O significado da vitória suada de Dilma Rousseff (PT) sobre Aécio Neves (PSDB) vai muito além da mera disputa entre duas lideranças políticas de campos distintos. É a vitória de um projeto macro sobre outro, mas uma vitória apertada, decorrente de diversas circunstâncias político-sociais que se complementam e que trazem novidades importantes em relação às últimas eleições. O avanço do PSDB é, também, parte do mesmo processo que elege um Congresso com uma cara diferente, ainda mais conservadora e elitista do que a representação de um Brasil falsificado que já estava lá.
O primeiro elemento a ser considerado é o círculo que se estabelece quando um governo consegue melhorar a qualidade de vida das pessoas, reduzir a miséria e acrescentar consumo, mas não conduz esse processo tendo como pano de fundo um outro processo, de politização, de fortalecimento do trabalho de base e de transformação da consciência. Em seu livro Lulismo – Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira, Rudá Ricci defendeu que estava emergindo uma “nova classe média” extremante conservadora, o que agora se confirma. Essa “nova classe média” em boa medida abandona nesse momento o projeto que em 12 anos possibilitou a ela um importante incremento de consumo e melhorias nas condições mais básicas de vida. Paulo Freire escreveu com precisão: “se a Educação não é libertadora, o sonho do oprimido é transformar-se em opressor”. Esse é o ponto fundamental do conservadorismo de boa parte dos setores que ascenderam socialmente com o PT. Não é o caso dos que saíram da miséria, como mostra a setorização dos votos, mas trata-se dos que estão imediatamente acima na escala de ganhos materiais.
Existe apenas uma forma possível de quebrar esse ciclo: politização, construída com perspectivas de curto, médio e longo prazo, através de debate político franco, intenso trabalho de base pelos partidos e organizações, democratização dos meios de comunicação, e transformação do modelo de Educação em um caminho para a autonomia e a emancipação. Nada disso foi feito nos doze anos em que o PT esteve à frente do governo federal, o que, embora não anule os avanços na dignidade de uma parcela importante da população, mantém a situação de alienação – encobrimento da realidade – que, por sua vez, alimenta o ciclo descrito anteriormente.
É como um misto de quebra e manutenção desse ciclo e de quebra e manutenção dessa alienação, que surge Junho de 2013. Com diversas pautas específicas, começando pela luta por um transporte público de qualidade e se expandindo indefinidamente, o que ficou claro foi um incômodo e um consequente sentimento de mudança. A própria mobilização, a ida para as ruas em bloco, o aprendizado sobre a possibilidade de movimentar-se e, assim, sentir as correntes presas às mãos, cria um lastro de politização. Ao mesmo tempo, dificuldades de organização e fatores externos aos movimentos – basicamente o ciclo despolitizado e despolitizante apontado acima – criam dificuldades importantes. Não me aprofundarei na análise das manifestações de junho do ano passado, mas elas precisam ser citadas e lembradas ao menos rapidamente para chegarmos no seguinte: esse sentimento de mudança não conseguiu encontrar eco eleitoral nem nos partidos que compõem o governo, nem na oposição de esquerda – partidária ou de base. Com dificuldades de compreender a complexidade da disputa política, sem aprofundamento na análise das variáveis colocadas nessa disputa, a ideia de mudança pode fazer com que o apoio caia no colo de qualquer um que pareça representa-la. Foi isso o que aconteceu com Marina Silva (PSB), até que o PT conseguiu desconstrui-la como essa representação. Depois, a simbologia migrou para Aécio. Ao mesmo tempo, nas eleições para o Congresso, a escolha foi por uma bancada mais à direita, por motivos semelhantes.
Mas porquê apenas a direita – ou principalmente ela – parece ter capitalizado esse sentimento em grande medida despolitizado de mudança? As razões têm estão em três eixos: a natureza do discurso da própria direita; as dificuldades da esquerda; as limitações do sistema político brasileiro / burguês.
- A natureza do discurso da própria direita: a velha direita, em parte fora do poder ou ao menos não estando diretamente com as mãos nas rédeas do Estado, constrói seu discurso através do (falso) moralismo, tendo as acusações de corrupção contra o governo como mote político fundamental. Isso porque nunca pôde, em qualquer lugar do mundo, defender abertamente os fundamentos básicos de sua linha de defesa social, pautada por interesses de cerca de talvez 5% da população, os mais ricos, proprietários dos meios de produção. Então, esconde esses preceitos, e traz o moralismo e a obviedade como estandarte. O discurso é fácil, muito mais simples do que explicações profundas sobre o funcionamento da sociedade e as disputas sociais envolvidas nessa dinâmica. Como vivemos imersos em alienação, o discurso fácil e superficial, cola. Como, ao menos em princípio, ninguém é a favor da corrupção, o discurso moralista cola. Por fim, como a mídia está nas mãos desses grupos políticos, ganha destaque a corrupção de seus adversários e apaga-se a dos aliados.
- As dificuldades da esquerda: com a chegada de um projeto de centro-esquerda ao governo federal, houve um rearranjo das forças de esquerda, rearranjo esse que segue em processo de acordo com as dinâmicas das organizações e do próprio governo. Com alguns movimentos populares perdendo protagonismo – inclusive com parte da organização sindical se tornando mais vinculada ao governo do que a sua própria base – outros emergem, mas com dificuldades de se posicionar-se no espectro político frente a um governo tão rico em contradições – ao contrário dos oito anos de governo do PSDB, quando as práticas e os discursos se estabeleciam com clareza pela direita. O trabalho de base voltado à criação de consciência política transformadora é raro, as organizações não conseguem grande inserção, e os partidos de oposição de esquerda ainda engatinham aos tropeços, com as dificuldades próprias de organização potencializadas pelo sistema político.
- As limitações do sistema político brasileiro / burguês: qualquer sistema político de corte liberal / burguês, expressão do capitalismo na política institucional é, essencialmente, tendente à conservação e, por extensão, resistente à transformação. No caso do Brasil, esse problema é claro: muda-se não mudando. A estrutura partidária é pouco democrática, as instituições de decisão popular são fracas ou inexistentes e há pouca participação na política cotidiana, tudo isso como causas e consequências de um sistema político elitizado e concentrador. De dois em dois anos, vemos com mais clareza uma face específica desse problema: um sistema eleitoral igualmente limitador, no qual os poderes econômico e midiático acabam por ser decisivos, o que faz crescer o apelo da direita e das elites – que controlam esses poderes – e enfraquece alternativas de esquerda e populares, marginalizadas da lide política cotidiana, institucional e eleitoral.
Por tudo isso, quem acaba por receber no colo o sentimento de mudança é a direita, são as elites, as oligarquias.
No caso específico da disputa presidencial deste ano, acrescente-se aos elementos elencados desde o início deste artigo a campanha violenta de parte do PT contra Marina Silva, e temos a tendência de migração dos votos que se mantiveram nela no primeiro turno diretamente para Aécio Neves. O antipetismo, nascido do discurso das elites ainda no tempo em que o PT era oposição, e reforçado constantemente pelo setor dominante da mídia, aprofundou-se por conta da campanha negativa contra Marina.
A polarização, potencializada pelas redes sociais online e sua característica de disputa quase surda e sem ambiente controlador – ou seja, com o sujeito mais à vontade para tornar-se agressivo, estimulado por uma sociedade individualizante, egoísta e narcisista – é também reflexo do que foi a campanha no primeiro turno, e traz ainda a carga de otimismo do PSDB e de seus aliados que, desde que saíram do governo, nunca estiveram tão próximos de retornar a ele.
Com a vitória apertada de Dilma, mantém-se no governo o projeto do PT, e a possibilidade de que Lula possa ser o candidato em 2018 pode trazer certa acomodação. Por outro lado, abre-se, a partir dos últimos movimentos da velha direita na campanha, um “terceiro turno”, e a necessidade de garantir o respeito à decisão das urnas passa também pela compreensão da necessidade de construir uma nova consciência social, responsável e transformadora, permitindo que a população se sinta – e seja – parte efetiva da política. De qualquer forma, abre-se um novo ciclo, em que essa e outras questões deverão estar em pauta – seja finalmente trazidas pelo governo, seja forçadas pela necessidade, ou seja pautadas pelos movimentos populares e pela oposição de esquerda.
ELEIÇÕES 2014: A VITÓRIA DE DILMA E A CRÔNICA DE UMA QUASE TRAGÉDIA ELEITORAL ANUNCIADA*, pelo viés de Alexandre Haubrich.**
*Texto originalmente publicado no blogue JornalismoB.
**Haubrich é jornalista, cientista social e editor do blogue JornalismoB e do JornalismoB Impresso, jornal independente distribuído gratuitamente nas ruas de Porto Alegre e, através de assinaturas, para todo o Brasil. Colabora com diversas publicações, entre elas a revista o Viés. Leia outros textos publicados por Haubrich na revista o Viés aqui.