A vida na beleza da margem

*Título livremente inspirado no blog A beleza da margem, A margem da beleza, de Rafael Lage

Chambinho, pelo viés de Graciane Martini.

 
Santa Maria, cidade universitária no centro do Rio Grande do Sul, propaga o emblema de lugar acolhedor. Destino provisório de milhares de estudantes que chegam todo ano para buscar nas ladeiras íngremes da cidade as possibilidades de uma vida nova, o município vive tempos interessantes no que diz respeito à luta pelos direitos de fruição do espaço público. Ainda que, quase dois anos passados, os efeitos da tragédia na boate Kiss (que vitimou 242 jovens num incêndio em janeiro de 2013) sejam sensíveis na cidade, é bastante significativa a onda de ocupações culturais que vem desafiando a equação convenientemente composta por negligência administrativa e projetos de privatização dos espaços públicos – não raro, dissimulados sob a estratégia de uma indefinida “parceria público-privada”.
Entretanto, o emblema do acolhimento – muitas vezes super-estimado nas campanhas publicitárias para atrair novos consumidores ao mercado local – é cada vez menos efetivo em termos universais. Comprovam isso as recentes manifestações bairristas que marcaram o debate sobre o fim do ingresso via vestibular na Universidade Federal de Santa Maria – com direito a arroubos de xenofobia quanto à possível “invasão” de estudantes de outras regiões do país -, e, ainda mais comum, a perseguição sistemática aos trabalhadores informais que circulam pelo centro de Santa Maria. O acolhimento, este que é tema de singelos jingles comerciais a sugerir uma cidade de braços abertos para todos, esbarra no preconceito arraigado contra os indesejáveis.
E se há grupo que melhor encarna o signo do indesejável, este grupo é o dos artesãos nômades. Errantes urbanos, acostumados a longas travessias pelo país e dependentes da própria produção para sobreviver, os “malucos de estrada” – como eles e elas mesmo se denominam – não se encaixam no ideário de cidade higiênica resultante da associação entre especulação imobiliária, interesses comerciais e moralismo de classe. São inconstantes, pouco afeitos à burocracia, despojados dos bons modos burgueses e anárquicos demais para o gosto da militância partidária. Em consequencia da postura indômita, dificilmente mobilizam apoiadores em sua defesa. O que não quer dizer que sejam incapazes de fazer barulho pelos seus direitos.
Segundo Rafael Lage – artesão e documentarista mineiro com quem conversei via chat numa das breves paradas que ele fez para conectar durante o retiro que está fazendo na Chapada Diamantina – em Belo Horizonte, capital conhecida pela truculência com que a polícia local trata os artesãos, a situação está sendo revertida graças a iniciativas auto-organizadas dos malucos. “BH esta liberada para exposição dos malucos desde novembro de 2012, por força de uma liminar que conseguimos através de uma Ação Civil Pública, que foi escrita por nós em conjunto com a Defensoria Pública. É na verdade um inventário cultural travestido de processo juridico.”
Rafael, que dirigiu, montou e agora está tratando de lançar o documentário “Malucos de Estrada”, também destaca a sabotagem da gestão municipal contra a decisão judicial que liberou a atividade dos artesãos no centro de Belo Horizonte: “Desde a decisão liminar, a prefeitura decidiu interromper qualquer tipo de fiscalização na cidade, o que acabou facilitando o retorno dos camelôs. E a imprensa convencional cria a narrativa de que a liminar é que trouxe de volta os camelôs, sem explicar o óbvio, que na verdade a prefeitura é que esta prevaricando, não cumprindo sua função de orgão fiscalizador. É uma tentativa clara de criminalizar a decisão a nosso favor”.

Sobre a natureza da atividade dos malucos, Rafael afirma com convicção: “A gente não luta pela atividade comercial e sim pela manifestação da identidade cultural do movimento. É importante destacar isso.”

Voltando para a situação em Santa Maria, encontramos várias correspondências entre o contexto da capital mineira e os problemas enfrentados pelos artesãos nas bandas da Boca do Monte. Sobre o momento atual, mas também sobre os percursos que marcaram uma trajetória de quase vinte anos de nomadismo, conversei com o Carlos Bauer, figura constante entre os panos de exposição estendidos no centro da cidade. Nascido na pacata Três Passos, Carlos – ou, para quem o conhece das ruas, Chambinho – saiu de casa para juntar dinheiro e ver o mar. Numa tarde de primavera promissora, às vezes interrompido pela curiosidade dos passantes, Chambinho me falou sobre ser um maluco e viver na beleza da margem.

Foto: Graciane Martini

 revista o Viés: Quando tu começou a trabalhar com artesanato, a trazer pra rua teu trabalho?

Chambinho (C): Antes eu era estudante, era careta (risos). Fazia o Técnico em Agropecuária na Universidade Federal de Santa Maria, vivia lá na Moradia Estudantil do campus. Na época, como uma pessoa desafortunada, eu queria conhecer o mar. Daí eu conheci uns artesãos, aqui no calçadão mesmo, comecei a observar, a fazer algumas perguntas pra eles, assim, aleatórias, pra não incomodar muito, né. Depois eles me ensinaram a fazer dois pontinhos (do artesanato em arame), na época eles não ensinavam ninguém a fazer nada, sabe? Na época em que eu comecei era muito difícil alguém ensinar o outro a fazer artesanato. Daí eles me ensinaram dois pontinhos e eu comecei a fazer. Daí fiz a minha primeira viagem no final de 1997, pra entrar no verão de 98, que daí eu conheci o mar. Fui pra Ilha do Mel, lá foi onde eu expus pela primeira vez o meu trabalho. Fiquei lá um tempo, fui pra passar duas semanas, mas queria conhecer as outras praias, acabei ficando um mês. E daí lá eu conheci os ditos “malucos de BR”, assim, que ficam viajando e coisa, e só fazem isso da vida. Dali eu conheci uma pessoa assim que me falou: vamos dar um rolê lá em São Paulo, e eu já pensei, São Paulo, Minas, que nem aquela música, queria ver tudo que tinha na TV, tipo o João do Santo Cristo, tá ligado (risos)? Queria ver as coisas que eu via na TV, né, cara? Daí comecei a viajar, desde então eu nunca mais parei, nem de fazer artesanato nem de viajar. Passei a conhecer a metade do Brasil, assim, do centro pra baixo, depois quase todas as regiões de todos os estados…
 Sempre viajando de carona?
C: Isso, viajando de carona no início, porque depois começou o negócio de muito furto e tal, daí eu sofri demais com isso. Um dia eu tava na BR 381 (em Minas Gerais), daí eu passei três dias num posto de gasolina, sem poder sair porque ninguém me dava carona, daí eu saí de caminhada. De Pouso Alegre até Varginha,  caminhei até Varginha e ali eu consegui uma carona porque eu tava caminhando de costas e o cara pensou que eu era uma mulher (risos). Tá entendendo? Daí eu fui até Belo Horizonte, então eu decidi que passaria três dias a mais dentro da cidade…
 

Neste momento, uma senhora interrompe nossa conversa:
Tem broche?
Broche eu não tenho não, moça – responde o Chambinho, lamentando desperdiçar a oportunidade de fazer um dinheiro pela falta do produto procurado.

 
C: …daí eu peguei e fui até lá, decidi ficar três dias a mais dentro da cidade do que fritando no posto de gasolina. Não que nunca mais eu tenha viajado de carona, e coisa. Sempre, né, cara? Sempre viajo de carona. Mas teve um momento que ficou mais difícil de conseguir carona. Daí comecei a me profissionalizar mais no artesanato, a vendê-lo, porque não adianta só saber fazer, tem que saber vender, as técnicas que se usa etc.
 E Chambinho, desde que tu começou a trabalhar com artesanato na rua, tu acha que a condição do artesão melhorou ou piorou, em termos de preconceito?
C: Olha, com os meios de comunicação, com a Internet, essas coisas, a gurizada que vem hoje, não é que simpatizem total com a gente, só que eles já não nos marginalizam tanto como nos anos 90 e antes. Mas até hoje existe este negócio, que o nosso tipo de artesanato, esse negócio de expôr na rua, esta vida nômade, ainda pra muitas pessoas isso é coisa de vagabundo, de quem não quis nada de nada na vida, e coisa. Ainda continua sendo assim, cara. Tem um estigma de vaganundo sobre o artesão, o hippie.
 Muito se discute sobre a diferença entre arte e artesanato. Pra ti, existe esta diferença?
C: Eu acho assim, cara. Eu acho, porque eu estudei um pouco sobre isso também. No meio acadêmico, eles diferenciam muito isso. Só que nós, pra nós, o artesanato é assim, tu usa uma certa técnica várias vezes, tá entendendo? Repetidas vezes a mesma técnica, ela não muda tanto. Só que eu como artesão posso fazer um produto de arte, assim como os artistas podem fazer às vezes o próprio artesanato. Na própria arte deles, repetindo a mesma técnica, é isso que eu penso a respeito. Pra mim, mesmo, não tem muita diferença. Também não vou dizer que os caras lá não são os “artisitão”, que são bons mesmo, fazendo uma coisa única, com técnicas variadas que eles tem dentro deles. Mas eu não vejo muita diferença, não. É que no meio acadêmico, que eu já andei lendo, eles diferenciam muito sim, por causa desse negócio da nossa produção em série. Que é o que o produto de arte não faz. Por isso que eu digo que às vezes eu faço produto de arte, porque eu crio peças únicas também, que não repito nunca. Até quando eu vou comercializar o meu produto eu digo, este é um produto que não haverá outro igual. Se houver, eu devolvo o dinheiro.
 E Santa Maria, que é um lugar onde tu vive e trabalha muito, como é o tratamento que o Poder Público dispensa aos artesãos aqui? Qual é a luta de vocês hoje na cidade?
C: A situação em Santa Maria hoje, por incrível que pareça, sendo chamada “cidade cultura”, é o pior tratamento que nós estamos tendo nos últimos tempos. Eles não estão deixando a gente expôr nosso trabalho, entramos com um requerimento e coisa, e vetaram também que nós não podemos usar nenhum espaço público na cidade, a não ser lá na Gare (antiga estação férrea de Santa Maria) ou outro lugar que não tenha transeunte. Já foi melhor, porque antes, quando eu comecei a fazer artesanato, o nosso espaço era em cima da passarela do Behr (viaduto central da cidade). Era um espaço destinado pra nós, artesãos nômades. E tinha o espaço destinado aos artesãos fixos que era na praça (Saldanha Marinho). Depois da construção do shopping popular eles reduziram, e como o artesanato é isento de imposto, e é um estilo de vida, não é só trabalho, a prefeitura passou a boicotar isso. Eles vem por meio da fiscalização impedir a gente de trabalhar. E mesmo assim, a gente nota que a população de Santa Maria gosta da gente. Porque nós temos clientes assíduos, que não é nem cliente, que são pessoas que gostam de vir aqui, conversar, porque a gente não é comerciante. Nós não somos simplesmente comerciantes, nós somos cultura popular, um estilo de vida, uma cultura que passa para as pessoas também, sabe? E mesmo com a Constituição Brasileira dizendo que qualquer manifestação artística é permitida em espaço público, eles nos proibiram de ficar trabalhando aqui. Já houve um governo que deu a praça pra gente ficar, já foi melhor. Mas com a construção do shopping popular fizeram a dita “limpeza” nas ruas, que eu não chamo isso de limpeza, porque limpeza é tirar os buracos da rua. A gente não é sujeira. E agora, neste exato momento que a gente tá conversando, a gente tá aqui porque conseguiu uma negociata com eles, mas hoje fomos buscar o papel da nossa requisição e ela foi boicotada de novo, por duas leis municipais, que só podem mudar se forem votadas na Câmara dos Vereadores, pra gente poder ficar expondo aqui.

Foto: Graciane Martini

 Então este espaço que vocês estão utilizando (no Largo da Rua do Acampamento), é ocupado clandestinamente? A prefeitura não concedeu a vocês o direito de ficarem aqui?
C: Mesmo com a Constituição Brasileira dizendo que temos direito, eles não deixam. Eles vetaram o espaço, hoje a gente tá aqui porque a fiscalização não chegou ainda. Nossa cultura é Patrimônio Cultural da humanidade, é a mesma coisa que os indígenas, os quilombolas, porque é uma cultura passada de geração pra geração, desde que existe o costume de viajar e trocar artesanato. Na verdade, a gente nem vende, né? A gente troca por dinheiro, porque neste mundo que a gente vive hoje ninguém vai vir aqui me dar uma passagem de ônibus por um trabalho. Ninguém vai vir me dar um pão, um feijão, um gás, uma diária de hotel, dizer que eu posso ir lá. Eu vou ter que trocar por dinheiro, porque é o sistema vigente que nós temos hoje.
 Mas eu já vi tu “magueando” um cigarro, uma bebida, em troca de um brinco ou um colar, por exemplo (nota do entrevistador: “manguear” é uma gíria corrente entre os artesãos nômades, que alude ao ato de abordar pessoas na rua e convencê-las a adquirir, por meio da troca ou da compra, algum produto oferecido pelos mesmos).
C: Rola também, sempre. Eu até preferiria que fosse tudo em forma de troca. Trocar tudo, se pudesse abrir mão da grana.
 Existe alguma forma de organização no Brasil que defende a luta pelos direitos dos artesãos?
C: Nós, malucos de estrada, que passamos viajando, é meio individual o negócio. Mas quando a gente se encontra, a gente luta pelos nossos espaços, pelo próprio bem-estar de todos, se ajudando. Em Belo Horizonte, que era o pior lugar pra artesãos no Brasil, que a prefeitura não deixava a gente trabalhar de jeito nenhum, com agressão policial inclusive, tomavam o artesanato, cobertor, tudo, lá a galera se organizou. Tem até o pessoal que fez o filme “Malucos de Estrada”, eles conseguiram apoio de um vereador e mudaram a lei do município. É o que a gente tá tentando fazer aqui também.
 E aqui em Santa Maria existe um vereador que poderia ser este canal?
C: Nosso maior problema é esse. Nós não temos ninguém do poder público, do legislativo, que nos apoie. É a gente pela gente. E vou dizer outra coisa: a gente não vai sair daqui. A gente vai sair, mas a gente vai ali, vem aqui, ou vem outro em nosso lugar. Sempre vai passar alguém, um artesão por aqui. Cidades são cidades, elas são livres para as pessoas. Eu não vou sair daqui.
 E esta opção por viver do modo como os artesãos vivem, tu diria que é uma forma de resistência ao modo de vida capitalista?
C: O nosso estilo de vida é resistência, sim. Isso eu tenho certeza, porque como eu já disse antes, pelo preconceito que a gente sofre, pelas más-condições de trabalho, pela insistência no modo de vida, apesar de tudo. Não vou dizer que é totalmente contra-cultural, porque eu também colaboro com a máquina, eu também pago imposto quando compro as coisas. Só que eu não pago imposto para trocar o meu trabalho. E é isso o que mais importa pra mim: eu quanto menos impostos pagar para poder viver simplesmente, porque eu quero simplesmente viver, eu acho que isso é contracultura. As pessoas se chocam, tá entendendo? “Como esse pode tá sentado ali no chão, como pode tá comendo em cima de uma sacolinha?” Isso é contracultura. Hoje até os cachorros da rua tem mais direitos que a gente, ganham mais comida que a gente. Nada contra os cuscos, né, mano? Mas eu não sou cachorro não! (risos)
 Pra terminar: tu se considera um hippie?
C: Não.
 Por que não?
C: Porque hippie foi um movimento com começo e fim. Eu sou maluco de BR.
Foto: Graciane Martini

A vida na beleza da margem, pelo viés de Atílio Alencar.

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