Um olhar anarquista sobre as eleições

Foto: Diego Ernesto Fernández Gajardo. https://www.flickr.com/photos/0sama/5894677353/in/photostream
Foto: Diego Ernesto Fernández Gajardo (flickr)

A revista o Viés em parceria com a revista Vírus Planetário realizou uma série de entrevistas com os candidatos – e anticandidatos – da esquerda à presidência nas eleições 2014. Faltando poucos dias para o 1º turno das eleições o que se espera é contribuir com o debate sobre temas importantes e muitas vezes esquecidos pelas grandes candidaturas. Com reduzido tempo de televisão e baixo orçamento os candidatos Mauro Iasi (PCB), Zé Maria (PSTU) e a candidata Luciana Genro (PSOL) têm dificuldade para atingir um eleitorado tão grande quanto o brasileiro, mas expressam – cada qual a sua maneira – ideais políticos que rompem a ordem estabelecida e projetam novos horizontes para a grande parcela da população cotidianamente explorada pelo capitalismo. Além dos três candidatos da esquerda tem ainda uma entrevista com um anarquista, que contrapõe as candidaturas da esquerda como ferramenta política. Quatro versões do debate a respeito dos temas que nos são caros para você decidir votar (ou não). Boa leitura.
A seguir a entrevista com Alexandre Santos, anarquista e estudante que faz parte do Grupo de Estudos Anarquistas do Piauí (núcleo da cidade de Parnaíba). A entrevista foi concedida a André Café Oliveira, da Vírus Planetário. 
Como o anarquismo compreende o processo eleitoral brasileiro?
Não pretendo falar em nome do anarquismo, nem mesmo pela organização em que milito. Parto de uma perspectiva individual, e que foi forjada na multiplicidade do jogo de ações e reações da sociedade. Com isso quero dizer e deixar claro que, apesar de individual, não é e nem nunca será “só”, pois é fruto do constante movimento dialético humano e social, o qual é impossível em unidade.
Compreendo não somente o processo eleitoral brasileiro, mas em todo o lugar em que ocorre, como uma nefasta marcha de retirada constante das bases de nossa autodeterminação, isto é, nossa capacidade de nos organizarmos e realizar, por nós mesmos, a solução para os nossos problemas.
Falar que pouca coisa mudou desde as forma sufragistas do país até a atualidade seria de uma tremenda incompreensão histórica, além de uma medíocre análise de conjuntura ao longo das décadas. Porém não temo em “pecar” e dizer que a sua essência continua a mesma. Desde o voto de cabresto até hoje, o voto tem como função eleger, entre “os menos piores”, um senhor, um amo, um indivíduo ou uma coletividade de indivíduos que vai julgar qual a melhor forma de vivermos.
Nós anarquistas, estamos convencidos, não por uma utopia, mas por uma rica e sólida teoria alinhada a uma perspectiva de análise da realidade atual, que nós podemos viver em coletividade sem a necessidade de uma forte hierarquia.
O desligamento do corpo burocrático com a população não é uma novidade apontada, por exemplo, em Junho do ano passado. Posso analisar em jornais operários da minha cidade, piadas com a “política partidária”, onde esta era julgada como “a colher que se mete no orçamento”, e sua inversão se dá “quando os debaixo vão para cima, e os de cima vão para debaixo”, mas que “as ordem dos fatores não altera o produto”. Estes jornais são de 1919, e têm uma crítica tão ácida, tão atual, e tão poderosa, que reverbera até os dias de hoje. Mas a crítica não teria motivos para existir se não encontrasse na realidade um fato para confrontar-se e para ser.
Atualmente luta-se para se aproximar o sufrágio universal do povo, mas não se pode aproximar algo que não foi constituído por ele. O voto foi articulado pela burguesia, pelos poderosos, para assegurar e defender os seus interesses, e não os interesses do povo. Não há um governo para o povo”, pois este poder de governar tem que ser do povo e não de ninguém.
Sabemos que em algumas frentes de esquerda, há o convívio das organizações anarquistas e organizações partidárias. Como você analisa esse cenário e como ele pode ser um caminho para outra construção da sociedade?
É preciso fazer um levante histórico rápido do anarquismo. A priori, como fruto do embate da luta de classes em território europeu, o anarquismo surge como ideologia e teoria proletária, e que rapidamente consegue se enraizar. Desenvolve sindicatos, órgãos de defesa do trabalhador, e em sua mais alta expressão de tentativa de modificação da realidade, levanta juntamente com outros trabalhadores defensores de outras teorias, a Associação Internacional dos Trabalhadores, a AIT. A Primeira Internacional tem em seus estatutos a mais profunda filosofia anarquista, como a defesa da ação direta, a liberdade de autodeterminação dos seus “braços” em todos os países que atuou, e do sindicalismo revolucionário. No Brasil, a AIT possuía um organismo, a COB, ou Confederação Operária Brasileira, a primeira central sindical do país, que corroborava com os estatutos da AIT. Em seu interior, existia uma diversificação ideológica, mas preponderantemente eram anarquistas. Pode-se dizer que depois da Greve Geral de 1917, e da Insurreição Anarquista de 1918, os governos, se antes combatiam o anarquismo fortemente, passaram a massificar este combate. Porém o momento decisivo para o anarquismo foi o chamado “Estado Novo”. Observando as táticas de controle social de Benito Mussolini na Itália, Vargas traz a ideia do Estado de bem-estar, o Estado paternalista, o Estado “bonzinho”. Assim como na Itália, atrela os sindicatos ao tecido estatal, cria-se a CLT, o Ministério do Trabalho e a Carteira de Trabalho. Colocando o sindicalismo como braço de diálogo com o Estado, os anarquistas perderam sua principal força, pois não se aliariam ao que combatem; já a CLT e o Ministério do Trabalho foram construídos intentando diminuir os embates da luta de classes. De uma só vez, o anarquismo perde a sua organização e sua combatividade, e mergulha em um “quase-morte” desferido pela Guerra Civil Espanhola em 36, última grande representação do anarquismo no mundo. No Brasil, os anarquistas saem dos sindicatos e compõem os CCS (Centro de Cultura Social), onde as maiores expressões foram no Rio e em São Paulo.
Anos depois, surge revigorado, nas barricadas proletárias e estudantis em 68 na França, nas lutas da América Latina contra os regimes civil-militares, e arquiteta uma nova forma de inserção: Os movimentos sociais (incluindo ainda, os sindicatos). O anarquismo hoje está no movimento estudantil, no movimento de desabrigados, nos sem-terra, nos sem-teto, nas ligas de defesa animal, nas lutas antirracistas, contra a homofobia, mas sempre realizando seu recorte de classe, e pautando a construção do socialismo libertário, isto é, do anarquismo.
Acompanho o citado alinhamento principalmente em manifestações, apesar de em Junho do ano passado, sermos acusados de quebrar bandeiras ou puxar gritos contra os partidos (eu mesmo fui acusado disso). Particularmente não perco meu tempo com esse tipo de ação. Não legitimo nenhum partido político sufragista, mas em uma manifestação, com uma frente ampla de ideias, creio termos inimigos maiores a combater. Vale lembrar que esse alinhamento já ocorreu outras vezes no Brasil, por exemplo, como na formação da FUA (Frente Única Antifascista), que diante de uma passeata integralista (leia-se “fascismo brasileiro”) na praça da Sé (SP), colocou os “galinhas verdes” como eram conhecidos os integralistas pra correr. O episódio é chamado de “A Revoada dos Galinhas Verdes”.
Pode-se falar em um alinhamento estratégico, mas não teórico, ou ideológico. Temos nossas organizações, eles possuem as deles, e em épocas como quando a população é conclamada a participar ativamente da escolha de seus senhores, a fratura exposta das teorias aparecem, e os debates e polêmicas são inerentes ao processo.
Como o anarquismo entende a construção desses mecanismos de retirada do poder e quais os caminhos para a destruição dos mesmos?
Acompanho a perspectiva materialista da História, isto é, não emprego a noção de que por causa de abstrações, somos o que somos ou estamos onde estamos. Dessa forma, chego à Revolução Francesa, momento histórico em que as forças burguesas superam os monarcas, onde os populares tiveram forte participação e que sem estes, a burguesia jamais teria triunfado. A força dos oprimidos foi avassaladora, destruiu e modificou tudo que era destrutível e modificável; consciente ou inconscientemente, esta burguesia, sabendo do poderio organizativo popular, decidiu suplantar este fundando a democracia burguesa. Em teoria, atenderia os apelos de tod@s, independente da classe e da situação social em que se encontravam. Na prática, foi justamente o contrário. A legislação, as instituições de ensino e a criação mais potente da burguesia, o Estado, giravam em torno do interesse dos indivíduos que possuíam os meios de produção, os burgueses. Dentro dessa democracia burguesa, surge o sufrágio universal, isto é, o voto. Ele tem, de certo modo, a mesma função da atualidade, e até mesmo nas questões do voto, foi necessária a luta feminista, racial, e social para que cobrisse a totalidade dos seus membros, pois eram poucos os que poderiam votar.
Desde a pós-Revolução Francesa e Industrial, com o surgimento das ideias socialistas, e entre estas, o anarquismo, o combate ao sufrágio universal iniciou-se. Mikhail Bakunin, Piotr Kropotkin, Eliseé Réclus, Voltairine de Clayre, Emma Goldman, José Oiticica, Domingos Passos, Maria Lacerda de Moura e tant@s outr@s militantes e pensadores libertários se opuseram categoricamente ao sistema democrático burguês e seus mecanismos de manutenção. É válido lembrar ainda que a participação da esquerda dentro do sistema democrático burguês deu-se na quarta reunião da I Internacional, onde Karl Marx aprovou a organização partidária dentro da disputa do aparelho da burguesia, o Estado.
A meu ver não há outra forma de sairmos do pântano da miséria social senão da mesma forma que a burguesia ascendeu: Por um violento rompimento com as formas de sociabilidade até então estabelecidas. Uma transformação que objetive a destruição do Estado, do capitalismo e consequentemente das classes sociais. Uma organização livremente organizada, federalizada, onde os meios de produção e o produto do trabalho estejam nas mãos dos trabalhadores e onde não se viva do suor alheio. Para isso, é necessário uma intensa onda de organização combativa de todos os setores da sociedade, de forma a compreender e retomar a sua capacidade de autodeterminação, e dos males que são gerados para manter a felicidade e prestígio de um número ínfimo de pessoas.
Estas organizações são livres para tomarem suas próprias decisões e ocorrem observando a necessidade e especificidade do local; por especificidade entendo as peculiaridades que determinada sociedade vive; nos campos, nas cidades, e onde mais existir coletividade humana.
Somente pela força popular, e não de uma vanguarda encastelada e desligada dos interesses do povo, é que poderemos enfim superar este modelo de sociedade, e construir um mundo novo.
Quais as táticas construídas para este período e como se dá essa construção junto com as pessoas?
Através da criação de comitês populares antivoto, panfletagem, palestras, comícios, debates, etc.; é bem vasta as formas de divulgação do voto nulo ou o não-voto; Mas até a sua construção envolve algumas peculiaridades. Por exemplo, nenhum participante recebe nenhum tipo de recompensa financeira pela militância, nem muito menos é pedido o apoio de empresas ou setores ligados diretamente ao Estado. É uma construção horizontal, pois tod@s são comandantes e comandados, todos participam e tem em suas palavras e ações os mesmos pesos e medidas de qualquer outro da organização. Nada é feito de cima para baixo; a ideia de montar um comitê antivoto surge, então, junto com a coletividade, é definido ações, mecanismos de propaganda, etc.; Essa é a forma mais palpável e eficaz, porém existem outras, tão diversas quanto as especificidades e demandas de cada localidade.
Por que fomentamos a questão da nulidade dos votos?
Atualmente tem sido motivos de debate até entre os anarquistas, a validade da propaganda pelo voto nulo, uma vez que este ainda representa o ato de “ir na urna, teclar números aleatórios e confirmar para anular o voto” é um ato de submissão ao sistema sufragista. Outra ala socialista libertária pauta pelo não voto, isto é, pela desobediência civil via a não presença nas urnas. Isto acarreta uma multa (de R$ 3,00 se não me engano), mas parte para uma perspectiva de resposta ao sufrágio universal bem mais “violenta”. Pelo voto nulo, ou o não voto, o objetivo pretendido é sempre o mesmo: Negar veementemente as amarras do sufrágio universal. Amarras sim, pois o “direito adquirido” que tivemos nada mais foi de escolher quem mandará em nossas vidas, quem pensará por nós, quem decidirá por nós, e isto é degradante e humilhante.
Fomentamos o voto nulo pela dupla percepção de que o voto de nada vale, e de que, como falei anteriormente, temos a capacidade de nos autodeterminarmos, isto é, de nos auto-organizar. Fazemos isso todos os dias em menor escala, justamente a “escala” em que o Estado não nos alcança. Na Grécia, era acusado de assassinato quem não intervisse em uma briga em que resultasse um homicídio. Nas guildas operárias, um trabalhador ficava junto de outro trabalhador adoentado, até que este melhorasse. Em civilizações mais distanciadas de nossa temporalidade, o caçador que encontrava uma presa, por mais fome que este tivesse, só comeria dela quando gritasse a todos em sua aldeia que encontrou comida. Atualmente, chamamos a polícia para intervir em querelas; damos no máximo, o número de um bom hospital para alguém, comemos demasiadamente frente a compreensão de que existem pessoas que sequer possuem perspectiva de quando vão se alimentar novamente, não do outro lado do Oceano, mas na outra esquina, ou em outro bairro. Apesar disso, entrevemos a possibilidade da retomada destes aspectos sociais na realidade quando acompanhamos a auto organização popular, como a Comuna de Paris em 1871, a auto organização dos soviets livres em 1917, as tantas colônias aotogeridas no Brasil em meados de 1900, a criação de organizações proletárias de resistência, sem nenhuma colaboração ou contribuição estatal, como Oaxaca em 2006, como o levante zapatista em 94, como a construção quase que instantânea, feita pelos vizinhos e demais moradores, das casas atingidas por foguetes na Palestina. Não é minha intenção que voltemos à Grécia, à Idade Média, nem muito menos a eras ágrafas.  A ideia é demonstrar a solidariedade, o “apoio-mútuo”, a autogestão social criada a partir da inexistência ou superação do Estado, e enquanto estivermos a eleger quem irá pensar por nós, quem irá nos gerir, quem irá agir por nós, o individualismo, os distúrbios psicológicos coletivos, e os levantes populares serão mais fortes.
Por que votar em partidos radicais não é a solução?
Antes de começar a responder esta questão, gostaria de explicitar um fato interessante. Anteriormente a construção do Partido construído por Vladmir Lênin na Rússia czarista, um outro russo que tinha bastante influência no movimento camponês, e participava de um grupo chamado “narodnik” (isto é, “populistas”), discorreu toda uma metodologia, de atuação juntamente com as massas através da organização de militância em partido. A ideia foi “apropriada” por Lênin, e que até hoje sua essência é o guia organizacional dos PC’s e demais dissidências. O russo que engendrou o conceito e aplicação da organização do partido era Mikhail Alexandrovich Bakunin. Não pretendo me aprofundar neste debate visto que não caiba na proposição da entrevista, mas faço um sincero convite para a leitura da obra de Bakunin, uma vez que minha resposta inicial remete a ele.
Primeiramente, a meu ver não são radicais, mas só “posam” como tal; as transformações sociais via Estado, e da tomada deste por via sufragista, não passam de reformas. Imagine uma casa cujo alicerce foi fundado em um pântano. Com o tempo, as paredes começam a rachar, e algumas pessoas daquela casa doam todos os seus esforços para concertar tais rachaduras, enquanto outras, cientes de que independentemente da quantidade de argamassa criada para fechar as rachaduras, a casa em breve terá novas, e empregam as suas forças para construir uma casa sob um solo firme, convencer as pessoas da casa que esta não tem salvação, e caso seja possível, convencer os “reformistas”, imersos na fé de “salvar” a casa das rachaduras. Creio que nesse exemplo, está contida toda a proposta da militância anarquista em relação ao Estado, e o primeiro motivo pelo qual não acreditamos em partidos radicais.
Em segundo lugar, os sufragistas “radicais” se opõem veementemente a tomada do Estado pela violência. Toda sua radicalidade se encerra em greves construídas no alto da cúpula do partido e desce pronta, como uma receita de bolo, e em suas versões juvenis, ocupações de reitorias, diretorias, etc; mas sempre como uma receita de bolo. O exemplo clássico foi a criminalização de parte desta “ala” contra os black blocs. Afirmaram, por exemplo, que aquilo era um ato isolado, e que não correspondia aos intentos da maioria. A pergunta é: Se são “radicais”, porque então não incentivar que os membros do partido também aderissem à tática? Porque não propagandeá-la a ponto dela se tornar maioria? A meu ver, não queriam ter a imagem vinculada ao radicalismo de estudantes precarizados e trabalhadores que decidiram partir para a ação direta; não queriam ter suas táticas (leia-se agitar bandeiras) em confluência ao pensamento teórico-ideológico socialista que acredita em uma sociedade pautada na igualdade pela liberdade, o anarquismo.
Em terceiro lugar, é pueril crer na tomada do Estado por meio do sufrágio (para nós, anarquistas, já é pueril o bastante crer que o Estado centralista, hierárquico e dominador possa ter as soluções sociais, ou mesmo resolvê-las). A burguesia tem sob o seus pés, além do suor e sangue das classes oprimidas, o poder de alterar seus mecanismos de manutenção. Um exemplo disso, no caso brasileiro, são as urnas eleitorais, totalmente violáveis, adulteráveis, corrompíveis. Mas suponhamos que por algum motivo, um partido de esquerda “radical” “vença” as eleições. Por fim, conseguiram o que tanto sonhavam, o poder, o Estado, a burocracia, etc.; mas não possuem as mídias de direita, não possuem igrejas, escolas, etc. (que não pouparão esforços em destruir qualquer imagem e reputação de um partido de esquerda “radical”), e muito menos, os repressivos. Não tardaria, como no caso de João Goulart, um golpe para “salvar o Brasil do Comunismo”. Por mais que na época de Jango, a aliança CIA e exército tenha sido forte, sabemos (até os sufragistas “radicais”) que a repressão só reprime para manter o status quo dos capitalistas, da direita.logo
Um olhar anarquista sobre as eleições, pelo viés de André Café Oliveira (Vírus Planetário)
Veja também as outras entrevistas da série sobre as eleições 2014:
Zé Maria
Luciana Genro
Mauro Iasi

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