A Constituição Federal de 1988, tão citada nas colunas anteriores, enfrenta numerosos problemas de implementação desde o seu surgimento. O momento excepcional de sua criação, de luta pela liberdade política, fez com que ela avançasse muito mais do que aqueles que mantiveram o poder desde então poderiam admitir. O resultado é uma gigantesca crise de efetividade, que pode ser percebida nos livros de direito constitucional: não existe sequer um deles que não lamente o fato de várias das normas que estabelecem as garantias da igualdade material e democracia substancial – diferente da igualdade perante a lei, que é meramente formal – serem feitas de papel. Em alguns casos, resta ao Judiciário garantir direitos sociais; em muitos outros casos, os cidadãos ficam a ver navios diante do frontal desrespeito à lei maior. O fato é que a maior parte dos constitucionalistas, hoje, quando tratam sobre direitos fundamentais – sejam eles individuais, sociais, difusos etc. – finalizam seus textos dizendo: a Constituição não se efetivará por meio da mera democracia representativa. Participação é mudança!
Os motivos pelos quais a democracia representativa enfrenta uma de suas maiores crises no Brasil não está distante de suas origens teóricas. Como todos sabem, tal modelo de democracia foi profundamente fomentado pelo liberalismo, logo após as revoluções burguesas de fins do século XVIII. Dos modelos filosóficos que antecederam as revoluções, não foi a democracia direta de Rousseau1, para quem a soberania não poderia ser representada, que triunfou, mas a de John Locke2.
Na necessidade de instituição da democracia, o medo do demos (povo, em latim) invadiu a burguesia, então nova detentora do poder político. O medo da tirania da maioria, tão alarmada por Tocqueville3, fez com que se aprofundasse a ideia de que a igualdade não poderia ser aplicada a todos os âmbitos da existência: o grande perigo proviria da multidão. Mesmo Stuart Mill4, que, em meados do século XIX, já defendia o voto das mulheres, propunha um sistema eleitoral que garantisse o primado dos mais meritórios e iluminados. A solução para o perigo da multidão começa, então, pela própria ideia de representação, com a limitação pela propriedade, pelo gênero e também pelo intelecto. Mesmo a questão da limitação do sufrágio pela propriedade não tinha caráter meramente econômico: a pobreza, para os liberais clássicos, seria um sintoma de uma incapacidade de autodisciplina e previdência5. Isso demonstraria a superioridade não somente patrimonial dos ricos, mas também moral e intelectual.
Dito isso, fica fácil compreender a monótona sensação de déjà vu que acompanhou a repercussão das eleições presidenciais deste outubro. Repetiu-se, como nos pleitos anteriores, a ideia de que “pobre não sabe votar”, além do ódio aos nordestinos. Trata-se de um discurso elitista e muito, muito velho, que tem na sua base nada menos do que o medo do demos. O voto como arma dos muitos que constituem minorias no poder, há muito vem sendo temido. O discurso do desarmamamento do povo tem vindo das maneiras mais sutis às mais retumbantes: desde a defesa da facultatividade do voto até surreais propostas de reinstauração de um tipo de voto censitário-iluminado e, agora, até mesmo o fim da democracia. Os poucos que “engordaram na ditadura”, como diria o saudoso Leonel Brizola, querem de volta suas mordomias, mesmo que às custas da liberdade dos muitos.
Um longo processo histórico se desenvolveu desde o surgimento daquela democracia liberal representativa até o sufrágio universal. O questionamento que se faz, então, é: o sufrágio universal é o ponto de chegada da democracia como forma de governo de um país?
A frase “das ruas às urnas” retumbou durante muitos dias durantes as manifestações de junho de 2013 e também nas de 2014, reforçando a ideia de que o legítimo exercício da cidadania está no voto. Contudo, não é possível afirmar que a democracia possa se bastar na representação. O art. 1º da Constituição Federal de 1988 institui um Estado Democrático de Direito, no qual “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
A participação popular, seja através dos meios institucionais – plebiscito, referendo, iniciativa popular, conselhos populares –, seja através de meios não institucionais, como as manifestações públicas, é uma urgência e um direito constitucional. A proposta do plebiscito da constituinte exclusiva da reforma política foi um exemplo de participação popular – obteve quase 8 milhões de votos – mas que pouco ou nada foi comentado pela mídia hegemônica. Agora, já sabendo que não é possível ocultar a necessidade de reforma, o congresso e mesmo a mídia buscam pautá-la, mas retirando a necessidade de uma nova eleição de constituinte exclusiva – afinal, os deputados seriam os representantes eleitos da sociedade.
Um dos pontos centrais da reforma política é acabar com o financiamento privado de campanha, que estimula a corrupção. Ao serem financiados por poderosos grupos empresariais, os políticos comprometem suas posturas não com os eleitores, que neles depositam seus votos, mas com as empresas que os financiaram. Contudo, a composição do congresso eleito – o mais conservador desde a redemocratização – demonstra que tal reforma seria impossível.
Ao fazer uma breve análise de quem foram os candidatos eleitos para a Câmara dos Deputados (onde estão os representantes da plebe, o baixo clero), alguns dados, apesar de não surpreenderem, ainda parecem ser ignorados: 47,9% dos deputados eleitos possui patrimônio que corresponde a mais de R$ 1 milhão (veja abaixo o gráfico com os dados por partido). Dos 513 deputados, apenas 51 são mulheres, menos de 10%. 80% se declaram brancos. É como se vivêssemos, de fato, no século XIX. A quem efetivamente essas pessoas representam? É possível uma reforma política que contemple os interesses dos muitos – o combate às raízes institucionais da corrupção, a efetivação dos direitos sociais, a participação nas decisões políticas etc. – em um congresso em que os poucos apenas representam outros poucos?
Cidadania, na democracia representativa, realiza-se uma vez a cada dois anos. Cidadania, na democracia participativa, realiza-se todos os dias. A fiscalização dos poderes públicos, mas também o apoio a políticas de Estado que encontram oposição no parlamento, deve ser realizada pelos cidadãos na democracia participativa. Se o que percebemos, na voz desses poucos representantes dos poucos, é a tentativa de calar o povo, não é através da representação política que teremos voz. O ódio instaurado ao Decreto Presidencial nº 8243/2014, que institui a Política Nacional de Participação Social, reconhecendo a participação política como direito fundamental, demonstra aquele mesmo medo de outrora. Renasce e se difunde, através da carta coringa do antipetismo, o medo do demos.
Se o que desejamos é poder participar da política diretamente, através ou não das instituições, quem irá agendar esse poder aos políticos serão os detentores da soberania popular, o povo. Está claro que a mídia possui um importante poder de agendamento da política em várias áreas. Os veículos hegemônicos de comunicação, contudo, representam ainda mais os interesses dos poucos. Assim, a desconfiança que se tem instaurado historicamente em relação aos detentores do poder executivo nacional não se justifica quando conhecemos as suas pautas e reconhecemos sua obstrução pelo parlamento composto por homens, grandes proprietários brancos que o compõem. Cabe, sim, ao povo, também ir às ruas para apoiar pautas que estão obstruídas, mesmo quando isso implica em apoiar o governo. Não adianta termos eleito uma presidenta se depois não a apoiamos massivamente, frente à aberta oposição do parlamento e da mídia hegemônica às propostas mais progressistas apoiadas pela maioria dos eleitores que nela votaram.
Se todo poder emana do povo, é hora do povo tomar as rédeas desse poder. Do contrário, continuaremos lendo e relendo as lamentações dos constitucionalistas quanto à inefetividade da Constituição Federal. E a exceção (o governo de poucos) vai se consolidando como regra.
A exceção e a regra IV: a demonização do demos, pelo viés da colaboradora Marília De Nardin Budó
Leia também: A Exceção e a Regra I: Prólogo.
A Exceção e a Regra II: a ressureição de Bakunin e Lombroso
A Exceção e a Regra III: A realidade da prisão perpétua no Brasil
Série Completa A Exceção e a Regra.
1 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2006.
2 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Coleção os pensadores 5 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 268-274.
3 TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. 3. Ed. São Paulo: Itália, 1987.
4 MILL, Stuart. O governo representativo. Coleção Grandes obras do pensamento universal, v. 56. São Paulo: Escala, 2006. p. 138-139.
5 COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010.