Dias de cão eram dias de Copa em um insensato mês de julho, talvez o mais insensato julho desde o novo milênio. O Brasil não sabia mais o que esperar. Estagnado, amorfo, anacrônico e encrustado no sofá da sala, com os dedos alaranjados de pipoca com sazon, não era o Brasil que parava para assistir aos jogos da Copa do Mundo, mas os povos do mundo que através da televisão assistiam atônitos aquela depressão de classe média de meia-idade. Aquele cômodo tipicamente suburbano, do condomínio verde da América Latina, na zona sul de Porto Alegre, host city do mega-evento, carregava em si, em seu ambiente, no interior daquelas paredes mal decoradas, toda uma sensação de que alguma coisa não dera certo. Essa coisa, de fato, recém tinha chegado da assessoria de imprensa em que trabalhava, e transpirava por entre as axilas debaixo daquele sobretudo puro de lã, que não fechava os botões desde o ano retrasado. Lá estava o Brasil, solitário, assistindo passivamente tudo que os canais da TV por assinatura lhe ofereciam naquele dia, zappeando o controle com o desejo subjetivo de parar automaticamente em algum lugar do destino que lhe confortasse, lhe abrisse caminhos ou que pelo menos rendesse um bom assunto para publicar no facebook. Este era o jornalista Brasil, sua existência podia ser simplificada nesta busca por likes, no estabelecimento de uma zona de conforto que lhe proporcionasse quaisquer noção de sintonia.
Todos do escritório teriam folga para assistirem Brasil x Colômbia na Copa do Mundo. A experiência de confraternizar dentro do ambiente de trabalho, durante um jogo eliminatório, foi completamente frustante para os chefes do Brasil. Ele ficou o tempo inteiro raivoso, aos berros, dizendo que o time teria que perder, que as cosias como estão não estão dando mais, que nunca se roubou tanto como nesta Copa, que era preciso uma intervenção urgente. Era ele dizendo isso com um copo de refrigerante nas mãos e comendo cachorro-quente, enquanto os colegas – fantasiados com fardamentos da seleção, alguns pintados de verde e amarelo, fazendo selfies de chapéu e vuvuzelas – roíam as unhas e permaneciam encolhidos diante da TV. O Chile pressionava, pressionava, o Brasil fazia eco para que a seleção terminasse ali mesmo seu sonho de hexa, e este clima perdurou ao longo do segundo tempo, da prorrogação e até o último pênalti defendido pelo Júlio César. Alguns segundos antes, quando o Brasil disse qualquer coisa sobre o Neymar, quando ele pegou na bola, todos os cenhos dos colegas de trabalho se voltaram para ele, e viraram posteriormente com desprezo. Ele foi embora no meio da algazarra que se formara no escritório, saindo pela tangente, carregando a pança pelas escadas para não ter que aguardar o elevador com ninguém por perto. A partir daquele dia estava sacramentado o fim dos happy hours da assessoria, a desistência da tentativa de integração e convívio harmônico, e, uma vez que não se pode demitir ninguém por justa causa pelo fato de ser pedante ou imbecil, todos da firma ganharam o privilégio de assistir ao próximo jogo em casa, bem longe do Brasil. Mais uma vez, era ele, encrustado no sofá, com o notebook no colo, zappeando alguns canais e voltando para o jogo. Em um desses momentos ele perdeu o golaço do David Luiz, mas estava concentrado quando o Neymar saindo de campo na maca, a tempo de ser o primeiro de postar na timeline um “agora-vai” exitoso.
Seu patriotismo era na verdade uma revanche ao governo, uma tentativa de transferir para o universo do futebol tudo aquilo que era assunto de política e economia.
O jogo contra a Alemanha foi o melhor momento do Brasil em 2014. Ele até se propôs a não torcer o nariz a priori. Estava em casa, aparentemente tranquilo de chinelos de dedos e pesquisando vídeos engraçados na internet. Não resistiu ao placar, e a partir do segundo gol fez uma postagem para cada vez que a Alemanha balançava as redes do Brasil. Seu patriotismo era na verdade uma revanche ao governo, uma tentativa de transferir para o universo do futebol tudo aquilo que era assunto de política e economia. Com comentários de mau gosto, o Brasil fazia coro ao Mineirão lotado, que vaiava a seleção em sua maior derrota da história. O dia mais difícil para os brasileiros dentro da disputa da Copa do Mundo foi o dia que o canonizou como uma das novas aberrações da internet. Ele até achou que estava fazendo sucesso quando alguém compartilhou algum trocadilho com o número sete, de tomar sete gols e pintar o sete nas urnas, algo parecido, mas na verdade era um ironia, e rapidamente começaram os comentários pedindo para que ele estudasse, lesse, se informasse antes de publicar qualquer conteúdo controverso. Mas ele não parou. Publicou uma foto sua com uma camiseta da Alemanha. Algumas pessoas ali mesmo desistiram do Brasil, deram um unfollow no seu perfil enquanto outros foram mais diretos, com xingamentos mais desaforados e desfazendo a amizade virtual. Ele foi trabalhar no dia seguinte com a camiseta da Alemanha, e todo aquela euforia contra o Brasil agora era agora uma euforia a favor dos alemães, dos seus descentes da quarta colônia. A Copa do Mundo começava com cinco jogos de atraso para o Brasil e no domingo ele procurou sem sucesso uma carreata pelas ruas de Porto Alegre. Ele até notou um ambiente ostensivo no trabalho, mas relevou, ficou calado até o fim do mês para que todos esquecessem. O esforço, no entanto, não surtiu efeito pois agora o bordão “imagina na Copa” tomava nova forma somando alguma mazela do país com um “gol da Alemanha”. Era sua campanha antes da abertura do período eleitoral.
Depois do fim dos jogos da Copa do Mundo, com a aproximação do início das eleições, a confirmação dos primeiros candidatos, ares de contestação já pululavam na internet e o Brasil voltou a ter novos e assíduos seguidores, notadamente os que assumiam uma postura anti-governo e especialmente os que formavam a defesa do militarismo a partir de uma postura anti-PT. Foi em uma quarta-feira que o Brasil abrira seu voto, para todos aqueles que tivessem interesse em saber, era o dia 13 de agosto e mais uma cobertura massiva da grande mídia tomava conta de todos os noticiários de emissoras de rádio e televisão: morria o candidato a presidência pelo PSB Eduardo Campos, em um desastre aéreo na cidade de Santos, litoral de São Paulo. O Brasil voltara do almoço um pouco mais cedo, passava um café na cafeteira da firma quando ligou a elevisão e viu a Sandra Annenberg e o Evaristo Costa chocados atrás daquele mezanino de noticiário vespertino. O clima definitivamente era de comoção nacional mesmo nos locais mais distantes de Pernambuco, reduto eleitoral do candidato, e ninguém ousaria fazer qualquer comentário diferente de prestar solidariedade à família e aos correlegionários da sigla. Ninguém exceto o Brasil, que de dentro do banheiro da firma, lutando contra o refluxo e a azia que lhe rompia o estômago, já estava a postos para anunciar mais uma verdade que ninguém sabia: depois de o PT vender a Copa do Mundo a FIFA, que repassou aos alemães antes mesmo dos jogos começarem, o PT agora era quem estava por trás do ataque ao avião de Eduardo Campos, que, conforme confabulou, deteria plenas chances de vencer a eleição durante o segundo turno, por ele ser do nordeste e poder fazer frente aos programas sociais que ele classificava como uma política de coronéis. A verdade para ele era tão lancinante, fazia efeito tão rápido, era tão fácil conectar os assuntos separados insistentemente pelas editorias que nem era preciso mais fazer quaisquer apuração de método jornalístico, era só seguir o instinto, as notícias cheiravam a pão assando, e só ele seria capaz de tirar tamanhas atrocidades do forno. Estava embrenhado em sua guerrilha virtual desde a mesa do trabalho, uma luta frenética contra uma legião abstrata de desinformados. Os outros colegas tinham um grupo secreto no facebook onde copiavam e colavam as postagens do Brasil, para rir e se desesperar confortável e coletivamente. Para eles, o Brasil estava passando dos limites, com todos os clientes em seu grupo de amigos, estava colocando a reputação de todos em risco com cada raciocínio que formulava. Era humilhante e um fardo deveras pesado dividir o status de trabalhar em um mesmo local com uma pessoa tão boçal e, se nem os consiglieres da máfia tinham vida longa, mesmo o Brasil sendo amigo do rei, era preciso alertar o chefe antes que a podridão do reino da Dinamarca obrigasse uma reformulação geral da equipe. A campanha nem havia começado e todos já se sentiam com a cabeça a prêmio.
O Brasil parecia cada vez mais desconexo da realidade cotidiana. Calado, paciente e ordinário passava os dias a meditar a melhor estratégia de promover seu pensamento na internet. Seu público havia voltado a dar likes e os mais fiéis arriscavam um comentário e um compartilhamento. Mesmo depois da Copa, quando alguns pontos vieram à tona com força e ele começou a ser questionado, rapidamente conseguiu dar uma guinada e retomar seu patamar de formador de opinião de rede social. Estava feliz por isso, enquanto os colegas pensavam a melhor maneira de se livrar dele de uma vez por todas, ele pensava em criar novos canais para omitir opiniões, pensou em um blogão destes ao estilo Políbio Braga, mas a regularidade e compromisso que isto requereria era tarefa demais para um oportunista de plantão. Enquanto as pessoas tentavam recém reconectar às suas rotinas normais, percebendo que uma eleição viriam logo ali em frente, que o ano de 2014 seria realmente um ano e tanto, ele já tinha traçado algumas estratégias de comportamento bem delineadas. Clamou para que a viúva do Eduardo assumisse a candidatura, mas em um primeiro momento se contentou com a oficialização da vice da chapa, Marina Silva. Isso durou pouco: um coronel reformado com quem se comunicava frequentemente lembrou que ela tinha sido ministra de Lula, assim como Dilma, e que o caminho para a mudança e combate a corrupção estava com Aécio. Ele se comprometeu com o militar, mas disse que manteria seu apoio pelo menos até o final do mês, pois estava muito entusiasmado e conseguindo manobrar positivamente vários contatos de seu facebook. Valeria a pena esperar, disse ele, a esta altura a justiça já tinha mandado devolver o helicóptero apreendido com 445 quilos de cocaína para a família Perrela e rapidamente ninguém lembraria mais disso. Ele estava entusiasmado para assistir aos primeiros debates na televisão. Essa eleição seria seu grande estandarte. Era a estratégia para o mês de agosto.
O Brasil de julho/agosto, pelo viés de Calvin Furtado.
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