Comprar livros por metro é a mais nova moda em São Paulo. Sebos vendem coleções inteiras em pacotes com preços que variam de R$ 150 a R$ 250, dependendo da encadernação. Da dona de casa que pretende decorar a estante ao advogado tentando impressionar seu cliente, sobram contradições no discurso de uma elite que entende a cultura como um consumo, e não como valor. Essa percepção é identificada por Nikelen Witter, pesquisadora do Departamento de História do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), que não se surpreende nem um pouco com o caso paulista: “não é para ler, é somente para exibir, e, veja, não são livros aleatórios, são obras que propõem um modelo de ‘erudição’, que não é erudita porque não é leitora. Tem que ter o livro do Jô Soares, do Chico Buarque, porque ficaram tantas semanas no topo de vendas”.
Para a historiadora, os modelos culturais da elite brasileira são importados de Miami, Nova Iorque ou ainda das listas de livros mais vendidos. Na falta de originalidade própria, resta o desprezo pela cultura popular – uma herança dos tempos escravocratas, segundo Nikelen. “Não é suficiente não gostar da cultura do funk, tem que odiar – mas tu pedes desculpas por não gostar de música clássica”. É como se a cultura do outro fosse inferior, e daí o questionamento: como, afinal, surge o chamado “bom gosto”? Quem dita o que é bom e o que é ruim?
Essa construção perpassa diversos momentos históricos. Na entrevista a seguir, Nikelen explica o papel dos manuais de comportamento que surgem a partir dos séculos XV e XVI, o sonho da burguesia de chegar ao “mundo dos ricos e bem frequentados” e a influência da moda como um campo cerceado por papas que ditam o que é de bom e de mau gosto.
revista o Viés : Como podemos entender a construção do bom gosto a partir de uma perspectiva histórica?
Nikelen Witter (NW): Norbert Elias [sociólogo alemão] faz esse estudo olhando a partir da Renascença, já que ele estuda os manuais de comportamento. Então, quando se fala de bom gosto, está se falando também de um tipo de comportamento. Por exemplo, o que hoje consideramos comportamentos deselegantes, mal-educados ou de mau gosto, como escarrar na rua, eram hábitos comuns e plenamente aceitáveis. Antigamente, as pessoas tinham escarradeiras dentro de casa e isso era elegante. Então, veja a situação e no quanto ela difere de nossos comportamentos atuais. A pessoa estava lá, namorando na casa da noiva, aí o rapaz levantava, ia até o cantinho e escarrava na escarradeira, que era um objeto chique, de louça, pintado à mão. Se formos olhar em detalhes as escarradeiras nos museus, percebemos que é uma peça refinadíssima. E para quê? Para as pessoas cuspirem. Porque se fazia isso o tempo todo.
Então, quando Norbert Elias olha para a modernidade, ele percebe que existe um contínuo controle das pulsões corporais no comportamento, para que esse contato entre os humanos seja menos desagradável. Ele vai olhar os manuais de comportamento que começam a surgir em maior quantidade nessa época – séculos XV e XVI – para tentar regular como as pessoas devem se comportar à mesa, na rua. E quando se criam regras para regular determinados comportamentos é porque estes ainda existem. Hoje nós não precisamos dessas regras escritas, porque elas foram interiorizadas dentro da gente, nós crescemos sendo adestrados a essas regras. A educação fez esse trabalho, ela foi depositando camadas de cultura sobre nossa forma de ser e sobre o nosso comportamento. Então, se nós, hoje, viajássemos para o passado, nós teríamos um choque em relação ao comportamento dos nossos antepassados, inclusive no das pessoas mais educadas, porque as pulsões corporais delas, para nós, seriam de extremo mau gosto.
Esses manuais de comportamento vão estar na base desta construção do que é público, daquilo que pode ser colocado, mostrado, e daquilo que tem que ser escondido, velado e é, portanto, privado. Norbert Elias diz uma coisa interessante: mesmo entre a nobreza, a primeira grande especialização [de uma casa] – o quarto de dormir – já faz parte do processo de tornar o sexo uma coisa privada e não mais tão pública como era antes. E aí a gente tem relatos, livros bem interessantes nesse sentido, sobre o quanto isso [o sexo] era aberto e sem limites, como os que nós conhecemos, entre os camponeses. Daí a contínua afirmação nesse período de modificação cultural de que os camponeses seriam muito mais grosseiros do que as pessoas urbanas.
Então, a primeira oposição é essa, urbano versus rural. O rural vai ser visto como mais animalesco, mais descontrolado em relação às pulsões físicas, aos seus limites, e aí tudo o que cheira ao campesino e ao rural acaba sendo de mau gosto para quem é citadino. Essa primeira oposição vai evoluir, lá no século XIX, para o público versus privado, a tal ponto que na segunda metade do século XX, o sociólogo Richard Sennett irá falar no declínio do “homem público” e que este começa a sumir em oposição à figura humana do mundo privado. É claro que esta é uma ideia que antecede às redes sociais: hoje, nós temos um ser humano que joga a sua vida privada em público o tempo todo.
E como essa série de comportamentos demarca o que é considerado de bom gosto entre as classes?
NW: Esse comportamento que marca o bom gosto vai entrar nas nossas formas de educação, mas, para as classes abastadas, ele passa a ser também uma forma de consumo. O bom gosto vai ditar o consumo.
Tu tens que ter um consumo que te coloque dentro das classes que “contam”, que valem alguma coisa. A gente pega textos mais antigos que se referem à palavra povo e temos que nos perguntar o que esses autores entendem por povo. Por exemplo, “o poder emana do povo”: quando Hobbes e Locke falam isso, eles não estão pensando no populacho – porque é esse o nome que eles dão. Povo era quem “contava”, e quem contava era quem tinha poder aquisitivo, tinha a capacidade de propor, de ter alguma influência sobre o resto da comunidade. Então, essa influência no consumo faz com que, principalmente a burguesia, que começa a ascender, se torne consumidora daquilo que a nobreza também consome, para entrar no mundo dos ricos, dos bem frequentados. Porque para influenciar tu tens que ser bem frequentado – não é só ir à casa de fulano ou sicrano de tal, tu tens que receber as pessoas na tua casa, e a tua casa vai ser olhada, percebida, comentada.
O próprio surgimento da imprensa tem um papel nisso, porque logo vão aparecer as colunas sociais que comentam as festas, as casas, o bom gosto da dona da casa em colocar flores assim e flores assado, o uso das cores… então a casa era para ser vista. E lá no final do século XVIII e início do século XIX, os ingleses, por exemplo, têm um tipo de turismo para ver o interior das casas nobres. Elas já eram museus. Os visitantes só não entravam na ala em que a família estava naquele momento, mas as outras partes – como os corredores onde ficavam as obras de arte – eram franqueadas. Bastava chegar, pedir licença para a governanta ou para o mordomo, e tu eras introduzido na casa.
E nessa ascensão da burguesia, nós vamos ter dois caminhos: principalmente nos séculos XVII e XVIII, quando começa um processo de diferenciação que vem na esteira das reformas. Parte da burguesia continua católica, mas aqui entram, principalmente, os que aderem ao calvinismo e à ideia de que bom gosto não é ostentação: é “ter”, mas não precisa ser excessivo. Eles começam a limitar aquele fausto da nobreza e isso dá um certo atrito, principalmente no século XVIII. Enquanto os nobres se tornam cada vez mais excessivos e opulentos, tu tens uma burguesia que começa a refrear e ver essa opulência como sinal de mau gosto.
Mas isso só vai se solidificar como mau gosto mesmo nas vésperas da Revolução [Francesa]. Aí é preciso falar da grande rainha da moda no final dos XVIII: Maria Antonieta. Ela percebe que esse excesso começa a ser visto como mau gosto e muda. A última fase da moda que Maria Antonieta influencia é uma fase campestre, e aí a ideia das “pessoas” das cenas camponesas se tornarem o modelo de bom gosto. Ela se muda para o Petit Trianon e passa a usar roupas brancas, querer ser pintada com os filhos, com o cabelo quase ao natural, com o cachorro, com a ovelhinha. Ela segue uma tendência que já vinha se impondo na arte e no “bom gosto” de valorizar essas pinturas de cenas rurais e casuais, o “bom gosto” passa ser bucólico. É como aquela pintura famosa da moça no balanço [O balanço, de Jean-Honoré Fragonard, 1766]. Aí tem um detalhe genial: ela está usando um sapato de boudoir, o nosso mule, e que era usado como um “sapato do quarto” porque era fácil de tirar. Mas era considerado extremamente sensual, na última fase da nobreza francesa, usar aquele sapato, porque ele permitia tirar o pé facilmente para mexer no rapaz ou moça que estava sentado na frente. E aquela cena, então, ela tem uma nota sensualíssima, que é o sapato quase caindo do pé, e aquilo era considerado altamente sexy.
Por outro lado, é bom não confundir esse gosto pelas cenas rurais com uma elevação do status dos camponeses. A simplicidade só é “bom gosto” quando é escolha e uso dos ricos. Vinda dos pobres ela é considerada, no máximo, autenticidade, mas nunca “bom gosto”.
Você mencionou a moda. Qual é o papel dela na distinção entre o bom e o mau gosto?
NW: Essa coisa da moda variável… a gente olha para ela como um elemento a ditar o “bom gosto”. A moda tem de ser reconhecida em seu tempo e sua geografia. Para início de conversa, ela é uma invenção do ocidente. Se compararmos com o vestuário tradicional da China ou do Japão, antes de sua ocidentalização, eles vestiram quimonos por dois, três mil anos. Então a moda não está lá. Ela começa a ganhar força no Ocidente no final do medievo, quase sempre da elite para baixo. Nos pobres, a moda não chega antes da metade do século XIX: eles vestem exatamente as mesmas roupas, o mesmo estilo. É uma blusa frouxa com uma saia, e lenços; para os homens é uma calça com uma camisa ou um colete, no máximo, e acabou, não tem muita variação nisso.
A moda tem um período que começa, primeiramente, de 50 em 50 anos, depois isso diminui para 25, 10, até que hoje nós temos a moda por estação. É ela que estava ditando que o que era de bom gosto há três anos, e hoje, é ela que diz que esse “gosto” é cafona e ultrapassado. O grande impulso da moda ocorre no século XIX. Nessa época, nós temos a queda da aristocracia e a ascensão da burguesia como uma elite que domina política e economicamente, e que também dita o que é o “bom gosto”. Essa nova classe dominante difere da anterior por jogar com a ideia de que a ascensão social é possível, via educação, consumo e refinamento. Logo, ela passa criar o horizonte da inclusão possível e essa só se pode dar pela incorporação de seus modos, roupas, comportamentos e não apenas ideias. Leia Grandes Esperanças, de Charles Dickens, está ali o que é necessário para ascender nessa sociedade: roupas, modo de falar, de agir, comportamento, não ter deslizes indicativos da origem na forma como se apresenta. Em palavras atuais, o livro traz essas ideias “desenhadinhas”.
Então, nesse período, a moda também está relacionada com uma espécie de “bom comportamento”?
NW: Ingleses e franceses dão uma força para isso, com figuras que passam a ditar que o bom gosto não é apenas se vestir. Não adianta apenas isso, é preciso se comportar adequadamente. E aí vem a ideia da “questão do berço”. A classe média ou a burguesia que ascende têm escolas específicas para ensinar isso, essa educação, essa forma de se comportar, e que é também uma forma de consumir. Tu consomes para o corpo, tu consomes para casa, tu consomes na forma de te alimentar, com certo refino na hora de comer, na hora de usar os talheres. No século XVIII, os aristocratas tinham levado a etiqueta ao extremo com aqueles quinhentos talheres e copos na mesa – porque isso também era uma forma de se diferenciar da burguesia. No entanto, a burguesia incorpora esses modos como forma de distinção e como marca de sua escolarização e educação.
No século XVIII, a burguesia é uma classe em processo de ascensão. Então tu vai ter sempre o “rico-novo” que não domina [esses costumes]; quem vai dominar é a segunda ou a terceira geração, por isso as escolas. O nobre sabia identificar: era só colocar aquele monte de talheres na frente dele. Não importava se o cara estava vestido como um nobre, de peruca, com sapatinho de fivela. Se ele olhasse [para os talheres] e se apavorasse, não era nobre e comprou o título recentemente. Era uma forma de se diferenciar, sim, e isso então passa a criar escolas, formar espaços para que as pessoas aprendam desde pequenas esses comportamentos que envolvem também um comportamento de consumo, um consumo que envolve a pessoa e sua casa.
A questão da moradia é bem importante para entender o “gosto”. Veja, por exemplo, que a casa burguesa no século XIX é um espaço que se especializa. Ela começa a apresentar esses setores diferenciados que hoje nós conhecemos: o quarto de banho, o quarto de vestir, a sala de estar, a sala de visitas, a sala de jantar, a cozinha, tudo é separado, tudo tem o seu espaço. É interessante perceber a coisa de fazer as casas em dois andares para colocar os quartos, a parte mais íntima na parte de cima, a parte mais acessível embaixo… Então todos esses elementos dão a essa casa uma característica, e aí o sonho da ascensão é sempre ter a casa com mais de um cômodo. Hoje a gente já está entrando nos espaços integrados, com uma mudança de gosto nesse sentido. Tu já não colocas mais a cozinha separada, porque a figura do cozinheiro vai sumindo e dá lugar ao gourmet, aquele que gosta de cozinhar para os amigos. E aí essa pessoa não pode ficar isolada na cozinha – ele/ela tem que estar integrado com a sala. Então, isso muda o comportamento e vai mudar também a arquitetura.
Para a casa burguesa do XIX, tudo era delicado, tinha crochê. Chegava-se ao extremo de que as maçanetas eram de louça e pintadas à mão, com cores e desenhos específicos. Nesse período, as cidades insalubres do início do XIX vão empurrar as classes de bom gosto para os arrabaldes – as chácaras em torno das cidades. Estes espaços não são mais as casas senhoriais cercadas por um grande campo, mas mansões com um jardim menor e que não ficam na insalubridade da cidade.
Já na virada do XIX para o XX, tu tens todo o processo de saneamento das cidades, o que faz com que esse gosto volte novamente a tomar conta delas. Tanto que hoje, quando a gente olha a coisa da arquitetura e vê aqueles prédios art nouveau e art déco que começam a aparecer, eles são desse período de retorno das elites para as cidade.
Portanto, no final do XIX nós temos, em termos de arte, o impressionismo, e logo depois a art noveau que leva a arte inclusive para os móveis. É aquela coisa toda detalhada, as escadas cheias de arabesco, as janelas cheias de vidros, espelhinhos, os grandes móveis com função dupla… tudo isso é o modelo da época. Na virada do XIX para o XX, ocorre uma limpeza nesse gosto que vai influenciar tudo: a arquitetura, a entrada da arte expressionista, o cubismo, abstracionismo, surrealismo. E aí limpam as pinceladas e as linhas.
Na moda, o advento da Chanel muda completamente a forma de vestir das mulheres: coloca linhas retas, encurta a saia, o cabelo, torna tudo mais prático. Porque com essa saia as mulheres conseguem subir nos bondes e então se locomovem pela cidade. Elas andam de bicicleta – elas já andavam mesmo com as saias-calças que elas tinham antes, mas era comprida, incômoda; ao encurtar, ela dá uma mobilidade às mulheres que é muito maior. E então elas começam a frequentar mais, a ir mais aos lugares, inclusive aos lugares noturnos. Saem aqueles chapéus cheios, os cabelos são curtos, tu fazes a arte no cabelo mesmo.
E a mulher, então, entra no grupo da art decó, essa forma mais limpa, mais lisa, que chega ao corolário no vidro de Chanel nº 5. Ela [Coco Chanel] não é a primeira estilista a fazer perfume, mas os outros vidros eram lapidados. O dela, não: eram vidros de remédios – retos, lisos.
A limpeza das linhas acaba sendo uma marca da época…
NW: Sim, isso é uma marca do gosto da época que vai aumentando até que a gente vê, ali nos anos 30 ou 40, que as linhas são todas lisas, dos prédios, da moda masculina… Essa limpeza reflete em tudo, inclusive nos comportamentos. Porque alguns comportamentos mais rebuscados, mais enfeitados, também vão sendo limpos apenas por uma clareza, um tipo de gentileza. E aí tem uma coisa interessante que o Norbert Elias fala, porque ele compara muito os franceses com os alemães. O que os franceses chamam de gentileza ou de polidez, os alemães chamam de frescura. Até hoje, se divulga a ideia de que os alemães são mais grosseiros – mas eles não são, porque na percepção deles de comportamento correto, eles são verdadeiros. Tu colocar polidez para o outro ficar feliz, sendo que tu não estás feliz, é falsidade. Então, é melhor tu ser verdadeiro, e eles optam pelo verdadeiro ao invés do falso. Enquanto que os franceses preferem manter a polidez, mesmo que estejam furiosos. Eles têm uma série de regras nesse comportamento, que, para eles, é um comportamento de bom gosto, de bom tom.
Sobre a vontade de ascensão da classe média e o advento da Chanel, como surgem as indústrias da imitação que buscam “piratear” o original a preços mais acessíveis?
NW: A questão da indústria da imitação é que essa vontade da classe média de ascender à elite faz com que ela consuma tremendamente as imitações para se sentir, se parecer, se assemelhar. Quando a Coco Chanel começou, tanto com as roupas quanto com os perfumes, alguém disse pra ela: “olha, vão imitar”. E ela respondeu: “ótimo, quanto mais imitações tiver mais caro eu posso cobrar pelo original”. Essa é a percepção da Channel, como marca, até hoje – eles estimulam essa indústria. Uma indústria que faz imitações, porque por mais que tu tenhas uma imitação e se pareça com, tu sabes que é uma imitação e isso vai te deixar sempre ‘a um pé de’ e não “lá”. No dia que tu consegues comprar aquilo – se endividando, fazendo conta, pagando em 585 vezes –, vai ter um valor maior e ai te dá essa sensação de que “eu atingi o verdadeiro bom gosto, eu não estou imitando, eu não sou fake, eu sou verdadeiro”.
Tudo é uma indústria, uma indústria que foi se formando, se organizando, que tem determinados papas e eles é que dizem o quê e quando é bom gosto usar isso. Todos são vítimas da moda, não tem como fugir disso. Porque se tu sair daqui e for comprar uma roupa em qualquer lugar, mesmo que seja num balaio, ela vem dessa influência. Aí nós vamos ter a linha de gosto, de bom gosto, tu vai ter um publicação especializada que vai dizer a combinação que funciona, a combinação que não funciona e aí a gente acaba sendo refém disso.
Como você enxerga a questão do “bom gosto” relacionado às elites brasileiras?
NW: A elite se organiza na forma de dar um padrão que define o que é de “bom gosto” e o que é de “mau gosto” – sendo que o popular vai ser sempre “mau gosto”. Ascender significa entrar nesse padrão, nessa regra: se não está na regra, é preciso se desculpar. As pessoas se desculpam por não gostar de música erudita, por exemplo. Esses padrões de alta cultura foram colocados dentro de um modelo eurocêntrico que o Brasil tentou copiar – e até hoje nós temos essa cópia, porque a nossa elite, em boa parte, consome por cópia. A elite brasileira, em sua maior parte, não cria, consome, apenas isso. É como a história sobre os livros para decoração: decoradores e clientes compram livros por metro para ficar bonito na sala. Não é para ler, é somente para exibir, e, veja, não são livros aleatórios, são obras que propõem um modelo de “erudição”, que não é erudita porque não é leitora. Tem que ter o livro do Jô Soares, do Chico Buarque, porque ficou tantas semanas no topo de vendas. O triste é que isso é o que guia a cultura da nossa elite. Boa parte da elite brasileira tem a alta cultura como consumo, e não como valor. As pessoas não vão a tal lugar ou espetáculo porque gostam, vão para aparecerem. Não adquirem bens culturais por gosto, mas por status.
No Brasil tem-se a ideia de que o que é periférico e popular é ruim, de “mau gosto”, e não pode ser bom – o que mostra os ranços elitistas e escravocratas de nossa sociedade. Nesse sentido, quando se coloca a questão da diferenciação, o que se estabelece é quase um ódio: as pessoas odeiam o que não entra no padrão de gosto delas. Não é suficiente não gostar da cultura do funk, tem que odiar – mas, em contrapartida, especialmente nos meios de classe média, as pessoas se desculpam por não gostar de música erudita. Veja, todos se sentem autorizados em odiar o que é da periferia, mas se escusam por não estarem afinados com os modelos da “alta cultura”.
Apenas para deixar claro, quando eu falo de “alta cultura”, estou usando uma denominação que nada tem a ver com um valor no qual eu acredite. É um termo técnico, por assim dizer, para designar os elementos culturais que receberam ao longo dos séculos os mais altos valores, são os elementos da cultura que muitos consideram os mais altos pilares da civilização. Não se trata de uma valoração pessoal minha.
Por outro lado, e isso é mais uma percepção do que um estudo, eu acho que temos uma elite muito pouco culta nos termos que ela própria propõe e julga superior. Ela é fechada, extremamente hierárquica, com grande dificuldade de aceitar o outro, o diferente. Quando estes são incorporados, o são como seres exóticos, e dentro de limites estreitos. Nesse sentido, a elite brasileira não consegue ser uma elite que proponha um modelo cultural. Eles importam. Importam Miami, Nova Iorque, importam a possibilidade de ir lá e se “identificar” com tal a marca ou comportamento. O padrão que eles sinalizam é, antes de tudo, um padrão de consumo importado, não próprio, nada criativo, nada gerador. Eles vão ler aquilo que o jornal diz, a lista dos mais vendidos, e é essa lista que guia as buscas literárias deles. “Tal espetáculo foi noticiado na crítica do jornal X, a celebridade Y adorou, todos (os que importam) estão elogiando, eu vou”. Quer outro exemplo? A nova moda no Brasil de amar Frida Khalo, enquanto se berra que odeia esquerdistas, feministas, etc.
A questão é: como a elite brasileira poderia ter alguma influência em criar bom gosto ou mesmo liderar a cultura em algum sentido, se eles são em sua imensa maioria, apenas copiadores? Nos outros pontos da estrutura social, temos a classe média, que quer copiar a elite copiadora; e uma classe popular, que vai criando suas formas alternativas, sem esses padrões e consegue ser muito mais livre, muito mais criativa do que os status mais superiores da sociedade, em termos econômicos. Mas, claro, não é de “bom gosto”, pois o popular é brega, cafona, barato. E sim, esta última frase é irônica.
NIKELEN WITTER: “AS PESSOAS ODEIAM O QUE NÃO ENTRA NO PADRÃO DE GOSTO DELAS”, pelo viés de Dairan Paul e Maria Angélica Varaschini*.
*Maria é jornalista graduada pela Universidade Federal de Santa Maria.