chamar atenção por ficar fazendo palhaçada na cadeira não foi errado, errado foi a abordagem que com certeza seria diferente com um playboy.
Trabalhar minguem quer néee!
Seguranças despreparados como sempre… fazendo merda como sempre… e policiais militares e civis despreparados tb… sendo coniventes com os abusos…. “Domando” cadeiras ou não, nada justifica a violência.