A chuva era anunciada em todos jornais e o tempo se encarregou de guardá-la. No seu lugar, um mormaço envolvido pela luz amarela mais forte que poderia raiar fazia as vezes de iluminação principal.
No lugar do ar condicionado, um velho desconhecido ali naquele recanto de olhares curiosos, o vento carregava risadas e cochichos e, enquanto se sentia na pele o ardor daquele calor, o suor se tornava refrescante e apenas a sede consumia a todos.
Se com águas me alinhavo, que se costure a inquietude dos pequenos (e outros nem tão pequenos assim) e se liquefaça em descobertas desassossegadas. Nas feições daqueles rostos se via desde um passaporte para a fantasia à jeito peculiar de cabular a aula.
A moça, que vinha logo ali, fazia a trilha pro moço das pernas altas em notas suaves no acordeom. E todo riso era estampado naquelas faces que desbravavam cada objeto em cena, que faziam caretas desentendidas para as palavras novas, que não compreendiam e achavam graça quando uma coisa de repente virava outra. Seriam aquelas duas pessoas ali na frente dois loucos? Será que saem assim na rua experimentando os objetos dessa forma pouco habitual? Será que se pintam como personagens de um sonho bom? E as pernas de pau?? Será que ele sempre anda desse jeito?
A saia dela rodopiava, vazada, envolta de fios e, em seguida, vira parte do pano de fundo, literalmente, para em seguida ser peneira que carregava água.
Entre tantos despropósitos, borboletas invisíveis, o rio passava ali, em fios de linha vermelha
Fios estes que viram água, viram árvore e as pernas de pau que viram espadas, que viram remo, que viram cavalo de pau…
Basta fotografar o silêncio e o perfume para enxergar essas coisas acontecerem, afinal o escuro também pode iluminar.
Um pássaro, que foi enviado pela moça que fazia música, voava guiado pelas mãos do recém presenteado menino que ri esvoaçante e que trazia para frente de seus olhos os lugares que passavam em seus pensamentos.
Das perguntas que circundavam coube a mim apontar a próprio punho, porque perdê-las assim, inteiras, era como perder parte do afeto provocado pelo espetáculo naquela plateia tão diversa em idades. Desprovidos de fivelas que prendessem seus silêncios, enquanto os pequenos inventavam à la “língua de brincar” suas palavras e imagens, livremente conversavam uns com os outros em frases que depois me fizeram até certo sentido:
- Seria peralta alguém que tem pernas altas?
Outros um pouco maiores conversavam:
- Tu entendeu alguma coisa?
- Eu entendi mais ou menos e tu?
- Ah, eu também, mas que foi tri, foi.
Quando a fantasia passa do intocável, ao atravessar os olhos – as janelas da alma -, acabam por se desdobrar em mãos, em novas palavras, em novos sentidos, cedendo lugar a este novo espaço inventivo, onde realmente devem estar: na brincadeira.
Que sejamos todos acrescentados de crianças, que sejamos exceções de árvores, que conversemos bobagens profundas com as águas, que falemos com sotaque de nossas origens, sejamos obscuros de moscas, que construamos casas com pouco cisco, que descubramos que as tardes fazem parte de haver beleza nos pássaros, que olhando para o chão enxerguemos um verme sendo-o, que sejamos uma espécie de sânie com alvoradas…
Enfim, que sejamos bocós, sem colocar data na existência, que é para o tempo não andar para trás, só quando…bom, no quando a gente pode ser o que quiser.
Com águas me alinhavo, pelo viés de Carol Ferreira*
Texto inspirado do espetáculo Com águas me alinhavo, com poesias de Manoel de Barros, que aconteceu na Escola Municipal de Ensino Fundamental Irmão Quintino.
Criação e atuação: Rony Almeida Pereira e Vanessa Giovanella
Elenco de apoio: Adriano Barbosa
*Carol Ferreira é blogueira e produtora cultural, participa do site de fotografia Lomocinhas, da marca de acessórios Cogumelices e é responsável pelo projeto Circuito Elétrico