Michel Löwy já descreveu o trabalho do filósofo alemão Walter Benjamin como “escrever a história a contrapelo”. Não poderia ele ter escolhido uma palavra mais apropriada, embora seja um tanto incomum. Imaginemos que estamos acariciando um gato da cabeça ao rabo: a cada passada, seu pelo se torna mais compacto. No entanto, também podemos acariciá-lo no sentido oposto, ou seja, ‘a contrapelo’. É aí que se percebe que talvez o gato tenha pulgas ou um corte na pele. Ir ‘contra o pêlo’ significa voltar, mas não para trás, no sentido de se tornar obsoleto ou bitolado, num estado de nostalgia medíocre pelos tempos de outrora. Significa, pelo contrário, eriçar aquela pelugem confortável que o passado usa e expor todos os detritos que nela afundaram para longe da vista.
A metáfora da ‘pelugem confortável’ parece ser, além disso, bastante útil quando se começa a explorar o trabalho de Benjamin sobre história. Um casaco de pele de raposa, por exemplo, só serve a alguém — não a mim, no caso — porque não está mais ligada ao animal, agora morto. Pode-se também olhar para o passado dessa maneira. De um lado, o conforto do passado é a história como ela é contada pelos instrumentos oficiais: feriados que celebram pessoas mortas há duzentos anos, decorar datas de guerras, recitar nomes de nobres e grandes heróis de guerra. Do outro lado, no entanto, para cada casaco de pele, existem, de fato, raposas mortas, que são aquelas trivialidades descartadas enquanto se canta o hino nacional.
Os vencedores contam magníficas histórias sobre sua nobre ascensão ao progresso enquanto inevitavelmente rebaixam aqueles que ‘perderam’ a uma categoria de fracassados irremediáveis.
Aquela primeira abordagem-lá sobre história é o que se chama historicismo, que “se contém com o estabelecimento de sentidos causais entre vários momentos da história” (Benjamin, 1940: 397). São os contos do passado através de seus episódios mais vívidos: guerras, conquistas e revoluções. O historicismo, porém, é uma ópera póstuma, pois, entre batalhas, Joões e Marias cozinhavam, cuidavam da família e alimentavam os cavalos. O historicismo é póstumo porque se move pela vitória, por um sede sangrenta por grandeza. Não há espaço para as tolices e para a perda de tempo daqueles que não chegaram lá.
O historicismo é, dessa forma, um aliado dos vitoriosos. Num dos clássicos de Machado de Assis, Quincas Borba, a personagem que dá nome ao livro beira a loucura pensando ser ele Napoleão, envolvido numa batalha entre duas tribos por uma plantação de batatas. Quincas grita repetidamente: “aos vencedores, as batatas”. Aos vencedores da plantação da história, todas as batatas e seus nutrientes, que irão alimentar não só aqueles que ganharam originalmente mas também aqueles que, mais tarde, alimentarem-se das mesmas plantações. O historicismo não é único a se posicionar ao lado dos vitoriosos, também “todos os soberanos são herdeiros de conquistas anteriores” (Benjamin, 1940: 391).
Não só os vitoriosos mantêm as batatas para si como também põem-se a contar a história de como conquistaram os tubérculos. Da perspectiva dos vitoriosos, é, assim, “muito fácil estabelecer oposições[…]dentro dos vários ‘campos’ de uma época de tal forma que, de um lado, fique a parte do discurso ‘produtiva’, ‘progressista’, ‘viva’ e ‘positiva’ e, do outro lado, tudo que não dá frutos, é retrógrado e obsoleto” (Benjamin, 1999: 459). Os vencedores contam magníficas histórias sobre sua nobre ascensão ao progresso enquanto inevitavelmente rebaixam aqueles que ‘perderam’ a uma categoria de fracassados irremediáveis.
Contrário ao historicismo, Benjamin (1940: 395) prefere encarar a história como “o sujeito de uma construção cujo campo não é o tempo vazio e homogêneo, mas cheio de tempo presente (Jetztzeit)”. O passado não é uma onda estática, mas um ângulo solto cujas linhas não podem ser apreendidas que por momentos fugazes quando brilham perante nós só para, então, mergulharem de volta no balaio de trapos do tempo.
Uma abordagem benjaminiana da história se baseia, portanto, no “agora do reconhecimento”, ou seja, aquele rápido brilho do passado que deve ser apreendido com força à medida que é reconhecido no presente. Não significa, felizmente, dizer que o passado só se mostra uma vez, mas que ele não se mostra como um retrato íntegro e fiel de como fomos levados a acreditar pela sequência dos capítulos nos livros de história.
É aqui que Benjamin invoca o anjo da história. Ele se refere à pintura de Paul Klee chamada Angelus Novus. O rosto do anjo está virado para o passado, mas suas asas estão posicionadas de tal forma que a mais leve brisa o empurrará para o futuro. É com esse corpo incompleto, à moda de Jano, que o anjo é obrigado a contemplar o passado enquanto é impiedosamente arremessado para o futuro. Se só se vê uma única série de eventos, o anjo só “enxerga uma grande catástrofe, que não para de pilhar destroço depois de destroço e lançá-los a seus pés” (Benjamin, 1940: 392). O anjo só pode ver o passado como uma massa indecifrável de eventos, uma sinfonia semelhante ao inferno sonoro do horário de pico em qualquer cidade movimentada — incompreensivelmente angustiante porque parece ser a sobreposição descontrolada de gritos e buzinas isolados.
O presente é o momento crítico em que o passado é brevemente visto de novo na consciência de que a história não é pétrea, mas, sim, uma constante reconstrução do antes e do agora numa relação de reconhecimento das infinitas possibilidades vindouras.
A tarefa de olhar para o passado, porém, não consegue ressuscitar os cadáveres. Trata-se somente de recordações efêmeras do passado, que duram um curtíssimo período e iluminam muito pouco. Essas recordações, na verdade, acendem faíscas que, juntas, formam uma constelação, de forma muito parecida com que as estrelas parecem pairar aleatoriamente no céu e, mesmo assim, formam figuras e padrões a partir do momento em que são ligadas umas às outras.
Essas figuras e esses padrões são, para Bejamin, imagens, que “é aquilo dentro de que o que passou se une num clarão de uma constelação” (1999: 462). As imagens do passado são, assim, retratos objetivos do que passou tanto quanto são o resultado da relação entre o passado e o presente, este-cá visto como o tempo quando os eventos já transcorridos voltam a tomar nossa atenção.
Daí emerge o que se pode chamar, em última análise, de história. A partir das ideias de Benjamin, concebe-se a história como um processo interminável de recordação do passado em relação ao presente. O passado se torna a fonte de clarões aparentemente isolados que são, então, apreendidos no tempo presente (Jetztzeit). O presente é o momento crítico em que o passado é brevemente visto de novo na consciência de que a história não é pétrea, mas, sim, uma constante reconstrução do antes e do agora numa relação de reconhecimento das infinitas possibilidades vindouras.
A tensão que surge da rejeição da história como uma trajetória linear nos leva a criticar todo o conjunto de crenças pelas quais, por exemplo, aos vitoriosos, nunca se conteste sua posição mesmo que ela tenha causado a miséria e o fracasso do outro.
Por que se diz, no entanto, que o presente é um momento crítico? Isso, pois a emergência de tais constelações do passado não é suficiente para que se reavalie nem o passado nem suas ruínas no presente. Poder-se-ia afirmar, de qualquer maneira, que o historicismo coloca o passado em relação com o presente, mas nunca se superaria a mitificação dos vitoriosos. Este entendimento da história aqui, guiado por Benjamin, é paralelo ao materialismo histórico — renuncia “o elemento épico da história” (Benjamin, 1999: 747). Como disse o historiador britânico Jonathan Rée, em entrevista ao programa Thinking Allowed, da BBC, desbanca-se a presunção de que “a história tenha sido uma grande estrada que fosse só numa direção, em que as coisas se tornassem rapidamente obsoletas e fossem então substituídas por algo novo”. A história não é uma linha reta; ela não tem espaço somente para a história de como o casaco de pele é usado hoje mas também de como a raposa foi morta. E ambos aspectos são igualmente importantes para que se entenda o desenvolvimento das coisas da maneira que elas têm sido e da maneira que haverão de ser.
A compreensão crítica de eventos históricos numa constelação nos dá um dos conceitos mais importantes do trabalho de Benjamin: a imagem dialética. Passado e presente não mais estão separados por opostos, mas se misturam num movimento em que “o pensamento é pausado numa constelação saturada de tensões” (Benjamin, 1999: 475). Que tensões são essas? Precisamente aquelas que emergem desse novo olhar à história como portadora de não só uma única história, mas diversas outras — incontáveis histórias, quase sempre descartadas. A tensão que surge da rejeição da história como uma trajetória linear nos leva a criticar todo o conjunto de crenças pelas quais, por exemplo, aos vitoriosos, nunca se conteste sua posição mesmo que ela tenha causado a miséria e o fracasso do outro.
Em meio a recordações fugazes do passado, não basta que se apreendam algumas imagens, mas é preciso que se articule o passado historicamente, o que “significa apropriar-se da memória à medida que ela brilha num momento de perigo” (Benjamin, 1940: 391). Perigo como um momento de crise latente, em que, em meio a incertezas sobre o futuro, fica a ameaça do “eterno retorno ao igual” (Wohlfarth, 1986: 160). Ou ainda, como Benjamin escreve: “O perigo ameaça tanto o conteúdo da tradição como aqueles que a herdaram. Para ambos, trata-se da mesma coisa: o perigo de se tornar uma ferramenta das classes dominantes” (1940: 391). É por isso que se precisa prestar atenção às maneiras com que nos apropriamos dessas memórias: de quem é a história que se enaltece quando se retomam ou se refazem eventos do passado?
Através das ideias de Benjamin, nossa compreensão da história se torna, em primeiro lugar, ativa visto que requer um esforço crítico para não se perder na rede de oficialismos que cercam contos do passado e do presente. É, em segundo lugar, constante porque a passagem do tempo é inevitável — não se la pode parar; precisamos aprender a lidar com ela. Que com ela lidemos, portanto, de forma a nunca deixar que as sombras do passado, os erros, os fantasmas se ergam novamente simplesmente porque voltamos a acreditar cegamente na noção de progresso de via única. Mesmo que os gritos, aleatórios e infundados, de mudança e desenvolvimento nos ensurdeçam, façamo-nos sempre esta pergunta: “nas vozes que ouvimos agora não há um eco das vozes que foram silenciadas”? (Benjamin, 1940: 390).
Walter Benjamin: o anjo da história voa a contrapelo, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@revistaovies.com
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Referências
Benjamin, W. (1999). On the Theory of Knowledge, Theory of Progress. In: Benjamin, W. (1999). The arcades project. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, pp.456-488.
__________. (1992). Theses on the Philosophy of History. In: Benjamin, W. (1992). Illuminations. Londres: Fontana Press, pp.245-255.
Eagleton, T. (1981). History, Tradition and Revolution. In: Eagleton, T. (1981). Walter Benjamin, or, Towards a Revolutionary Criticism. Londres: Verso, pp.43-78.
_________. (1981). The Angel of History. In: Eagleton, T. (1981). Walter Benjamin, or, Towards a Revolutionary Criticism. Londres: Verso, pp.173-179.
_______. (2009). Repensar América Latina a partir de las enseñanzas de Walter Benjamin [online]. Disponível em: <http://www.rosa-blindada.info/?p=20>.
Thinking Allowed. (2013). Podcast radio programme. BBC Radio 4. 2 Set. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/programmes/b038yk6v>.
Wohlfarth, I. (1986). Et Cetera? The Historian as Chiffonnier. New German Critique 39: pp.142-168.
Gianlluca Simi é bem crítico sobre o conceito de História por Walter Benjamin,o filósofo que faz uma desconstrução didática com um viés materialista histórico de toda ideologia de classes dominante ,que tentam secularmente se manter e se perpetuar na transmissão simbólica de seus valores via educação, e de outros bens culturalmente aceitos e inculcados.Por isso,subliminarmente, os processos revolucionários inevitáveis em curso.É preciso saber se antenar quando da sua emergência e da necessidade de mudança das estruturas arcaicas,num regime de liberdades democráticas liberal.