O mês de setembro saltou subitamente do calendário e veio logo prometendo a primavera. Os ares mudariam para valer e foi logo nos primeiros suspiros que o nono mês de 2014 mostrou toda a sua irritabilidade: surgiu alérgico, no percurso acidental do primeiro ato de uma campanha eleitoral em ano de Copa do Mundo. Os debates para os cargos máximos da república brasileira ocorriam diariamente e o timing só podia ser perfeito se a tarefa de ficar antenado nas eleições fosse feita à exaustão, estando atento às emissoras, aos horários e especialmente à análise comparativa de discursos recém manifestos, o que gerou um fenômeno particular e um novo habitante das redes sociais: o comentador de debates minuto a minuto.
O Brasil tinha um fetiche especial por eleições, as disputas lhe davam calor, e se pudesse ter um protagonismo político, o mais clichê que se fosse possível, como o do homem comum verborrágico que sobe no púlpito para atacar um adversário-antagonista, ele não exitaria, era assim nos almoços do família, quando todos comiam salada de batatas enquanto ele discursava. Ele não exitou em suplantar a bandeira anti-governo em seu perfil do facebook. Velhos ovos, gerados por velhas serpentes, estavam propensos a eclodir a todo instante e as redes sociais eram o destino óbvio dos ódios destiláveis. O Brasil já escolhera seu lado, o contraste era absoluto: um bandeira verde amarela com ênfase na palavra “progresso” como ilustração de capa e uma imagem preta, simbolizando luto, na ilustração de perfil.
O Brasil disfarçou, deixou as paixões de lado por um momento, tentou parecer sensato, usou-se de algumas estratégias e artimanhas no mês de agosto, mas logo seguiu o conselho do amigo que era coronel reformado e preteriu a candidatura de Marina Silva e adotou Aécio como o novo Tancredo – o salvador da república dos guararapes, o homem capaz de expurgar do Brasil os eleitores da Dilma como quem expurgara os holandeses no século XVII. O que o Brasil esquecia em seu ódio era que este era o combustível de um sistema democrático, a divergência, a discordância, onde os momentos de crise, tal qual a estrutura das revoluções científicas, eram momentos máximos do estabelecimento de novos paradigmas que seriam ao longo de décadas constantemente negociados pelos cidadãos em interação com o cotidiano. Mas o Brasil, de camisa listrada e olhando por cima dos óculos com o nariz empinado para a tela do computador, em disputa frenética com a parte de baixo da escrivaninha que sustentava o teclado, a cada expirada, o teclado recuava centímetros, e nas inspiradas o teclado progredia a seu encontro, como as ondas erodem imensos bancos de areia, estava era com saudade de outros tempos. Para ele era nítido que o país precisava de uma revolução democrática! A base do raciocínio era simples: quem poderia mais, falaria mais e se sustaria mais. A corrida do mérito, para ele – e eis um grande paradoxo -, representava a disputa justa e ideal, onde se vislumbrava o mérito como uma coroa de flores entregue sumariamente aos que vencessem a linha de chegada; aí o corredor olhava para trás, via um mar gente em conflito, sedentas, efervescentes e violentas, uma imagem alegórica e dantesca, aonde o vencedor não seria mais capaz de se solidarizar com os demais, beberia sua água e começaria uma nova corrida para se distanciar ainda mais de todos os outros. Era assim que o Brasil via o mundo, apesar de não ter vencido na vida. Ele estava nesse balanço marítimo com a parte de baixo da escrivaninha porque estava vendo lances do Pelé, do Rivellino, do Jair, do Gérson e do Tostão ao som daquela marchinha dos 90 milhões. No vídeo aparecia o Carlos Alberto, a Julles Rimet e o Médici e ele lembrou de sua mãe falando que sua avó tinha nascido em Bagé, na mesma terra do presidente e que graças a democracia os 90 milhões estavam unidos e em uníssono contra a baderna e a rebeldia. Era isso que sentia especialmente quando estava no trabalho, onde ele não podia mais comandar, onde os subalternos haviam praticamente se insurgido, onde aquele rapaz que seria no máximo um jornaleiro anos atrás agora tinha formação superior gratuita e disputava com ele um lugar ao sol no mercado, o Brasil representava uma espécie de classe média, uma geração mais madura que tem acima de tudo o medo do futuro, um receio das inconstâncias e um sentimento de inveja generalizado, não aceitou o café passado pelo rapaz do escritório, e postou no facebook que o Brasil era o país das coisas fora de lugar: os aeroportos haviam virado rodoviárias, as faxineiras e merendeiras agora eram docentes e onde qualquer pessoa poderia ser aluno ou aprendiz.
Como jornalista, sentiu prazer em votar na Ana Amélia e no Lasier e faltava só a Cristina Ranzolin para a bancada do Senado se torna a bancada do Jornal do Almoço.
Minuto a minuto o Brasil foi comentando todos os debates a ponto de nem perceber o tempo passar, suas ações na assessoria de imprensa não tinham mais publicações regulares, ele andava meio taciturno, com a barba por fazer e os olhos no fundo. Voltou a bebericar umas cervejinhas enquanto assistia os debates no rádio e televisão. A primavera chegou quando a Marina Silva já havia sido praticamente descaracterizada em um trabalho conjunto entre os eleitores do PSDB e do PT, e ele estava como um louco dentro de casa aguardando o resultado do primeiro turno. Como jornalista, sentiu prazer em votar na Ana Amélia e no Lasier e faltava só a Cristina Ranzolin para a bancada do Senado se torna a bancada do Jornal do Almoço. Para o Brasil ser jornalista ou formador de opinião era praticamente mimetizar sobre si todas as capacidades de todas as profissões e ao mesmo tempo refutar os pontos negativas e se engrandecer das virtudes particulares a cada função. Ele ficou meio eriçado quando a Luciana Genro mandou o Aécio não levantar o dedo para ela no último debate, e ficou tão perplexo quando todo mundo quando o Fidelix revelara a todos os eleitores o que ele representava. Ele queria que aquilo acabasse logo mas não sabia como escaparia ou o que lhe restaria até o final do segundo turno. Estava satisfeito com seu trabalho nas redes sociais e creditou para si um pouco do que representou a virada do Aécio em cima da Marina.
Era surpreendente o que acontecia no país. Depois de 25 anos de processo democrático e 50 anos do golpe militar, a eleição de 2014 representava muito do que estava em jogo cotidianamente para os cidadãos, o fato de a clássica polarização entre PT e PSDB ter voltado com força, em um primeiro momento fora refutada e depois confirmada nas urnas no começo de outubro, evidenciava uma divisão muito particular da sociedade e ia ao encontro da teoria máxima do barbudão do século XIX: a luta de classes. O que se via real e virtualmente, nas ruas e nas redes, era um conflito potente e que representava um bomba relógio para a sociedade brasileira. Aquele fervor crítico e aquela miscelânea ativistas de todas as pautas voltavam a trabalhar coletivamente com uma diferença decisiva em relação à junho de 2013: não eram valores abstratos o que se combatia, como “corrupção”, “saúde”, “educação”, o que se combatia agora era o outro, o semelhante que estava do no front oposto. Um vizinho do Brasil colou discretamente um adesivo lambe-lambe na porta de sua casa, que ficava em frente ao apartamento do Brasil, o que poderia ser talvez um gesto mecânico e cotidiano, como alguém que chega da rua e retira o adesivo e cola no primeiro lugar que o olho alcança, para o Brasil era um afronta imperdoável. Ele saiu do trabalho e passou em um comitê do PSDB e ganhou todos os adesivos da campanha do Aécio, em todos os tamanhos, de quebra já levou alguns do Sartori, que era oposição ao PT em Porto Alegre – mesmo que a sigla estivesse apoiando a candidatura de Dilma nacionalmente, indicando o vice-presidente Michel Temer – e transformou sua porta em um mosaico tucano-moderado. Ele não quis reclamar diretamente ao vizinho, mas sua estratégia funcionou e um dia viu seu vizinho se esquivar dele com a família toda por perto, ao sair do elevador enquanto o Brasil estava no saguão. O Brasil acreditava que poderia vencer a eleição, mas admitia que o favoritismo era do adversário. Até o dia da eleição ele esteve praticamente de plantão nas redes sociais, com sua cobertura minuto a minuto dos debates. Viu que perdera alguns familiares e amigos de longa data nesta disputa épica, travada essencialmente pelo facebook, mas para ele pouco importava, era um homem solitário. Todavia seus chefes sabiam que precisariam tomar uma atitude a respeito do Brasil: sua postura perturbava os demais a ponto de deixá-los envergonhados de sua presença. Seria salutar preservá-lo disto. O Brasil pressentia que algo estava indo longe demais e se deprimiu no final de semana do segundo turno. Não postou nada na rede, mas foi votar com uma capa da revista Veja pendurada no pescoço e resolveu tomar um sedativo antes de sair o resultado da apuração.
O Brasil de setembro/outubro, pelo viés de Calvin Furtado.
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