Entrevista: Dra. Rosane Leal da Silva fala sobre ódio na internet

Maria das Dores Martins é uma jovem de 20 anos, que, como a grande parte das jovens de sua idade, possui uma conta no Facebook. No dia 17 de agosto deste ano, Maria postou uma foto com seu namorado, com quem está junto há 2 anos, e se surpreendeu com a reação: dezenas de comentários maldosos, proferidos por pessoas que ela nem conhecia. O motivo? A jovem é negra e o namorado é branco. A jovem então prestou queixa e os suspeitos até agora identificados responderão na justiça por injúria racial.

O mesmo crime levou a estudante de Direito Mayara Penteado Petruso a ser condenada 1 ano, 5 meses e 15 dias de prisão, após postar em sua conta do Twitter a seguinte frase: “Nordestisto (sic) não é gente. Faça um favor a Sp: mate um nordestino afogado!”, após o resultado de que a presidenta Dilma Rousseff havia tido uma vitória expressiva na região Nordeste do Brasil no pleito de 2010.
Quatro anos depois, tudo parece repetir-se. Mais uma vez a vitória da candidata do PT na região gerou centenas de publicações racistas nas redes sociais contra pessoas de origem nordestina e nortista. Para denunciar a prática, internautas criaram o tumblr Esses Nordestinos, em que dezenas de casos são explicitados.

Tanto o ataque a indivíduos, como foi o caso de Maria das Dores, como a minorias, como nas manifestações de descontentes após o pleito eleitoral, mostram a urgência do debate sobre os crimes de ódio na internet. Para lançar uma luz jurídica sobre o assunto, a revista o Viés entrevistou a Prof. Dra. Rosane Leal da Silva, coordenadora do NUDI (Núcleo de Direito Informacional) e professora do curso de Graduação de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSM, e líder do Grupo de Pesquisa Teoria Jurídica no Novo Milênio, da UNIFRA. Leia abaixo:

 

 revista o Viés: Professora, vamos começar pelo básico: Onde termina a liberdade de expressão e começa o crime de ódio na internet?

Rosane Leal da Silva (RLS): Esse é um limite muito delicado, porque, a princípio, a gente trabalha com a ideia da liberdade de expressão como um direito: primeiro um direito humano, resguardado em inúmeros documentos internacionais, depois como um direito fundamental, especialmente em países como o nosso e como os outros aqui da América Latina que enfrentaram períodos de ditadura. Então, qual é o limite entre expressar minhas posições e ultrapassar essa fronteira e praticar um crime? Primeiro, não há crime sem uma definição anterior, ou seja, é preciso de uma lei anterior que defina aquela conduta como criminosa. De qualquer forma, ela não precisa necessariamente se configurar como crime, mas pode se configurar com o que chamamos no direito civil de abuso de direito, ou seja, toda vez que a minha expressão invade a esfera jurídica de outra pessoa, viola seus direitos, quer direitos patrimoniais ou fundamentais (honra, imagem, dignidade ou invade a intimidade de maneira desautorizada). Se isso trouxer um dano, se atingir uma pessoa, ou ainda, nos casos em que ultrapassa uma pessoa determinada e viola um grupo indeterminado de pessoas ligadas pelo mesmo elemento (raça, etnia, questão religiosa, orientação sexual, procedência, nacionalidade etc), se constituiria numa situação de violação. Dessa forma, precisaríamos ver se essa conduta estaria tipificada como crime ou como abuso de direito, o que daria à pessoa atingida a possibilidade de buscar reparação, direito de resposta ou exclusão de conteúdo, fazendo cessar aquela situação de violação que ela está sofrendo. O limite realmente é muito tênue, não dá pra ser definido a priori, porque tem que ver no caso concreto o que se constituiu aquele comportamento.

Prof. Dra. Rosane Leal da Silva (Foto: Felipe Severo)

 Em que nível a internet mudou a dinâmica da propagação de crimes de ódio?

RLS: Ela tem um impacto extremamente significativo. Não que os crimes de ódio não ocorressem antes, claro que ocorriam, mas antes a vítima tinha a possibilidade de pedir a retirada do conteúdo dos meios de comunicação, cessar aquela publicação, recolher aquele impresso, pedir direito de resposta etc. Às vezes, dependendo de como se propagava, a vítima nem ficava sabendo, pois os meios não tinham o alcance que a internet tem.

Com a questão atual da instantaneidade, há uma rápida difusão para um público que é indefinido.  Além disso, temos vários outros problemas, como a perpetuação dos registros. Nós temos na internet aquilo que chamamos de perda da autodeterminação informativa, tanto para o lado da vítima – porque aquele registro se mantém e ele não consegue retirar, embora aquilo lhe cause dor e sofrimento – quanto para o ângulo do agressor,  porque por vezes ele pode se arrepender, ou ele pode não querer que aquilo tenha aquela repercussão toda – porque alguém já pode ter compartilhado, curtido, já apareceu pra tantos outros e quem postou acaba perdendo o controle – e, por vezes, não tem nem como retirar.

 Como funciona o Direito ao Esquecimento? Qual é a regulação que existe para esse dreito?

RLS: Aqui no Brasil nós temos apenas um enunciado do Conselho da Justiça Federal, de uns dois anos atrás, falando do Direito ao Esquecimento. Para nós é um tema ainda novo. O Direito ao Esquecimento seria a possibilidade de, por exemplo, uma pessoa não ser mais atrelada a determinadas publicações, ou então de colocar o nome num sistema de busca e não indicar mais determinada notícia. Tenho acompanhado o trabalho de alguns colegas que vivem na Europa, e por lá já houveram algumas decisões a este respeito, aplicando um determinado entendimento da União Europeia. Um exemplo é o de uma pessoa que colocava o seu nome num sistema de busca e remetia a uma matéria de alguns anos atrás, que indicava que ele tivera problemas com o fisco, com sonegação de impostos no passado. Porém, embora ele já tivesse sofrido as sanções, pago multa, toda vez que ele digitava o nome dele num site de pesquisa, remetia àquele fato, ou seja, a situação se perpetua.

Se passado algum tempo nós temos a possibilidade, no campo penal, de não ser mais reincidente, a internet faz o contrário, pois ela mantém a pessoa na mesma condição. Isso pode causar discriminação, pode trazer prejuízos para a vida profissional, outras vezes pode gerar uma situação de ataque a um direito fundamental, então é pior ainda. Esse é um tema que aqui no Brasil ainda estamos dando os primeiros passos. Foi discutido isso, por exemplo, na questão envolvendo a apresentadora Xuxa. Acredito que nos próximos anos, em curto ou médio prazo, teremos avanços nesse sentido, mas não tem nada decidido ainda.

 E em relação às pessoas que cometem crimes de ódio, existiria um perfil possível dessas pessoas a ser traçado ou é um público muito difuso?

RLS: Na verdade é difícil estabelecer. Eu não posso te falar de um perfil – pois essa seria uma questão mais estudada por psicólogos e antropólogos – e sim do que há de comum na sua atuação. Nós vemos aqueles grupos muito articulados – como tivemos no Brasil o caso do Valhala 88, um grupo neonazista que tinha uma célula bem forte no RS e em SC – que não são impulsivos, e que muitas vezes trazem discursos sofisticados, com um revisionismo histórico e, por trás deles, vem de forma mais implícita a inferiorização e a escolha de determinado grupo como um inimigo comum. Eles possuem discursos como o de “esses são os nossos inimigos, e nós, que somos os bons, precisamos nos unir para extirpá-los da face da terra, antes que eles ocupem nosso lugar, nos tomem nossos empregos, nossas vagas nas universidades ou o poder”.

Por outro lado, há aqueles momentos em que parte da população se vê contrariada em alguns dos seus desejos, como a questão eleitoral – isso aconteceu em 2010 e vimos infelizmente de novo em 2014 – e fazem uso das redes sociais, criam uma comoção e rapidamente conseguem um número bem grande de adesão. Esse discurso, então, é tomado por uma emoção, é pontual, criado por algo que o contraria, e o atinge o outro que é identificado com aquele que é responsável por aquela situação que não lhe favorece.

Mas o que os discursos de ódio mais articulados, de grupos organizados, e o gerado por situações pontuais têm em comum?  O discurso de ódio, independente de sua origem, se articula primeiramente no sentido de inferiorizar o outro, seja de maneira velada ou explícita, eleger um inimigo em comum, criar uma situação de antagonismo  e disseminar o preconceito. E isso pode gerar uma situação de irracionalidade coletiva, que pode se manifestar de maneira bastante abrupta e violenta.

 A ONG Safernet apontou que, nos últimos 3 anos, houve um aumento de 200% nos crimes de ódio na internet. Isso demonstra, no seu ponto de vista, que está aumentando a intolerância ou estão aumentando as denúncias? Ou os dois?

RLS: Eu acredito que os dois. A  Safernet já vem fazendo um trabalho há vários anos, e, embora esteja aumentando o número de dunúncias em alguns casos, em outros têm diminuído. Os que tem mais incidência – a questão do racismo, da pedofilia e da pornografia – são os que estão no topo dos percentuais da Safernet. Eles têm a única central de denúncias da América Latina, e qualquer internauta pode encaminhar uma publicação que queira denunciar, e eles vão ver se aquela página existe, se aquela publicação possui conteúdo criminoso, e, então, se comprovado, encaminharão pro Ministério Público

Temos que levar em conta que tem crescido o porcentual da população com acesso à internet no Brasil. Segundo números publicados nos últimos dias pelo Comitê Gestor da Internet, 51% da população brasileira possui acesso. Então, aumentando o número de acessos, aumentam o número de crimes e denúncias. À medida que a população vai se apropriando, é logico que teremos uma difusão maior e, por outro lado, mais visibilidade. As situações começam a aparecer na mídia, até mesmo na mídia tradicional, e com isso as pessoas começam a identificar que aquilo, que até então elas consideravam normal, pode se configurar em uma violação.

A Safernet tem atuado também no campo preventivo, elaborando materiais, encaminhando pra escolas, tentando esclarecer, inclusive, na própria internet. Com a apropriação da população, mais denúncias são feitas, e as pessoas reconhecem na Safernet um espaço em que elas podem fazer a denúncia de sua casa, mesmo, de seu computador, sem a necessidade de ir a uma delegacia de polícia. Isso também faz com que aumente o número de pessoas denunciando, enfim, reclamando pelas violações que sofrem.

Prof. Dra. Rosane Leal da Silva (Foto: Felipe Severo)

 Em que momento os discursos de ódio podem colocar em risco preceitos democráticos?

RLS: Esse é um problema, pois o discurso se identifica como um exercício democrático, da liberdade de expressão das pessoas. Inclusive as pessoas que possuem uma posição que pode nos chocar no primeiro momento têm seu direito a livre expressão assegurado. É muito discutida a questão de o que é um discurso que é moralmente não aceito e o que é um discurso de ódio, porque muitas vezes o discurso pode contrariar meus valores, mas eu não posso dizer que está violando a ordem, o direito. Não podemos correr o risco de nos colocarmos na posição de um sensor, o que seria muito perigoso ao sistema democrático

Agora, quando identificado o discurso de ódio, alguns autores defendem que devemos combatê-lo com um contra discurso, e que não deveria haver uma limitação a esse discurso, nem uma reparação civil ou uma sanção penal – nas situações que se configuram como crimes. Eles defendem que deveria se abrir espaço para que as minorias que se sentem atingidas fazerem uso do contra discurso, e assim mostrar os seus valores, sua cultura, sua diversidade. Qual é o maior problema que vejo nesse tipo de forma de enfrentamento? Para mim ele tem dois pontos muito frágeis nessa solução. O primeiro deles é que dificilmente essas minorias tem a mesmas condições discursivas e o mesmo espaço para fazerem esse contra discurso. Outro ponto é o fator psicológico: muitas vezes a vítima se sente tão atingida na sua dignidade, com sua autoestima tão abalada, que ela não consegue reagir. Muitas vezes o discurso mina tanto seus valores como pessoa que ela começa a se aceitar como tal, e a pensar que não pode participar de algum espaço da sociedade  – de uma vaga de emprego ou na universidade, por exemplo –, já que ela introjeta aquele sentimento de inferioridade que é propagado por tantos meios e de tantas formas diferentes.Então se por um lado é perigoso alguém se colocar na posição de sensor, por outro lado tem que se oportunizar a essas minorias que ela possa fazer a sua defesa ou oportunizar que elas tenham condições de igualdade discursiva para fazer esse combate.

No que diz respeito a esses momentos eleitorais, essas questões políticas, creio que nós ainda estamos aprendendo a usar essas novas tecnologias, especialmente as redes sociais, não apenas para uma mera questão de lazer, mas também para o uso político. E como tudo que estamos iniciando, acho que corre o risco de chegarmos a extremos, como as manifestações que vimos nos períodos pré e pós-eleitoral. O que eu acho temerário é que dessas manifestações comecem algumas articulações e pressões no sentido de um perigoso retrocesso político e histórico, esquecendo-se de tudo que se avançou para se conseguir chegar a essa promessa de democracia. Com as redes sociais, surge um contexto todo novo, pois uma coisa é a mídia tradicional, que tem uma voz que elege, faz o agendamento e transmite a visão de um grupo, e outra é quando cada um de nós se torna um produtor de informação. Então faz parte também desse espaço democrático do século XXI. Então, experimentamos um período de adequação, e depois, como tudo, vai se adaptando. É a esperança que eu tenho.

 Em seu ponto de vista, o direito tem conseguido acompanhar essas novas demandas que estão sendo colocadas pela internet?

RLS: Olha, é uma dificuldade, porque o Direito é muito tradicional, e isso envolve a compreensão por parte do jurista, de que há uma nova realidade. Então, por exemplo, em termos de questão normativa, recém agora nós passamos a ter o Marco Civil da Internet, neste ano. E que, pelo menos – não que tenha trazido grandes novidades – ratificou alguns dos princípios do uso da internet, que são princípios de respeito à privacidade, liberdade de expressão etc.

Então, a gente deu alguns passos no campo normativo e vem dando algumas respostas no campo penal, que não são as mais adequadas, porque são respostas simbólicas, capitaneadas pela mídia, como foi o caso da Lei Carolina Dieckman, há dois anos. Aproveitaram um projeto de lei que já estava tramitando, que tinha problemas e usaram aquela situação para aprová-lo. Tal qual a questão do Marco Civil, que vinha sendo discutida desde 2009, 2010, porém aproveitaram a situação da espionagem norte-americana para “dar um gás” e dar uma resposta à sociedade. Então, no campo normativo, nós temos problemas nesse sentido, porque a gente tem uma tendência a produzir leis esgotando o tema – e a internet é tão rápida que, quando o processo legislativo finaliza, aquela lei já está desatualizada. Nóstemos que trabalhar com grandes princípios de governança na internet, e não simplesmente com leis com níveis de detalhamento, que era típico do século XX e que não cabe no século XXI.

 Em relação às vitimas de ódio na internet – tanto indivíduos como grupos de minoria – quais passos ela deve tomar?

RLS: Em relação aos indivíduos, geralmente o que acontece é a difamação e/ou a injúria. Pode acontecer também a injúria racial – aquela situação em que por causa de algum componente de raça, nacionalidade, etnia, religião ela é injuriada, tem seu decoro atacada. Então o que essa pessoa deve fazer? Nessas ocasiões é necessária uma representação, ou seja, a pessoa deve procurar a Justiça. Ela deve salvar essa página, fazer um boletim de ocorrência para iniciar os procedimentos. No caso do discurso que é mais difuso, que não é direto a uma pessoa, a um cidadão, mas que atinge a todos aqueles que têm esse componente em comum, o que normalmente acontece é que o Ministério Público – tendo conhecimento geralmente através de denúncias de pessoas afetadas pela publicação  – dá início aos procedimentos,. O Ministério Público Federal que age mais nas questões envolvendo a internet, pelo seu alcance, pelos tratados internacionais que existem, já que a transmissão pode ir além do espaço geográfico do Brasil. Outra dificuldade é que às vezes não fica claro quem é o agressor, pois a postagem pode ter sido realizada por um fake, logo, é necessária a colaboração do provedor para que se identifique de quem é aquele IP, uma constatação mais técnica, para que se chegue à autoria da postagem. Outra possibilidade nesses casos mais difusos é encaminhar a postagem para a Central de Denúncias da Safernet. Pode ser encaminhado via contato online. A Sefernet tem alguns termos de cooperação com o próprio Ministério Público de vários Estados, então eles mesmos encaminham. Já houve vários casos, como aquele ainda da época do Orkut, em relação às cotas para ingresso às universidades, que resultaram em condenação. Houve ainda o caso de 2010 de uma acadêmica de Direito que fez publicações contra nordestinos, que também resultou em condenação. Ainda não se tem ideia do que vai se apurar em relação a essa eleição, pois foram muitas situações.

 Por fim, como educar a população para a cidadania na internet?

RLS: Aí temos um problema que eu identifico como uma questão de ausência de políticas públicas para a educação digital. E não falo aqui apenas do acesso, da inclusão digital. É necessário trabalhar outras dimensões para o uso das tecnologias. Temos que levar em consideração que estamos em um país de dimensões continentais, então ainda estamos discutindo levar a internet para as regiões Norte e Nordeste nas mesmas proporções que tem no Sudeste, Sul e Centro-Oeste, assim como levar para as regiões rurais, já que majoritariamente quem tem acesso está nas regiões urbanas. Essas questões que são do acesso têm ocupado as pautas das políticas públicas para a internet, e pouco tem se discutido a educação digital. A educação para a internet envolve a sociedade, o estado, a escola, as famílias – porque muitos dos usuários são menores de idade,  nativos digitais – etc. Então precisamos ciar um conjunto articulado de ações. Quando se fala em educação, não podemos só pensar na educação formal das escolas. É necessário que cada um de nós se envolva: denunciar, não curtir, não compartilhar. É necessário discutir para que as pessoas percebam que têm implicações, que acabe com a ideia de que não “dará em nada”. É necessário um trabalho preventivo porque a resposta por via punição é atrasada, sempre chegará tardiamente, pois a violação já terá acontecido. Então precisamos pensar preventivamente. 

 

ENTREVISTA: DRA. ROSANE LEAL DA SILVA FALA SOBRE ÓDIO NA INTERNET, pelo viés de Felipe Severo

 

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