Ano 1997, três fatos: o poeta, pesquisador, ex-favelado e professor de literatura Paulo Lins, publica o livro Cidade de Deus, o romance que virará fenômeno mundial adaptado em filme. O grupo Racionais MC’s lança seu quarto álbum de estúdio, Sobrevivendo no inferno, com letras como “Diário de um detento” e “Capítulo 4, Versículo 3” que rapidamente se convertem em hinos, chegando a vender 1,5 milhões de cópias por todo o país. Em uma modesta biblioteca pública do bairro Santo Amaro (Zona Sul de São Paulo), entre alguns parentes e uns poucos amigos, um escritor chamado Reginaldo da Silva Ferreira, vulgo Ferréz, começa sua caminhada na literatura com um discreto volume de poesia concreta titulado Fortaleza da desilusão, do que vende menos mil cópias e que nunca mais será reeditado.
Ano 2000: Ferréz ganha o centro dos holofotes com Capão Pecado, um romance realista ambientado no Capão Redondo. De certa forma inspirado em Cidade de Deus, o escritor quis fazer um livro de mano pra mano, com a voz e a cara da quebrada: certamente é algo sobre a dor, a esperança, a frustração, ou algo tão específico que só poderia ser feito para os habitantes de um lugar por Deus abandonado e pelo diabo batizado de Capão Redondo (p. 18).
Para isso, ninguém melhor que seu vizinho e amigo Mano Brown como Mestre de Cerimônias, que assina uma participação dando o tom do romance:
Capão Redondo é a pobreza, injustiça, ruas de terra, esgoto a céu aberto, crianças descalças, distritos lotados, veículo do IML subindo e descendo pra lá e pra cá, tensão e cheiro de maconha o tempo todo.
São Paulo não é a cidade maravilhosa, e o Capão Redondo no lado sul do mapa, muito menos.
Aqui as histórias de crime não tem romantismo nem heróis.
Mas, aí! Eu amo essa porra!
No mundão eu não sou ninguém, mas no Capão Redondo eu tenho meu lugar garantido, morô mano?
Vida longa aos guerreiros justos. Firmeza!! (Mano Brown, p. 24)
Ferréz quis deixar uma câmera filmando a vida na periferia, narrar o que vê e escuta todo dia como morador da quebrada. As vidas das personagens estão marcadas pela luta por dignidade em um mundo demolidor: o sofrimento e a frustração toma conta do trabalho, das correrias, do amor e da guerra. E mesmo assim, o orgulho periférico não se enfraquece o mais mínimo. O protagonista, Rael, é um jovem esforçado, filho de doméstica e de pai alcólatra, que trabalha numa metalúrgica e guarda as horas da noite para ler livros e gibis até lacrimejar de sono. Mas as vielas da quebrada lhe reservam várias tretas…
A primeira é quando uns amigos de infância se envolvem com droga, tendo que fugir do bairro: estavam com a cabeça valendo dinheiro, por dever nas bocas de fumo (p. 45). Rael, sem poder proteger os amigos, sabe que o pior está para acontecer: afinal as bocas não podem se dar ao luxo de ficar com prejuízo, porque senão os negócios despencam: é só um nóia saber que tal mano comprou na boca, não pagou, e nada aconteceu, que tá feito o boato que os chefes da boca não tão com nada. O respeito tem que prevalecer (p. 46).
Os problemas pra valer aparecem com a paixão de Rael por uma mina, Paula. E aí Ferréz não poupa intensidade nas cenas sexuais, libertando um tesão e provocação dignas do Marques de Sade, para o delírio da Paula: Ela sentiu que ele era bruto na penetração mas gostou, nunca sentira nada assim, ele a penetrava com imenso gosto, puxando seu cabelo como se estivesse controlando uma égua… (p. 103).
E tudo andaria assim, suave, mas por azar do destino, a mina é a namorada do seu amigo Matcheros… Começa a sentir-se o cheiro da tragédia: Rael sempre se recordava das frases ditas pelos seus amigos: “Primeira lei da favela, parágrafo único: nunca cante a mina de um aliado, se não vai subir” (p. 85).
A trama é farta de histórias paralelas, de personagens como Ratinho, Burgos ou Maria Bolonhesa, construídos com grande verossimilhança e coerência psicológica. A estrutura do romance indaga na vida de cada um deles, mostrando as aventuras e tragédias que se ocultam em vidas esquecidas, irrelevantes, às que a maioria dos escritores não dedicariam mais de cinco linhas. Um dos trechos que acho mais memoráveis é o Capítulo 15, no que a ação principal se detém totalmente para mostrar a vida do Carimbê, uma personagem secundária que parecia totalmente sem importância. O Carimbê é um tiozinho que mora com o cunhado, um “Zé Ninguém” que ajuda na construção da casa enquanto não está nos bar bebendo uma cana da porra (p. 98). Parecia que isso era tudo o que precisávamos saber do Carimbê, ao que seu próprio sobrinho chama de “bêbado e vagabundo, um bosta que não presta pra nada”. Mas aí, num enorme flash-back que bem daria um filme, Ferréz nos conta toda a vida dele (p. 121-130): de esforçado trabalhador na construção e frequentador dos forrobodô no Rio de Janeiro às humilhações sofridas pela polícia e o mestre de obras, seu refúgio na raiva e na pinga, os calotes na cidade desconhecida e sua progressiva ruína… Finalmente, Carimbê triste e vencido pede auxílio à família do cunhado. Enquanto espera o caminhão de material para seguir trabalhando no puxadinho da casa, só pode sentar na calçada e rir de si mesmo: pensa pela primeira vez no que se transformou sua vida, começa a rir quando avista o caminhão do depósito, mas pára rapidamente sua histérica risada quando percebe que sua vida, no total, não passa de uma grande decepção (p.130).
Capão Pecado é um romance brutal, como a vida. Um retrato fiel do lado mais duro do Brasil, onde a foto não tem inspiração pra cartão-postal. Mas, como nas letras de Racionais ou na poesia de Paulo Lins, há enormes doses de literatura e beleza nas entrelinhas da tragédia. Com este livro, Ferréz conquistou um lugar destacado no cenário literário, o que lhe permitiu posteriores empreitadas de grande importância para a cultura periférica, como a coordenação das coletâneas da Literatura Marginal na Revista Caros Amigos, ou a fundação da grife 1daSul, a Biblioteca Êxodus e outros projetos sociais na sua quebrada. Mas também deu início a uma brilhante carreira de escritor, com livros como Manual Prático do Ódio (romance), Ninguém é inocente em São Paulo (conto), Desterro (HQ, com Alex de Maio), Cronista de um tempo ruim (crônicas) ou Deus foi Almoçar (romance).
Capão Pecado e outros livros do mesmo autor estão disponíveis na Biblioteca das Ruas. Mais informação no facebook ou no blog do Ferréz.
Páginas com o sangue e os sonhos da periferia, pelo viés de Júlio Souto.
Júlio Souto é mestre em Sociologia e um dos idealizadores do projeto Biblioteca das Ruas.